quarta-feira, 29 de junho de 2022

Portugal | OS MISERAVEIS DE 2022

Eduardo Oliveira e Silva |  jornal i | opinião

Há uma impenetrável vida nos diversos mundos e submundos da sociedade portuguesa que de repente salta à vista horrorizando a comunidade dita normal.

1. Quem diria que mais de 48 anos depois do 25 de Abril, proclamado como um feito para o povo e em nome do povo, haveríamos, embora em paz e democracia, de estar ainda confrontados com tantas franjas da população a viver numa miséria económica, social e moral? Porém, desde o dia em que Portugal se tornou mero candidato à então CEE, recebemos milhares de milhões de fundos de pré-adesão e estruturais. Mas, apesar dos progressos, continuamos na cauda da Europa e cheios de problemas humanos.

O drama da criança de Setúbal (que tinha cinco irmãos dados à assistência e que provavelmente nunca viu), outros de violência doméstica e de todos os tipos que vemos diariamente só são diferentes quando saltam para plano mediático que, em regra, os explora à exaustão por mero espetáculo, que, ainda assim, adota o politicamente correto como a omissão étnica ou nacional de alguns envolvidos. Em contrapartida, há dias, a propósito de uma burla, o pudico Público não hesitou em especificar que a arguida é sobrinha neta de um ex-Presidente da República, como se isso tivesse relevância.

Por todo o lado, no continente e nas ilhas, nas cidades, nos subúrbios, nas aldeias, nos campos, há situações de grande violência física, psicológica e total marginalidade, criminosa ou não. Vê-se gente a viver na maior pobreza económica, moral e num isolamento desolador. Há uma impenetrável vida nos diversos mundos e submundos da sociedade que de repente salta à vista. Os factos horrorizam a comunidade. Esta revolta-se, às vezes com violência, contra os criminosos, contra um Estado incapaz nas suas vertentes de justiça e proteção, no fundo contra si própria, o que facilita a afirmação de certas correntes políticas extremistas de esquerda e de direita. A existência de verdadeiros guetos, de crimes crapulosos, de violência sexual, de extorsão, de rixas de gangs, de ajustes de contas, de rezas, de feitiços ou amarrações não são exclusivo dos meios pobres. Mas é neles que assumem maior frequência, o que resulta do acumular de desgraças sem saída.

Quase meio século depois do 25 de Abril, olhamos para os mais pobres de nós e verificamos que, em muitos casos, tirando os lenços da cabeça que caíram em desuso, há muita gente que parece saída de uma imagem a preto e branco do arquivo da RTP. Gente que não sabe exprimir-se, que está desdentada, que nada tem e cujo interesse maior é viver intensamente um ‘Big Brother’ do momento. Assim sobrevive sem se aperceber que é também vítima porque tinha dez anos na revolução e que hoje deveria estar noutro patamar de educação, de desenvolvimento, de apreensão da realidade, de responsabilidade cívica, beneficiando de algum conforto e de uma assistência digna, em nome da qual a Europa nos mandou comboios de dinheiro.

Teria sido fundamental que o Estado, em vez de se tornar autofágico e falsamente assistencialista, se tivesse assumido como criador de oportunidades, riqueza e um fiscalizador e não um glutão. Situações como a de Setúbal há em muitos países bem mais desenvolvidos e que têm, como a França, problemas agravados com a criminalidade juvenil, ódios raciais e religiosos que entre nós existem incipientemente. Não serão as intervenções de especialistas, de polícias e todo o tipo de autoridades e comentadores que vão mudar a nossa realidade. Outros casos acontecerão e alguns vão voltar a chocar, como ainda se viu segunda-feira com o abandono de um bebé num contentor.

Ao menos que o de Setúbal sirva para prevenir um ou dois dramas potenciais, através de alertas de gente que ligue, por exemplo, o número específico para assinalar crianças em perigo. É preciso é que, depois, haja sequência e responsabilidade. Se assim for, nem que seja uma vez, já se poderá retirar algo de menos mau de um caso tão sórdido, tão sádico e tão ilustrativo das muitas vidas miseráveis que ainda há em Portugal em 2022. 

2. As atenções políticas vão virar-se para o PSD, com o congresso de entronização de Luís Montenegro a realizar-se no fim de semana no Porto, pois claro. Dali sairá a equipa do novo líder e, como é habitual com as eleições de órgãos como o conselho nacional, poderemos interpretar os equilíbrios internos, que, hoje, no PSD, são momentâneos e não ideológicos. Espera-se que resulte finalmente alguma coisa parecida como uma oposição nacional (e não regional) firme e que construa uma alternativa. A degradação social e económica não permite excluir liminarmente a hipótese de uma crise geradora de instabilidade política.

As maiorias absolutas são uma defesa sólida contra as crises, mas também explodem por motivos imprevistos. Sublinhe-se que só a existência de uma efetiva oposição, pode permitir ao presidente Marcelo ser mais exigente com Costa. Até agora, o PR tem sido acima de tudo um “justificador” oficial de todos os erros e dislates do governo. Daqui para a frente, espera-se que, mesmo contrariando o seu temperamento, Marcelo assuma totalmente o seu segundo mandato, sendo mais crítico, mais imperativo e mais exigente. Assim foram Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. E não foi por isso que os portugueses deixaram de os admirar. 

3. Entretanto, o primeiro grande debate em que liderou a bancada do PSD correu bem a Paulo Mota Pinto. Encostou António Costa aos temas mais complicados do momento, como a saúde. Optou por compartimentar a sua intervenção, o que deu vivacidade política ao momento. Não se sabe ainda se Montenegro e Mota Pinto acertaram a recandidatura ou não do líder parlamentar. Este é eleito exclusivamente pelos deputados (maioritariamente escolhidos por Rio), mas tem de se conciliar permanentemente com o líder. Não é fácil arranjar um substituto com a mesma autoridade política e curricular que Mota Pinto (catedrático, ex-juiz do Tribunal Constitucional), embora haja vários nomes possíveis na bancada. Fala-se, a justo título, de Baptista Leite. Nos bastidores circula também a hipótese de ser uma mulher, eventualmente a jovem deputada Márcia Passos, que tem mostrado capacidade política.

Só uma mulher – Manuela Ferreira Leite – ocupou o cargo de líder parlamentar do PSD, na altura com grande eficácia. Estando de saída da liderança, Rui Rio faltou inexplicavelmente ao grande debate da semana passada, admitindo-se agora que nas próximas horas aproveite um jantar com o grupo parlamentar para anunciar que não tenciona manter-se como deputado, o que não significa que abdique de imediato ou deixe definitivamente a política. Há sempre a miragem do regresso à Câmara do Porto... 

4. Oito meses depois de ter sido chumbado, cinco depois das eleições legislativas o Orçamento do Estado entrou em vigor ontem, dia 28 de junho. E, vá lá, deu-se a circunstância de haver uma maioria absoluta, pois, se assim não fosse, ainda agora andaríamos em negociações. Por seu lado, o PSD levou cinco meses para mudar a liderança, o que é também o sinal de um ritmo adequado a meados do século passado. O político português típico tem sempre vontade de mudar as coisas, mas consegue controlar-se como poucos no mundo…

5. Morreu António Ribeiro Ferreira, um notável jornalista português, que, entre muitas outras funções e passagens por diversas publicações, foi diretor do i. Era um profissional exigente, bom camarada de trabalho e frontal como poucos. Antes do 25 de Abril, foi um oposicionista ativo, quando era difícil e perigoso. O jornalismo foi a sua causa, apesar da sua formação ser de engenharia. ARF assinou muitas notícias que mudaram as coisas na política e na sociedade portuguesa porque eram incómodas. Tinha apenas 73 anos, que viveu intensamente. Era também um Senhor. RIP, António. 

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