Vinte anos depois, EUA deixam o Afeganistão de novo na mão dos talibãs
Norte-americanos dão por encerrado o ciclo de 20 anos de presença militar no Afeganistão, com a retirada do último avião. "Não retirámos toda a gente que queríamos", admite o Pentágono
s militares norte-americanos anunciaram esta segunda-feira a saída dos últimos soldados dos Estados Unidos do Afeganistão, encerrando assim um conflito de 20 anos e que terminou com o assalto dos talibãs ao poder no pais asiático.
"Estou aqui para anunciar a conclusão de nossa retirada do Afeganistão", disse o comandante do Comando Central, general Kenneth McKenzie.
O comandante das forças militares americanas no Afeganistão e o embaixador de Washington foram os últimos a embarcar no último avião norte-americano a retirar-se de Cabul. "No último avião a sair estava o general Chris Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransportada e meu comandante de força terrestre lá, acompanhado pelo embaixador Ross Wilson", afirmou.
Na capital do Afeganistão, ouviram-se tiros comemorativos vindos de vários pontos de controlo dos talibãs, bem como aplausos dos combatentes que comandavam os postos de segurança. "À meia-noite, hora do Afeganistão, as tropas americanas que restavam no país deixaram o aeroporto de Cabul e o nosso país ganhou independência total", escreveu o porta-voz dos talibãs, Zabihullah Mujahid, no Twitter.
Os voos da operação de retirada levaram mais de 123 mil pessoas do aeroporto de Cabul, menos do que era desejado, de acordo com McKenzie. "Há muita dor de cabeça associada a esta saída. Não retirámos toda a gente que queríamos. Mas acho que se tivéssemos ficado mais dez dias, não teríamos retirados todos os que queríamos", admitiu, frisando que os talibãs foram prestáveis e úteis na condução da retirada e na manutenção da segurança em redor do aeroporto, apesar da profunda inimizade entre as duas partes.
Entretanto, Joe Biden anunciou que vai falar esta terça-feira ao povo norte-americano sobre a saída final dos Estados Unidos do Afeganistão. "Amanhã à tarde, falarei ao povo americano sobre a minha decisão de não estender a nossa presença no Afeganistão além de 31 de agosto", afirmou, em comunicado.
O presidente norte-americano elogiou o trabalho dos militares. "Nos últimos 17 dias, as nossas tropas realizaram o maior transporte aéreo da história dos Estados Unidos, evacuando mais de 120 mil cidadãos americanos, cidadãos dos nossos aliados e aliados afegãos dos Estados Unidos", disse Biden. "Eles fizeram-no com coragem, profissionalismo e determinaão incomparáveis. Agora, a nossa presença militar de 20 anos no Afeganistão terminou", acrescentou, à espera que os talibãs cumpram o que prometeram.
"A comunidade internacional espera que os talibãs cumpram os seus compromissos, nomeadamente a liberdade de viajar. Os talibãs comprometeram-se a garantir uma passagem segura e o mundo vai obrigá-los a cumprir os seus compromissos", frisou.
Os Estados Unidos e os seus aliados invadiram o Afeganistão em outubro de 2001, depois de os talibãs se terem recusado a entregar o então líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, considerado o principal responsável pelos ataques terroristas de 11 de setembro, que tinham acolhido no país.
A invasão também pôs fim ao primeiro governo dos talibãs (1996-2001), que regressaram ao poder no passado dia 15 de agosto, após uma ofensiva que coincidiu com o início da retirada das forças internacionais.
Milhares de afegãos com medo dos talibãs têm afluído diariamente ao aeroporto de Cabul desde 15 de agosto, de onde as forças internacionais retiraram mais de 100.000 pessoas desde então.
A conclusão de uma tensa retirada
Foi sob conselho dos militares que o presidente dos Estados Unidos decidiu antecipar a retirada das tropas de 11 de setembro para 31 de agosto, uma jogada que pelas consequências o levou a ser comparado, pelos piores motivos, a Jimmy Carter, em referência à tomada da embaixada de Teerão em 1979. "Os nossos comandantes militares aconselharam-me que, uma vez tomada a decisão de acabar com a guerra, precisávamos de avançar rapidamente para conduzir os principais elementos da retirada e, neste contexto, a velocidade é segurança", explicou Joe Biden em 8 de julho, dias depois de a principal base militar, Bagram, ter sido abandonada, e os seus 5000 presos libertados. Menos de dois meses depois dessa saída que hoje alguns apontam como precipitada, os Estados Unidos deram esta segunda-feira por concluída a sua presença numa guerra de 20 anos.
A fatura é pesada: milhares de vidas, milhares de milhões em despesas militares e em financiamento de um regime corrupto e que termina com o claro símbolo da derrota após o atentado terrorista no aeroporto da capital afegã que matou mais de 100 pessoas, entre as quais 13 soldados norte-americanos. E a perspetiva de mais um banho de sangue nas últimas horas da presença militar dos EUA em solo controlado na quase totalidade pelos talibãs.
Prova desse perigo deu-se no domingo à noite, quando elementos do Estado Islâmico lançaram cinco foguetes junto do aeroporto de Cabul. Um sistema de defesa destruiu um outro míssil. O Estado Islâmico assumiu a responsabilidade pelo ataque, segundo um canal do Telegram afiliado ao grupo terrorista. Três dos foguetes aterraram fora do perímetro do aeroporto, e um aterrou no interior mas não causou feridos, disse o general Hank Taylor. Um sistema de defesa antimísseis impediu o sucesso do ataque, segundo o militar.
Horas antes as forças norte-americanas lançaram um ataque aéreo a um veículo em Cabul que, segundo as autoridades, transportava explosivos e era uma ameaça "iminente" do Estado Islâmico. Porém, segundo testemunhos locais, o ataque aéreo resultou na morte de 10 civis, alguns dos quais crianças. Perante estes relatos, o Pentágono optou por não fazer um desmentido. "Não estamos em posição de o refutar neste momento", disse o porta-voz da Defesa, John Kirby.
O Pentágono alegou que existe uma ameaça contínua, "real" e "muito concreta" quer às tropas remanescentes no terreno quer aos civis afegãos no aeroporto, onde as forças da coligação estão a terminar a missão de retirada. "Estamos a operar sob o pressuposto de que precisamos de estar preparados para futuras ameaças potenciais", disse Kirby a horas do fim da operação que desde 14 de agosto e até ontem retirara 122 mil pessoas, entre as quais 5400 norte-americanos.
Já o general Taylor mostrou-se confiante de que será possível retirar os cidadãos norte-americanos que ainda estão no Afeganistão até ao último momento. "O objetivo da operação de retirada era ajudar o maior número possível de pessoas a sair do Afeganistão", comentou.
Diplomacia nos mínimos
À esperada tomada do aeroporto de Cabul pelos fundamentalistas - e a quase todo o território afegão, com exceção do vale do Panshir, onde milhares de combatentes se juntaram a Ahmad Massud, o filho do "leão do Panshir" - o mundo civilizado reage nos corredores da diplomacia com uma aproximação pelos mínimos. No fim de semana o presidente francês Emmanuel Macron anunciou no Journal du Dimanche que Paris e Londres iriam apresentar uma resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas para se criar uma zona de segurança no aeroporto de Cabul gerida pela ONU e que permitiria a continuação da expatriação dos afegãos que o pretendessem.
No entanto, a resolução aprovada na segunda-feira não contempla qualquer papel das Nações Unidas nem a criação de uma zona de segurança. "Tenho muita esperança de que seja bem-sucedida. Não vejo quem poderia ser contra a segurança de trabalhos humanitários", disse Macron.
À AFP, peritos explicaram que o texto foi modificado para assegurar que a China e a Rússia - países com quem os talibãs encetaram contactos diplomáticos - não vetassem o documento. Desta forma, a resolução limita-se a um apelo para que os talibãs cumpram a palavra e permitam a saída livre das pessoas do país e "um acesso pleno, seguro e sem entraves" para que as Nações Unidas e outras agências prestem assistência humanitária.
César Avô e David Pereira c/agências | Diário de Notícias
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