Pedro Neto | TSF | opinião
Quando alguma tragédia acontece o assunto torna-se mediático. É o caso recente de um incêndio na Mouraria, em Lisboa, onde morreram pessoas que viviam amontoadas, cada uma arrendando um colchão para viverem num armazém.
A ordem do dia repete-se quando as autoridades fazem uma operação no terreno e se vê a situação de dezenas, centenas ou milhares de pessoas que vivem em Portugal em estado próximo à servidão e escravatura.
Há falta mão de obra
Os direitos humanos neste debate vão sendo instrumentalizados e os discursos vão sendo cada vez mais divisórios - entre os que exigem abertura de fronteiras sem controlo e os que constroem discurso de ódio e demonização em relação aos migrantes.
Enquanto isso acontece, os migrantes mais pobres que tanto contribuem para a riqueza social e económica, para a sustentabilidade da segurança social e das contas públicas, são o elo mais frágil.
Quem vem trabalhar, não vem apenas trabalhar. Vem viver e isso implica outras questões. Implica acesso à habitação condigna, acesso a cuidados de saúde, acesso à escola se tiverem filhos, acesso a alimentação, acesso à cultura - a grande ponte da integração.
O que vamos vendo é outra coisa, é a abertura e o convite aos trabalhadores chamados "nómadas digitais", com elevados ordenados e com poder de compra para as elevadas rendas dos centros urbanos. São pessoas com facilidade no acesso a documentação.
Por outro lado, vemos outro tipo de trabalhadores que não conseguem um telefonema atendido ou uma marcação para regularizar a sua documentação.
Esta postura contribui, também, para o crescimento do flagelo do tráfico de seres humanos, que se aproveita destas fragilidades e faz a "mediação" entre estes trabalhadores, as empresas e os órgãos públicos.
Para além disso, ao não existirem rotas legais e seguras para estes migrantes mais pobres, as pessoas recorrem a redes de tráfico para chegar a Portugal, pagando quantias exacerbadas. Chegando cá, ficam à mercê de trabalho em servidão, sem condições, sem acesso ao básico de que necessitamos na vida.
Infelizmente, o tráfico de seres humanos e as condições de vida degradante não se circunscrevem apenas aos casos conhecidos de Odemira, nem a Beja, nem ao Alentejo. É preciso olhar também para o Algarve, para a lezíria na Estremadura, para o Oeste, para a região do Alto Douro e Beira Alta. É preciso olhar para os sítios onde há agricultura superintensiva, mas também para o turismo, só por si, uma razão de exploração e tráfico de pessoas.
A legislação da imigração tem de ser humanista, respeitadora de direitos humanos, mas não pode ser um edifício jurídico simplista sob pena de - com boas intenções - colocar em risco milhares de pessoas migrantes que já vivem em circunstância de grande vulnerabilidade.
É também preciso melhorar a lei do trabalho que com as suas nuances permite abusos e desresponsabilização - tanto de alguns empregadores, como de alguns trabalhadores. Tal como é preciso mudar as condições de algumas autoridades com falta de meios ou de vontade de estar no terreno.
As mortes do incêndio da Mouraria são a ponta de um iceberg de incúria muito grave.
Sem comentários:
Enviar um comentário