sábado, 4 de janeiro de 2014

Portugal: CENA DE RUA

 

Carla Romualdo  - Aventar
 
Manta estendida no chão, por cima de cartões e sacos plásticos. O sítio não é o melhor, tão desabrigado, demasiado perto da esquina, sopra vento o dia inteiro. Impossível não vê-los desde longe. O homem está sentado no chão e ao seu lado estão os quatro cães, com seis pratos de biscoitos à frente, pratos generosamente abastecidos pelas senhoras que zelam com cuidados maternais pela comunidade canina da cidade. Assim alinhados, ele embrulhado numa manta, todos os cães com a sua mantinha pelo lombo, os pratos de biscoitos à frente, parecem sentados frente à televisão, quase divertidos com o programa que lhes tocou, essa sucessão de gente que passa com uma expressão de tédio ou de angústia, um riso adolescente, um silêncio ressentido entre casais. A cena doméstica surpreende, faz-nos abrandar para ver melhor a família, os cãezinhos tão ordeiros, tão pacatamente sentados que parecem gente, gente crescida que observa com curiosidade e talvez alguma surpresa o espectáculo das gentes que passam.
 
Estes cães honram a sua missão, entendem que é da bondade dos estranhos que depende a sobrevivência, enroscam-se no dono quando faz frio, dormitam com uma orelha sempre à escuta de um perigo que se aproxime, lambem as mãos das viúvas que lhes despejam pacotes de biscoitos para o prato, mantêm-se debaixo da manta longas horas, porque sabem que é isso que se espera deles. São bichos de espectáculo, cães artistas, solenes na sua dignidade de mendigos que não pedem, não soltam um teatral ganido à passagem dos transeuntes, estão simplesmente ali, sentados com a mantinha pelas costas, como se fossem gente e honrassem a diário o seu papel, a troco da sobrevivência da família.
 
E o Tó Zé, o pai, levanta o acampamento ao fim do dia, reúne a trupe com um assobio disciplinador, e assume a posição de condutor quando seguem todos pelas ruas, em fila indiana, ele com a sacola das mantas às costas, a caneca de chapa das moedas, os pratos de comida, os biscoitos guardados em sacos do supermercado, o blusão dois números acima, a trança encardida a sair do boné.
 
Expeditos e alinhados, sem sinal de desarmonia familiar, homem e cães, pai e filhos, irmãos de ofício, companheiros. Nada os faz perder tempo pelas ruas, caminham sempre, ignoram outros cães e outros homens, caminham sem se deterem, até chegarem a casa, barraco de telhado de zinco e paredes com tijolo à mostra, para passar a noite enroscados nas mesmas mantas que trouxeram da rua. Cães artistas, às ordens do seu chefe, seu pai, agente, gestor das esmolas e dos biscoitos, provedor das mantas, grande condutor, que descobriu que já só dos animais se condoem os que passam, dos seus olhinhos tristes e dos focinhitos húmidos, e por isso chovem mais biscoitos nas tigelas do que moedas na caneca.
 
- Não tenho vergonha de dizer que, em muitas noites, são o meu jantar.
 
Foi o Tó Zé quem disse, os cães não falam.
 
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