Jornalista britânico descreve
como, por meio de sórdida rede de advogados e contadores, super-ricos se
tornaram apátridas e propagam paraísos fiscais. Nada produzem, corrompem
mercados e arrasam a economia de países empobrecidos
IHU
| em Outras Palavras
Oliver Bullough em
entrevista a Ricardo Dudda, traduzido pelo IHU
Em 2019, completaram-se 75 anos
do acordo de Bretton Woods. Nele, os líderes mundiais se comprometeram, após a
Segunda Guerra Mundial, a não especular com as divisas, para garantir a paz e a
estabilidade. Por que esse acordo foi tão importante?
O que aconteceu em Bretton Woods
deve ser entendido no contexto da Segunda Guerra Mundial e da Grande Depressão.
O enorme desejo de garantir que não houvesse mais guerras mundiais. A análise
feita em Bretton Woods é que a liberdade absoluta de capitais para especular
causou o crash de Wall Street e criou a miséria que fomentou o
nacionalismo extremo. Penso que é uma análise muito acertada. A solução que
propuseram era muito corajosa: mudar a maneira como funciona a economia global.
É fácil se esquecer de como foi exitoso.
Nos anos 1950 e 1960, há
crescimento económico, mais igualdade e prosperidade nos países ocidentais. É
claro que houve perdedores, países comunistas como a China que ficaram à margem
dessa prosperidade. Contudo, para as democracias liberais ocidentais foram as
melhores décadas de sua história.
Para os ricos, ao contrário,
Bretton Woods era ameaçador. Havia um grupo de pessoas constantemente lutando
contra esse sistema de controle. E Moneyland é o que eles inventaram para
escapar dele. Uma aliança poderosa foi criada entre banqueiros em Londres e
bancos na Suíça para criar estruturas offshore (paraísos fiscais).
Considero que esse conceito é pouco estudado e analisado. Talvez seja uma das
invenções mais importantes da segunda metade do século XX, em termos de seu
impacto no mundo. E, no entanto, existem muito poucos livros sobre isso. Nem
mesmo os livros de economia falam disso.
No livro, comenta que quanto mais
determinados países toleravam ou promoviam os paraísos fiscais ou as estruturas
offshore, mais difícil era para outros países deixar de fazer o mesmo: eram as
novas regras do jogo.
Quanto mais você luta contra os
paraísos fiscais, enquanto existem, mais paraísos fiscais existirão. O fato de
o Reino Unido tolerar e promover paraísos fiscais como uma estratégia de
desenvolvimento, não apenas para eles, mas também para as grandes economias,
faz com que os outros países não tenham alternativa. O que outras economias
fazem é se desregulamentar e tentar acompanhar o ritmo. Isso pode ser visto na
concorrência entre Nova York e Londres, mas também, por exemplo, pode ser visto
dentro dos Estados Unidos. Se um Estado trata o dinheiro de maneira diferente
de outros estados, ou tenta atrair dinheiro de alguma forma, os outros estados
fazem o mesmo.
Escrevi recentemente sobre o caso
de Dakota do Sul, que inventou uma nova cláusula e um fundo (trust) que protege
seus ativos bancários. Após colocar isso em prática, Delaware aprovou uma lei
semelhante e sua justificativa foi: “Em Dakota do Sul estão agindo desse modo,
então temos que fazer o mesmo”. Aí está o problema. Quando um país começa a
tolerá-lo, em um mundo globalizado, todos têm que fazer o mesmo. Outro exemplo:
isso acontece com os vistos de ouro. Portugal vende passaportes. A Espanha
teria que ser louca para não fazer o mesmo.
O sistema de compra de passaporte
é delirante. Mas temos que entender uma coisa: para nós, é fácil criticar. Ou
seja, eu sou britânico, mas como meu pai é canadense, também tenho um
passaporte canadense. Tenho dois dos melhores passaportes que é possível ter.
Isso facilita muito a minha vida. Mas se você é iraquiano, sua vida é uma
merda. O sistema global é injusto. A ideia de comprar cidadania é uma solução
ruim. Você pega um sistema injusto e o torna ainda mais injusto. Se você é um
refugiado sírio, está preso em um campo de refugiados libanês. Mas, se você é
um sírio rico que se enriqueceu na guerra, pode comprar um passaporte maltês e
se mudar para a Europa. É grotesco.
Que países vendem passaportes?
Em certa medida, a Áustria sempre
fez isso. As ilhas de São Cristóvão, Nevis e Dominica, no Caribe, começaram nos
anos 1980 de uma maneira muito caótica. Mas, depois, surgiu o personagem
Christian Kalin. Chegou a São Cristóvão e se ofereceu para organizar o sistema
de vendas de passaportes. Então, tornou-se um fenómeno. Agora, existem cinco países
caribenhos que vendem passaportes. Há dois países da União Europeia que vendem. Moldávia também, Montenegro está a ponto.
Quem gostaria de ter um
passaporte da Moldávia?
É realmente muito útil. Você pode
viajar para a Europa sem visto. Também é muito barato, custa mais ou menos
100.000 dólares. Se você é muito rico e mora, digamos, no Sudão do Sul, compra
um passaporte moldavo e não precisa mais se preocupar com os vistos.
Claramente, um passaporte maltês é melhor, porque você está dentro da União
Europeia, mas também há mais controles para obtê-lo. Muitos dos países que
vendem passaportes não têm muito controle sobre quem os compra.
Existem muitos passaportes que
são muito úteis. Por exemplo, se você compra um passaporte de Granada, no
Caribe, tem acesso a um visto muito bom para os Estados Unidos, o visto E-2,
que é inclusive melhor que o green card (o cartão de residente
permanente). É muito útil se você quiser viajar para os Estados Unidos. Faz
todo o sentido que um cidadão rico de um país pobre queira comprar o passaporte
de outro país.
Você afirma que as economias
ocidentais acabam se parecendo com os paraísos fiscais.
Para impedir que todo o dinheiro
vá para os paraísos fiscais, você reduz muito seus impostos para prevenir essa
vantagem competitiva. Penso que o conceito offshore ou paraíso fiscal
não é muito útil hoje. Segundo os padrões dos anos 1960, hoje tudo é um paraíso
fiscal. Moneyland venceu.
Critica a maneira como se
contabiliza a corrupção global. Quase sempre se leva em conta de onde o dinheiro
é roubado, mas não onde é lavado, que costuma ser em capitais ocidentais.
A maneira tradicional de medir a
corrupção se baseia na definição da Transparência Internacional: a corrupção é
o abuso de uma função pública para obter um benefício privado. E isso é
corrupção, claro, mas é como estudar o tráfico de drogas apenas olhando para
quem vende drogas na rua. Você perde tudo.
A corrupção conforme definida
pela Transparência Internacional sempre existiu. Desde que existem os governos.
Mas, por que a corrupção é um problema muito maior hoje do que há cem anos?
Porque é muito fácil ficar com o dinheiro. Você o guarda em um paraíso fiscal e
está seguro. Temos que entender a corrupção no contexto das cleptocracias, em
um sistema financeiro globalizado.
A definição da Transparência
Internacional é muito problemática porque se concentra na parte da
corrupção que ocorre nos países pobres, e não na parte que ocorre nos países
ricos. Culpam as vítimas. É como dizer que a maioria das pessoas que consome
drogas vive nos bairros pobres. Portanto, são os bairros pobres os responsáveis
pelo tráfico de drogas. De acordo com essa definição, Londres não é avaliada
como corrupta. Contudo, sem os advogados de Londres ou Nova York, o dinheiro
sujo não poderia ser lavado.
No ranking da Transparência
Internacional sobre corrupção, a Dinamarca aparece como o país mais limpo do
mundo. E, no entanto, o Danske Bank é responsável pelo maior caso de lavagem de
dinheiro da história global. É estúpido.
Escreve que os países são bons em
determinar quanto dinheiro se investe em suas economias, mas não em medir
quanto dinheiro sai.
Se você coloca o seu dinheiro na
Suíça, esse dinheiro vai para Luxemburgo e um fundo em Luxemburgo o investe em
outro lugar, na Nigéria ou seja onde for. A brecha importante é a que existe
entre a Suíça e Luxemburgo. Por isso, há um vazio nas estatísticas globais. Seu
dinheiro vai para um paraíso fiscal, mas as empresas do paraíso fiscal não
monitorizam para onde vai esse dinheiro depois.
As estatísticas russas de investimento,
por exemplo, são muito boas, mas não são úteis porque não são reais. Se
acreditarmos nelas, o maior investidor na Rússia é Chipre. E o lugar onde a
Rússia mais investe são nos Países Baixos. São paraísos fiscais. Ou, por
exemplo, as Ilhas Virgens Britânicas são um grande investidor na Rússia.
Assumamos que é tudo dinheiro russo, que saiu do país e retorna. Ficou
escondido e volta se fazendo passar por dinheiro estrangeiro.
O grande problema é que não se
segue a pista do indivíduo que tem esse dinheiro. O que se faz é considerar
que, como esse dinheiro saiu da Rússia, deixou de ser russo e se tornou
dinheiro das Ilhas Virgens Britânicas. É ridículo. Fui às Ilhas Virgens
Britânicas. É um ótimo lugar, mas não há dinheiro. Existem muitas praias, mas não
há dinheiro. A ideia de que é um lugar que investe significativamente na Rússia
é uma ficção estúpida. Contudo, estamos presos nessa ficção em todo o mundo. Se
você olha para o mercado imobiliário de Londres, verá que as Ilhas Virgens
Britânicas são investidores significativos.
Mencionou a Rússia. Uma das
histórias mais impactantes de seu livro é a da empresa FIMACO de Jersey.
O FMI estava dando dinheiro para
apoiar a moeda da Rússia. Esse dinheiro, a Rússia enviou para uma empresa em
Jersey que se dedicou a comprar títulos do governo, ficando com o lucro. Para
ser honesto, é algo tão extraordinário que, embora eu saiba que aconteceu,
quase não acredito que tenha ocorrido. O Banco Central da Rússia comprando
títulos do Estado russo e sonegando impostos. É uma loucura.
Além disso, é uma história muito
importante para Putin. Sua primeira aparição importante na televisão tem a ver
com este caso. A carreira política de Putin começa acabando com uma
investigação sobre lavagem de dinheiro. Por que os oligarcas pensavam que Putin
era um bom candidato a presidente? Aí está a resposta. Podiam confiar que ele
não investigaria a corrupção offshore.
Durante anos, organizou um ‘tour’
sobre a lavagem de dinheiro em Londres. Ainda faz isso?
Não fazemos isso há algum tempo.
O Reino Unido está muito deprimente ultimamente. O Brexit absorveu todo o
oxigênio. Quando começamos, havia esperança. Conseguimos colocar o tema na
agenda. Mas desde o referendo, ninguém está interessado nisso.
Há todo um negócio em Londres, ou
no Estado de Delaware (Estados Unidos), e em muitos outros lugares, de empresas
dedicadas à criação de empresas.
As empresas precisam vir de algum
lugar, precisam estar em algum lugar, e é a isso que essas empresas se dedicam.
A ideia de uma empresa é muito boa, se você tem uma boa ideia de negócio, mas
fracassa, não é você que quebra como indivíduo, mas como empresa. É uma boa
ideia. Obviamente, não sou contra a existência de empresas. O problema é quando
são utilizadas para ocultar uma identidade.
É o problema que existe em
Delaware ou nas Ilhas Virgens Britânicas. São jurisdições cujo principal modelo
de negócios é vender empresas. E se o seu negócio é vender empresas, quanto
mais você vende, melhor. Você não procura verificar se estão usando essas
empresas para o bem. Porque isso custa dinheiro. No livro, uso o exemplo da
Harley Street, em Londres, um endereço no qual dezenas de empresas estão
localizadas, mas que não é pior do que qualquer outro lugar.
Critica os rankings que avaliam
os países com base na facilidade para abrir negócios.
É verdade que quando é muito
difícil abrir uma empresa, é muito difícil fazer negócios. Desse ponto de
vista, quanto mais fácil for, melhor. Mas chega um momento em que é fácil
demais. Os rankings sobre a facilidade de abrir uma empresa (o mais famoso é o
de Doing Business) não levam em conta que talvez, às vezes, seja fácil demais
em algumas jurisdições. Por exemplo, se você fizesse um ranking sobre
a facilidade de abrir uma conta em um banco e estabelecesse que quanto mais
fácil, sempre será melhor, deveria levar em conta que isso pode favorecer, por
exemplo, os traficantes de drogas. Ninguém considera isso nos rankings sobre a
facilidade de abrir empresas. Mas as empresas também são uma maneira de cometer
fraudes.
O ranking Doing Business tem
muitos problemas. Os países que desejam atrair investimentos estrangeiros
moldam deliberadamente suas políticas para aparecer bem nesse ranking. A
Rússia faz isso divulgando: “subimos vinte posições no ranking”. Chegará um
momento em que isso terá que parar.
Tente abrir uma empresa no Reino
Unido. Custará a você umas doze libras. E você pode colocar o que quiser. Recentemente,
observei os nomes dos titulares de empresas britânicas. Há muitas pessoas cujo
nome é simplesmente XXX. Havia até um que se chamava XXXStalin. Existem alguns
cujo nome é simplesmente MMMMMMMM. E o endereço também é MMMMMMMM. Qualquer
sistema de automação relativamente bom deveria reconhecer que esse nome não
corresponde a uma pessoa real.
O livro sugere que realmente há
mais incentivos para descumprir a lei do que para cumpri-la.
Sim. Quanto mais alto é um muro,
mais dinheiro você ganha ajudando alguém a pular o mesmo. Acredito que há duas
soluções para isso. Construir o muro mais alto, melhorar nossas
regulamentações. A outra é perseguir aqueles que ajudam os outros a descumprir
a lei: advogados, contadores, agentes de constituição de sociedades (company
formation agentes). Quando escrevi pela primeira vez sobre a Harley
Street, 20 pensei que a polícia entraria nessa empresa e a fecharia. Era
extraordinário demais o que faziam e há muito tempo. Mas, continua lá. Nada
mudou. Só mudou que agora também possuem outro endereço, também em Londres.
É necessário que mais pessoas
sejam presas e uma melhor cooperação entre países. Se você observa como o
dinheiro se movimenta na Europa, movimenta-se como se fosse apenas um país. Mas
a polícia não. Se temos um mesmo sistema económico, precisamos ter uma mesma
polícia.
Dá a sensação de que existem
apenas dois caminhos: voltar aos controles de capital e aos Estados-nação ou
aceitar uma globalização desregulamentada, onde abundam os paraísos fiscais.
Mas não é assim. Não devemos
aceitar isso. Temos a sorte de viver em democracias com instituições
relativamente honestas. Temos partidos que ainda respondem aos desejos dos
cidadãos. É possível mudar as coisas. Como cidadãos, ainda temos o poder de
dizer não. É óbvio que enfrentamos pessoas muito poderosas. Mas houve
progresso. Houve progresso nos últimos cinco anos, em termos de transparência.
Não foram os políticos que fizeram isso, mas os cidadãos que exigiram e os
políticos cumpriram. A mudança é possível, o que acontece é que é muito
difícil.
Contudo, não há um ‘demos’ global
que possa forçar essas mudanças.
Se você observa como Moneyland
funciona, isso afeta a todos. E existe em todo o mundo. Contudo, as pessoas que
roubam dinheiro, fazem isso porque querem gastá-lo. E é algo universalmente
estabelecido que as pessoas que roubam esse dinheiro, gastam nas mesmas coisas.
Compram Maseratis, vinhos de Bordeaux, mansões em Malibu ou apartamentos em
Londres. Sempre é a mesma coisa. Não são muito imaginativos.
Querem gastar o dinheiro em
nossos países. Isso nos dá muito poder. Se existe dinheiro da Venezuela que
chega a Madri, a Espanha pode verificar a origem desse dinheiro, pode fazer uma
seleção e até mesmo dizer que não quer esse dinheiro porque é roubado e provém
de um criminoso. É claro que, então, podem levar esse dinheiro para Miami. Mas
nosso poder não é qualquer coisa.
O poder que a Europa e a União
Europeia têm é muito maior do que pensamos. Somos como um gigante
adormecido. Temos muito poder brando com essas pessoas. Podemos dizer: “não
queremos o seu dinheiro, se é dinheiro roubado, vá gastá-lo em outro lugar, na
Mongólia”. Quando em Madri se vende uma casa para um cleptocrata, você não está
vendendo uma casa. Está vendendo segurança e proteção. Está vendendo paz e
civilização para indivíduos que não merecem nenhuma dessas coisas.
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