Carla
Romualdo - Aventar
Manta estendida no
chão, por cima de cartões e sacos plásticos. O sítio não é o melhor, tão
desabrigado, demasiado perto da esquina, sopra vento o dia inteiro. Impossível
não vê-los desde longe. O homem está sentado no chão e ao seu lado estão os
quatro cães, com seis pratos de biscoitos à frente, pratos generosamente
abastecidos pelas senhoras que zelam com cuidados maternais pela comunidade
canina da cidade. Assim alinhados, ele embrulhado numa manta, todos os cães com
a sua mantinha pelo lombo, os pratos de biscoitos à frente, parecem sentados
frente à televisão, quase divertidos com o programa que lhes tocou, essa
sucessão de gente que passa com uma expressão de tédio ou de angústia, um riso
adolescente, um silêncio ressentido entre casais. A cena doméstica surpreende,
faz-nos abrandar para ver melhor a família, os cãezinhos tão ordeiros, tão
pacatamente sentados que parecem gente, gente crescida que observa com
curiosidade e talvez alguma surpresa o espectáculo das gentes que passam.
Estes cães honram a
sua missão, entendem que é da bondade dos estranhos que depende a
sobrevivência, enroscam-se no dono quando faz frio, dormitam com uma orelha
sempre à escuta de um perigo que se aproxime, lambem as mãos das viúvas que
lhes despejam pacotes de biscoitos para o prato, mantêm-se debaixo da manta
longas horas, porque sabem que é isso que se espera deles. São bichos de
espectáculo, cães artistas, solenes na sua dignidade de mendigos que não pedem,
não soltam um teatral ganido à passagem dos transeuntes, estão simplesmente
ali, sentados com a mantinha pelas costas, como se fossem gente e honrassem a
diário o seu papel, a troco da sobrevivência da família.
E o Tó Zé, o pai,
levanta o acampamento ao fim do dia, reúne a trupe com um assobio
disciplinador, e assume a posição de condutor quando seguem todos pelas ruas,
em fila indiana, ele com a sacola das mantas às costas, a caneca de chapa das
moedas, os pratos de comida, os biscoitos guardados em sacos do supermercado, o
blusão dois números acima, a trança encardida a sair do boné.
Expeditos e
alinhados, sem sinal de desarmonia familiar, homem e cães, pai e filhos, irmãos
de ofício, companheiros. Nada os faz perder tempo pelas ruas, caminham sempre,
ignoram outros cães e outros homens, caminham sem se deterem, até chegarem a
casa, barraco de telhado de zinco e paredes com tijolo à mostra, para passar a
noite enroscados nas mesmas mantas que trouxeram da rua. Cães artistas, às
ordens do seu chefe, seu pai, agente, gestor das esmolas e dos biscoitos,
provedor das mantas, grande condutor, que descobriu que já só dos animais se
condoem os que passam, dos seus olhinhos tristes e dos focinhitos húmidos, e
por isso chovem mais biscoitos nas tigelas do que moedas na caneca.
- Não tenho
vergonha de dizer que, em muitas noites, são o meu jantar.
Foi o Tó Zé quem
disse, os cães não falam.
Leia mais em
Aventar
Sem comentários:
Enviar um comentário