Pedro Almeida Vieira, opinião | Página Um
Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.
E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.
Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:
1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.
2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.
Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.
Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.
Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.
Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.
Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.
Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.
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