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Justiça britânica cede a Washington e pode extraditar jornalista que revelou crimes de guerra no Afeganistão e Iraque. O que a decisão bizarra revela sobre um império que não reflete sobre suas derrotas, nem desiste de perseguir seus dissidentes
Chip Gibbons | na Jacobin |
Na manhã de 11 de agosto de
Washington solicitou a deportação do jornalista australiano com base em 17 acusações de violação da Lei de Espionagem e uma acusação de “conspiração para cometer invasão de computador”. As acusações da Lei de Espionagem vêm da publicação, pelo WikiLeaks, de telegramas do Departamento de Estado, das Regras de Engajamento do Iraque e dos resumos de avaliação de detentos da Baía de Guantánamo. É um marco: a primeira vez que alguém que publica informações verdadeiras é indiciado sob a Lei de Espionagem.
O caso é ainda mais preocupante pelo fato de Assange ser um cidadão australiano que opera fora dos Estados Unidos. Washington não está apenas afirmando que pode processar jornalistas por exporem seus crimes de guerra, mas que perseguirá qualquer jornalista em qualquer lugar do mundo por isso.
Em janeiro de 2021, Vanessa Baraitser, juíza distrital do Reino Unido, bloqueou o pedido de extradição feito pelos EUA. Não o fez com base nos argumentos que diziam que a extradição de Assange ameaçava a liberdade de imprensa. Em vez disso, baseou sua decisão apenas em argumentos que questionavam as condições das prisões norte-americanas e a saúde mental de Assange. Ela acreditava que a extradição seria opressiva para o jornalista e que ele corria alto risco de cometer suicídio em uma prisão dos EUA.
O caso deveria ter terminado aí. Os Estados Unidos obteriam uma vitória técnica jurídica por sua alegação de que podem acusar de espionagem jornalistas de qualquer parte do mundo, ao mesmo tempo em que seriam aliviados do fardo de ter de prosseguir com uma perseguição política repulsiva e escancarada a um jornalista.
Mas insistiram. Washington recorreu da decisão da juiza Baraitser com base em cinco motivos. Lhes foi inicialmente concedido o direito de apelar em apenas três deles. Poderiam recorrer tendo como base o fato de que a juíza deveria ter notificado o país de suas decisões preliminares sobre o efeito das condições carcerárias dos EUA e sobre a saúde mental de Assange, para que pudessem oferecer garantias em suas condições de confinamento. Também lhes foi permitido recorrer com base nessas garantias, inclusive com alegações de que os Estados Unidos permitiriam que Assange cumprisse sua pena na Austrália.
Os Estados Unidos foram, no entanto, impedidos de recorrer das conclusões da juíza em relação às evidências médicas apresentadas no julgamento. Especificamente, Washington argumentava que as provas de uma das testemunhas de defesa deveriam ter sido consideradas inadmissíveis ou pouco valorizadas, e que a juíza cometeu um erro ao avaliar o risco de suicídio de Assange. Após a última decisão da corte inglesa, os promotores poderão reftar também essas questões. Uma audiência de apelação está agendada para 27 de outubro e levará dois dias.
Graças ao tratado de extradição EUA-Reino Unido de 2003, os Estados Unidos são representados pelos promotores ingleses, e a conta é paga pelo povo britânico. Isso se soma aos milhões que o Reino Unido gastou vigiando a embaixada do Equador, onde Assange buscou refúgio por sete anos.
“Eu não consigo entender”
A acusação começou com a alegação de que a juíza não havia feito sua decisão levando em conta a saúde mental atual de Assange, mas como ela estaria no futuro. Embora a defesa tenha apresentado provas periciais sobre este ponto, uma testemunha de acusação argumentou que não se pode prever a probabilidade de alguém cometer suicídio com mais de seis meses de antecedência.
A promotoria argumentou ainda que
as testemunhas de defesa confiaram nas alegações feitas por Assange. Embora, de
acordo com a acusação, qualquer pessoa que dispute o pedido extradição por
coação mental deva ser sujeita a escrutínio, as alegações de Assange precisam
ser examinadas
A maior parte da audiência se concentrou
nas descobertas de Michael Kopelman, professor emérito de neuropsiquiatria do
King’s College,
Os temores não eram infundados: um ex-funcionário da empresa de segurança privada UC Global testemunhou que a firma havia discutido com as agências de inteligência dos Estados Unidos o envenenamento ou sequestro de Assange. Planejaram ainda roubar a fralda de um dos filhos de Assange, a fim de coletar DNA para provar sua ascendência. Foi isso que fez com que os pais temessem pela segurança de seus filhos.
De acordo com a defesa, embora Kopelman tenha optado por não divulgar essas informações no relatório preliminar, ele planejava buscar aconselhamento jurídico sobre como lidar com as preocupações de Morris com sua privacidade e suas obrigações para com o tribunal. Antes que ele pudesse fazer isso, Assange e Morris revelaram seu relacionamento aos oficiais do tribunal. Depois, Morris divulgou sua história à mídia.
O relatório subsequente feito por Kopelman continha as informações completas. A defesa argumentou que a ideia de que ele teria ocultado permanentemente essa informação do tribunal não era plausível. No mínimo, teria procurado meios confidenciais para divulgar essas informações ao tribunal e à promotoria. […] Mas a acusação sustenta que, como isso foi omitido do relatório preliminar, todas as provas apresentadas pelo psiquiatra seriam inadmissíveis ou deveriam receber pouco peso como prova.
No final, a juíza decidiu que o relatório inicial era mesmo enganoso – reconhecendo que esta era uma “resposta humana compreensível à situação difícil da srta. Morris”. Mas apontou que, no momento em que o tribunal ouviu qualquer uma das evidências médicas, a natureza completa do relacionamento de Assange com Morris já era conhecida. Portanto, embora o relatório de dezembro fosse enganoso, o tribunal em nenhum momento fora realmente enganado. Dada a totalidade das circunstâncias, incluindo um segundo relatório e o compartilhamento das anotações, a juíza considerou o distinto neuropsiquiatra confiável e imparcial.
Ao proferir a decisão mais recente, o juiz britânico Timothy Holroyde observou que é extremamente raro um tribunal superior questionar as decisões de um juiz em questões como essas. Mesmo assim, decidiu que essa seria uma das raras exceções. Da mesma forma, admitiu que, na maioria das circunstâncias, a decisão de um juiz sobre um risco individual de suicídio não seria passível de apelação. Mas, se a acusação foi autorizada a apelar da admissibilidade ou peso do testemunho do especialista, também deveria ter permissão para recorrer da conclusão de que Assange estaria em risco de suicídio se transferido para os Estados Unidos.
Após a audiência e antes que a transmissão ao vivo fosse cortada, Assange (que compareceu por videoconferência da prisão de Belmarsh) pôde ser ouvido dizendo a seus advogados: “Eu não consigo entender. Um especialista tem a obrigação legal de prevenir danos, especialmente para meus dois filhos.”
Capturar Assange, custe o que custar
Essa última audiência pode parecer mesquinha para muitos. Um recurso contra a decisão de bloquear a extradição teria acontecido de qualquer maneira. Também pode parecer cruel. A ideia é um pouco complicada, mas parece ser a seguinte: o fato de Assange ter recebido asilo político significa que qualquer reclamação sobre sua saúde mental precisa de um exame mais minucioso. As afirmações dos promotores de que as preocupações com a segurança de seus filhos eram inválidas porque a segurança “foi deixada de lado” quando ele optou por publicar informações sigilosas são particularmente cruéis.
Mas o último recurso preliminar foi uma prova de quão longe os Estados Unidos e o Reino Unido estão dispostos a ir para capturar Assange.
Julian Assange está na mira de Washington desde que lançou o vídeo “Collateral Murder”, em que mostrava armas norte-americanas disparando e assassinando mais de dezoito pessoas, incluindo dois jornalistas da Reuters, e ferindo duas crianças.
Ele passou sete anos na Embaixada
do Equador em Londres, submetido ao que um grupo de trabalho da ONU considerou detenção
arbitrária. O Relator Especial da ONU sobre Tortura concluiu que Assange é vítima de
tortura psicológica. E, como expôs o
jornal UK Declassified, o governo do Reino Unido estava tão empenhado
As questões levantadas na audiência preliminar podem ser estritamente jurídicas, mas são apenas as tentativas mais recentes dos Estados Unidos de silenciar um de seus críticos. O caso de Assange despertou considerável protesto global. A acusação tem fortes implicações para o futuro da liberdade de imprensa em todo o mundo. Como resultado, grupos de liberdade de imprensa e de liberdade civil dos EUA, grupos internacionais de direitos humanos e jornais convencionais se opuseram a essa extradição.
Dado que os crimes de Assange dizem respeito a revelações sobre crimes de guerra dos EUA e negociações sujas por parte do Departamento de Estado, tanto ativistas antiguerra quanto líderes políticos no Sul Global se juntaram aos defensores da liberdade de imprensa para apoiar Assange.
Antes da última audiência, Jeremy Corbyn, ex-líder do Partido Trabalhista inglês, falou aos manifestantes reunidos em frente ao tribunal. Enfatizou que muitos jornalistas arriscaram sua própria segurança para expor a corrupção e os crimes cometidos em nome de todos. Corbyn argumentou que Assange fazia parte da “grande tradição do grande jornalismo destemido”.
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A luta por Assange não acabou. O Tribunal Superior do Reino Unido ainda não tomou nenhuma decisão sobre o recurso subjacente. Mas, ao permitir aos Estados Unidos a oportunidade de contestar a avaliação do testemunho médico de um juiz, eles tornaram mais fácil para o Reino Unido entregar o jornalista nas garras do império dos EUA.
*Chip Gibbons -- É diretor de políticas da Defending Rights e da Dissent. Apresentou o podcast Still Spying, que explorou a história da vigilância política do FBI. Está atualmente trabalhando em um livro sobre a história do FBI, explorando a relação entre a vigilância política doméstica e o surgimento do estado de segurança nacional dos EUA.
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