quinta-feira, 20 de maio de 2021

Para que raio serve a democracia?

Pedro Tadeu | Diário de Notícias | opinião

Em 1882, o vocábulo "pogrom" foi registado pela primeira vez em inglês para designar a violência anti-semita no Império Russo. De acordo com o professor Colin Tatz, entre 1881 e 1920 houve 1.326 pogroms só na Ucrânia, que mataram 70 mil a 250 mil judeus civis, deixando meio milhão de desalojados.

Essa violência racista, que estava disseminada por toda a Europa Oriental, gerou nessa época uma onda de migração judaica para o oeste, grande parte dela para os Estados Unidos da América, que totalizou cerca de 2,5 milhões de pessoas.

Mas no ocidente europeu as perseguições violentas aos judeus também eram frequentes.

Em França, no fecho do século XIX, houve manifestações com milhares de pessoas a gritar "morte aos judeus" na sequência do caso Dreyfus.

As agressões contra os judeus eram frequentes em regiões da atual Alemanha, Áustria e Hungria.

No Reino Unido o anti-semitismo é recorrente e chega aos nossos dias. Em 1904, na Irlanda , o boicote de Limerick, que excluia os judeus da vida económica, fez com que várias famílias judias deixassem a cidade. Durante o motim de Tredegar, em 1911 no País de Gales, casas e negócios de judeus foram saqueados e queimados. Na Palestina sob administração britânica, os judeus foram os alvos no massacre de Hebron em 1929 e do pogrom de 1929 em Safed.

E depois houve a II Guerra Mundial e o Holocausto de Hitler: 6 a 7 milhões de judeus assassinados, com setores populacionais de França e de vários países do Leste, entretanto ocupados pelos nazis, a ajudarem ao genocídio.

Este horror que descrevo é apenas uma pequena amostra da dimensão da perseguição euro-cristã-ocidental aos judeus nos últimos 150 anos e ignora milénios de massacres e perseguições anteriores, como as que aconteceram em Portugal.

Para acabar de vez com isto o jornalista Theodore Herzl, o inventor do sionismo político, propusera em 1896, num livro intitulado "O Estado Judaico", a fundação de uma "república aristocrática," governada por judeus e que se situasse fora da Europa. Para defender a localização desse Estado na Palestina, como veio a acontecer a partir de 1948, avançou, entre outros, com este argumento: essa zona seria "parte da muralha da Europa contra a Ásia... um posto avançado da cultura contra a barbárie".

O Estado de Israel dos nossos dias está a matar populações civis palestinianas, incluindo crianças, como, apesar das dificuldades em obter informação rigorosa, foi amplamente noticiado pelas agências noticiosas internacionais.

Esta resposta a um ataque com rockets feito pelo Hezbolah palestiniano é claramente desproporcionada e viola, sem desculpa, os direitos humanos de milhares de civis (a conta, por baixo, vai em 200 mortos e 60 mil desalojados em apenas nove dias).

O que está em curso é uma limpeza étnica na Cisjordânia e uma matança em Gaza. Não se chama pogrom, mas é, ironia trágica, algo bastante parecido.

O poder político na Europa tem na consciência o peso moral da perseguição milenar aos judeus, que culminou no Holocausto nazi, e de não conseguir, ainda hoje, eliminar dentro de portas o anti-semitismo. Mas tem também no raciocínio a lógica calculista de ver Israel como uma ponta de lança da sua própria expansão civilizacional, "da cultura contra a barbárie", como escreveu Herzl. Antigamente chamavam a esta arrogância de "imperialismo", hoje em dia dizem-nos que é "defesa da democracia".

E é em nome dessa visão corrompida e corruptora da "defesa da democracia" que os Estados Unidos da América lideram a hipocrisia diplomática que poupa Israel a pressões internacionais consequentes, isto depois de ter promovido a normalização das relações israelitas com belos exemplos de "democracia" como são a Arábia Saudita, o Bahrein, os Emirados Árabes Unidos, para além do Egito.

O apoio árabe aos "antidemocráticos" palestinianos é agora pueril e a miragem da coexistência pacífica de dois estados na Palestina desvanece-se em areia.

Quando leio gente supostamente humanista a defender que apesar dos "excessos" (que eufemismo cruel para uma chacina, caramba!...) há que escolher um lado entre Israel e palestinianos e esse lado tem de ser o da democracia e, por isso, é o lado de Israel, tenho de contrapor: se a democracia serve para legitimar crimes contra a humanidade, para que raio queremos a democracia?

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