quinta-feira, 25 de março de 2021

A ‘chocada e apavorada’ geopolítica do século 21 | Pepe Escobar

Pepe Escobar* |  Dossier Sul

Levou 18 anos desde o Choque e Pavor no Iraque para que o Hegêmona ficasse impiedosamente chocado e apavorado com uma tabelinha diplomática Rússia-China praticamente simultânea.

Como esta é uma verdadeira virada de jogo não poderia ser enfatizada de melhor forma; a geopolítica do século 21 nunca mais será a mesma.

No entanto, foi o Hegêmona quem cruzou pela primeira vez o Rubicão diplomático. Os manipuladores por trás do holograma Joe “faço o que você quiser que eu faça, Nance” Biden haviam sussurrado em seu fone para rotular o presidente russo Vladimir Putin como um “assassino” desalmado, no meio de uma entrevista sem maiores embaraços.

Nem mesmo no auge da Guerra Fria as superpotências recorreram a ataques ad hominem. O resultado de um erro tão surpreendente foi arregimentar praticamente toda a população russa no apoio a Putin – porque foi percebido como um ataque contra o estado russo.

Depois veio a resposta fria, calma, recolhida – e bastante diplomática – de Putin, que precisava ser cuidadosamente ponderada. Estas palavras afiadas como um punhal são sem dúvida os cinco minutos mais devastadoramente poderosos da história das relações internacionais da era pós-verdade.

Em Para o Leviatã, faz muito frio no Alasca, previmos o que poderia acontecer no encontro EUA-China 2+2 em um hotel de má qualidade em Anchorage, com tigelas baratas de macarrão instantâneo jogadas como bônus extra.

O protocolo diplomático milenar da China estabelece que as discussões começam em torno de pontos em comum – que são então exaltados como sendo mais importantes do que desacordos entre as partes negociadoras. Isso está no cerne do conceito de “sem perda de face”. Só depois é que as partes discutem suas diferenças.

No entanto, era totalmente previsível que um bando de americanos amadores, sem tato e ignorantes esmagaria essas regras diplomáticas básicas para mostrar “força” à sua multidão em casa, destilando a proverbial ladainha sobre Taiwan, Hong Kong, Mar do Sul da China, “genocídio” de Uighurs.

Oh Deus. Não houve um no Departamento de Estado com conhecimento mínimo da Ásia Oriental para avisar os amadores que não se sai impunemente ao se meter com o formidável chefe da Comissão de Relações Exteriores do Comitê Central do PCC, Yang Jiechi.

Visivelmente assustado, mas controlando sua exasperação, Yang Jiechi revidou. E os tiros retóricos foram ouvidos em todo o Sul Global.

Eles tiveram que incluir uma lição básica de boas maneiras: “Se você quer lidar conosco adequadamente, vamos ter algum respeito mútuo e fazer as coisas da maneira correta”. Mas o que se destacou foi um diagnóstico preciso e conciso que misturou história e política:

Os Estados Unidos não estão qualificados para falar com a China de uma maneira condescendente. O povo chinês não vai aceitar isso. Deve-se estar baseado no respeito mútuo para lidar com a China, e a história provará que aqueles que procuram estrangular a China sofrerão no final.

E tudo isso traduzido em tempo real por uma jovem, atraente e ultra-especializada Zhang Jing – que inevitavelmente se tornou uma superstar da noite para o dia na China, colhendo surpreendentes mais de 400 milhões de visitas no Weibo.

A incompetência do braço “diplomático” da administração Biden-Harris é inacreditável. Usando uma manobra básica de Sun Tzu, Yang Jiechi virou a mesa e expressou o sentimento predominante da esmagadora maioria do planeta. Venham com sua “ordem unilateral baseada em regras”. Nós, as nações do mundo, privilegiamos a carta da ONU e a primazia do direito internacional.

Então foi isto que Rússia-China conseguiram quase instantaneamente: de agora em diante, o Hegêmona deve ser tratado, em todo o Sul Global, com desdém, na melhor das hipóteses.

Um processo histórico inevitável

Pré-Alaska, os americanos entraram em uma charmosa ofensiva no Japão e na Coréia do Sul para “consultas”. Isso é irrelevante. O que importa é o pós-Alaska e a crucial reunião dos ministros das Relações Exteriores Sergey Lavrov e Wang Yi em Guilin.

Lavrov, sempre imperturbável, esclareceu em uma entrevista à mídia chinesa como a parceria estratégica Rússia-China vê o atual descarrilamento diplomático dos EUA:

De fato, eles perderam em grande parte a habilidade da diplomacia clássica. A diplomacia tem a ver com as relações entre as pessoas, com a capacidade de ouvir uns aos outros e de encontrar um equilíbrio entre os interesses conflitantes. Estes são exatamente os valores que a Rússia e a China estão promovendo na diplomacia.

A consequência inevitável é que Rússia e China devem “consolidar nossa independência”: “Os Estados Unidos declararam como seu objetivo limitar o avanço da tecnologia na Rússia e na China”. Portanto, devemos reduzir nossa exposição a sanções, fortalecendo nossa independência tecnológica e migrando para acordos em moedas nacionais e internacionais que não o dólar. Precisamos deixar de utilizar sistemas de pagamento internacionais controlados pelo Ocidente”.

Rússia e China identificaram claramente, como Lavrov apontou, como os “parceiros ocidentais” estão “promovendo sua agenda voltada para a ideologia com o objetivo de preservar seu domínio, impedindo o progresso em outros países”. Suas políticas são contrárias aos desenvolvimentos internacionais objetivos e, como eles costumavam dizer em algum momento, estão no lado errado da história. O processo histórico entrará em seu próprio ritmo, não importa o que aconteça”.

Como uma apresentação categórica de um “processo histórico” inevitável, não poderia ser mais claro do que isso. E, previsivelmente, não levou tempo para que os “parceiros ocidentais” voltassem a cair – o que mais – no mesmo velho saco de truques das sanções.

Aqui vamos novamente: uma “aliança” dos Estados Unidos, Reino Unido, União Européia, Canadá sancionando funcionários chineses selecionados porque, nas palavras de Blinken, “a RPC [República Popular da China] continua a cometer genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang”.

A União Européia, o Reino Unido e o Canadá não tiveram a coragem de sancionar um jogador-chave: O chefe do partido de Xinjiang, Chen Quanguo, que é um membro do Politburo. A resposta chinesa teria sido – economicamente – devastadora.

Ainda assim, Pequim contra-atacou com suas próprias sanções – visando, crucialmente, o fanático evangélico alemão de extrema-direita que fazendo-se passar por “erudito” produziu a maior parte da “prova” completamente desmascarada de que havia um milhão de Uighurs mantidos em campos de concentração.

Mais uma vez, os “parceiros ocidentais” são impermeáveis à lógica. Acrescentando ao já terrível estado das relações entre a UE e a Rússia, Bruxelas escolhe também antagonizar com a China com base em um único dossiê falso, jogando diretamente na agenda não exatamente secreta do Hegêmona de Dividir e Governar.

Missão (quase) cumprida: Diplomatas de Bruxelas me dizem que o Parlamento da UE está quase pronto para se recusar a ratificar o acordo comercial China-UE negociado com cuidado por Merkel e Macron. As consequências serão imensas.

Portanto, Blinken terá razões para estar alegre quando se encontrar com diversos eurocratas e burocratas da OTAN esta semana, antes da cúpula da Organização.

É preciso aplaudir a ousadia dos “parceiros ocidentais”. Faz 18 anos do Choque e Pavor – o início dos bombardeios, invasões e destruição do Iraque. Passaram-se 10 anos desde o início da destruição total da Líbia pela OTAN e seus lacaios do Conselho de Cooperação do Golfo, com Obama e Biden “liderando por trás”. Passaram-se 10 anos desde o início da destruição selvagem da Síria por procuração – completada com jihadis disfarçados de “rebeldes moderados”.

No entanto, agora os “parceiros ocidentais” estão mortificados com a situação dos muçulmanos na China Ocidental.

Pelo menos há algumas fendas dentro do circo ilusionista da UE. Na semana passada, o Círculo de Reflexão Conjunto das Forças Armadas Francesas (CRI) – na verdade um think tank independente de ex-oficiais superiores – escreveu uma carta aberta e surpreendente ao secretário-geral da OTAN, Stoltenberg, o acusando de fato de se comportar como um fantoche americano com a implementação do plano OTAN 2030. Os oficiais franceses tiraram a conclusão correta: a combinação EUA/OTAN é a principal causa das terríveis relações com a Rússia.

Estes Idos de Março

Enquanto isso, a histeria das sanções avança como um trem desgovernado. Biden e Harris já ameaçaram impor sanções extras às importações de petróleo chinês do Irã. E há mais no oleoduto – sobre fabricação, tecnologia, 5G, cadeias de abastecimento, semicondutores.

E, no entanto, ninguém está tremendo nas bases. Bem na hora de Rússia e China, o Irã intensificou o jogo, com o Ayatollah Khamenei emitindo as diretrizes para o retorno de Teerã ao JCPOA.

1. O regime americano não está em posição de fazer novas exigências ou mudanças em relação ao acordo nuclear.

2. Os EUA estão mais fracos hoje do que quando o JCPOA foi assinado.

3. O Irã está em uma posição mais forte agora. Se alguém pode impor novas exigências, é o Irã e não os EUA.

E com isso temos uma tripla bofetada Rússia-China-Irã sobre o Hegêmona.

Em nossa última conversa/entrevista, a ser lançada em breve em um pacote de vídeo + transcrição, Michael Hudson – indiscutivelmente o maior economista do mundo – foi ao cerne da questão:

A luta contra a China, o medo da China é que você não pode fazer com a China o que você fez com a Rússia. Os Estados Unidos adorariam que houvesse uma figura Yeltsin na China para dizer, vamos apenas dar todas as ferrovias que você construiu, o trem de alta velocidade, vamos dar a riqueza, vamos dar todas as fábricas a indivíduos e deixar que eles administrem tudo e, em seguida, vamos emprestar-lhes o dinheiro, ou vamos comprá-los e depois podemos controlá-los financeiramente. E a China não vai deixar que isso aconteça. E a Rússia impediu que isso acontecesse. A fúria no Ocidente é que, de alguma forma, o sistema financeiro americano é incapaz de assumir os recursos estrangeiros, a agricultura estrangeira. Resta apenas os meios militares para capturá-los, como estamos vendo no Oriente próximo e  está se vendo na Ucrânia neste momento.

Isto continua. Tal como está, devemos todos nos certificar de que os Idos de março – a versão 2021 – já tenham configurado um tabuleiro de xadrez geopolítico novinho em folha. A Dupla Hélice Rússia-China deixou a estação sobre trilhos de alta velocidade – e não há mais retorno.

*Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

Originalmente em Asia Times

 Dossier Sul

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