As autoridades nacionais e a sobressaltada comunicação social corporativa permanecem inactivos perante um terramoto que arrasa os mais elementares direitos dos cidadãos.
José Goulão* | AbrilAbril | opinião
Recorrendo a um velho chavão do jornalismo, a notícia caiu como uma bomba nas redacções e logo se expandiu célere pela grei, que mais alarmada não poderia ficar: a Câmara Municipal de Lisboa denunciou à embaixada da Rússia as identificações de activistas que se manifestaram em Lisboa por um abnegado prosélito da resistência anti-Putin. Como deve ser nestas ocasiões de extrema gravidade para a nação, o chefe de Estado tomou as dores da comunidade e em palavras enfáticas manifestou a sua revolta – que é a revolta de todos – com o comportamento municipal. Pena é que o mesmo chefe de Estado e as carpideiras mediáticas não expressem ira semelhante quando a mesma Câmara Municipal partilha com a embaixada de Israel e a benigna Mossad as identidades de activistas portugueses e palestinianos que não concordam com as chacinas em Gaza e a limpeza étnica praticadas pelo Estado sionista.
É óbvio que a Câmara Municipal de Lisboa procede indevidamente ao partilhar com entidades estrangeiras dados que lhe são confiados no âmbito das suas actividades e funções. É um mau princípio, um errado comportamento, no fundo um abuso de confiança contra cidadãos que se responsabilizam por actos em que se expressam direitos democráticos como a liberdade de expressão, de opinião, de manifestação. Seja contra autoridades de países amigos, inimigos ou assim-assim.
Vejamos, entretanto, o mesmo assunto sob outro ângulo. Será que o bombástico acontecimento ganhou tais proporções apenas porque encaixa às mil maravilhas no contexto russófobo em que a opinião pública tem vindo a ser educada?
Apreciemos as coisas ainda de outra perspectiva. Será a Câmara Municipal de Lisboa a única entidade a incorrer em casos de ataque à privacidade de cidadãos enquanto à sua volta tudo são rosas neste campo?
Não é necessária uma investigação muito profunda para percebermos que não. A Câmara Municipal de Lisboa limita-se a cavalgar a onda da devassa irresponsável e generalizada das nossas vidas que caracteriza os tempos em que vivemos. O atormentado chefe de Estado e os excitados agentes mediáticos que, num prodígio de imaginação, detectaram que Portugal também tem o seu «Russiagate», poderiam informar-se e informar-nos sobre a assustadora maré de bufaria que nos assalta à escala global.
Falemos então de partilha de dados.