Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Se nada for feito a
direita acabará, contra todas as previsões, por vencer as próximas eleições
legislativas ou, mais provável, o PS governará com ela. Porquê? Porque o PS não
tem que se preocupar com o seu flanco esquerdo, que se encarrega de se boicotar
a si próprio. Pode continuar a desculpar-se com a impossibilidade de fazer
alianças com aquele lado.
Que não haja
confusão: acredito que, se depender apenas da vontade das suas direções, o PS
está disposto a fazer, talvez com menos estardalhaço e dureza, o mesmo que este
governo. E que a razão pela qual o fará não resulta apenas ou especialmente da
falta de aliados à esquerda mas por ser para isso que o poder, o poder que
conta, o empurra. Se não for por convicção, será por inércia. E a inércia é
hoje o que sobra aos partidos socialistas e social-democratas da Europa.
É verdade que a
cultura de cedência socialista não é propriamente nova. Ela teve, aliás,
fortíssimas responsabilidades na desregulação financeira e na desastrosa
arquitetura do euro e da atual União, dois factores fundamentais para explicar
esta crise. Não eram todos iguais. Os socialistas lá iam distribuindo a riqueza
de forma um pouco menos forreta. Só que agora, ao contrário do que acontecia no
tempo das vacas gordas, para garantir os direitos dos de baixo será mesmo
preciso aborrecer os de cima. E o que está a acontecer é, de forma
pornográfica, o contrário. Não foi a direita que usou um décimo do que a Europa
produz para salvar os bancos. Foi a direita e foi a esquerda. Não foi a direita
que trouxe a troika e assinou um memorando que é um programa ideológico escrito
por fanáticos. Foi a direita e foi a esquerda. Não foi a direita que aprovou um
Tratado Orçamental que ilegaliza políticas keynesianas. Foi a direita e foi a
esquerda. E este consenso na desgraça só terá um fim quando a extrema-direita
puser em perigo as democracias europeias (risco que dispenso correr) ou quando
a esquerda que não acompanha a "hollandização" dos socialistas os
assustar a sério. Ou há uma força à esquerda dos socialistas capaz de os
assustar - e capaz de assustar aqueles que vivem desta crise - ou estamos
tramados. Seja porque seremos engolidos pela crise, seja porque os salvadores
que vão surgir nos levarão para um inferno ainda pior.
A política trata do
poder. E eu quero uma esquerda mais firme que chegue ao poder, sozinha se
alguma vez isso for possível (o que não me parece) ou aliada aos socialistas
(se tiver que ser). Não porque essa esquerda agrade às direções socialistas mas
sim porque agrada ao eleitorado socialista e, desse modo, assusta as suas
direções. Eu quero uma esquerda que a direção do PS tema, porque entra bem
fundo na sua base de apoio. Não quero uma esquerda que permita ao PS esvaziar o
que está à sua esquerda para poder governar com um amigo dócil. Não quero uma
esquerda que o PS apadrinhe porque lhe anda a preparar uma bengala. Quero uma
esquerda que obrigue o PS a governar à esquerda e com a esquerda, caso
contrário pagará por isso. E a verdade, hoje, é esta: ao contrário do que
julgam PCP e BE, ao PS saem de borla as viragens à direita. Porque nenhum
eleitor do PS acredita que PCP e BE alguma vez queiram realmente governar. E
faz muitíssimo bem em não acreditar. Só que é exatamente isso que a maioria dos
eleitores quer saber: quem quer governar e para quê? Quem não quer, ou só o
quer daqui a umas décadas, não conta. Serve apenas de escape do sistema. Tem a
sua utilidade. Mas parece-me que precisamos de mais.
Quando e se chegar
ao governo, o PS só travará as privatizações, só baterá o pé à troika, só
mudará de posição em relação ao Tratado Orçamental, só quererá renegociar a
dívida, só travará a destruição do Estado Social que ajudou a construir se
tiver medo. Na realidade, tem mesmo de ter muito medo. E se mesmo com medo não
resistir aos apetites de quem quer ficar com os despojos desta tragédia
económica e social, que ao menos haja uma força credível, representativa,
socialista, reformista e realista em relação à reduzida capacidade de
regeneração da União Europeia, para lhe ser alternativa, caso aconteça o que
está a acontecer aos socialistas gregos e franceses. Mas não haja confusões: em
Portugal não haverá um Syriza. Mais depressa os portugueses saltam para a
abstenção do que radicalizam o seu voto e o levam para as margens. O que faz
falta é uma força política que ocupe o espaço ideológico que os socialistas
estão a deixar vago. E não uma força política que compita com o espaço que o
PCP já ocupa.
Tenho escrito muito
sobre o suicídio dos partidos socialistas e social-democratas europeus. Mas não
tem sido menos perturbante ver o suicídio dos que estão à sua esquerda, em
Portugal. Não o PCP, que continuará a crescer, com a sua estratégia inteligente
e sem percalços, para depois festejar vitórias, gritar que "assim vê a
força do PC" e pendurar tudo na parede para não a estragar com o uso. O
que perturba é a outra esquerda, que supostamente tinha outros objectivos
(teria?). Teve recentemente a oportunidade de encontrar aliados e fazer parte
duma coisa maior. Não quis aproveitar. Nos meandros e responsabilidades neste
desfecho não entrarei, por lealdade com todos e por não me querer envolver em
polémicas inúteis. Mas sei que acabou por ficar na cabeça das pessoas, ainda
mais do que antes, a ideia de que "não há como esta gente se
entender". É a repetição da cena de "A Vida de Brian", dos Monty
Python, em que os membros da Frente do Povo da Judeia explicam a um novo
militantes que, pior do que os romanos, só a Frente Judaica do Povo, a Frente
Popular do Povo da Judeia e a Frente Popular da Judeia (esta apenas com um
membro). Todos divisionistas, claro. Como disse Ana Drago, numa entrevista à
SIC Notícias, isto há de parecer "uma conversa bizantina" para a
maioria das pessoas.
Acho bem que toda a
gente seja paciente. Que todos fiquem à espera para ver se, depois das próximas
eleições europeias, alguém acorda. Mas se ninguém acordar parece-me que a
postura que resta para quem quer construir uma alternativa política credível e
representativa, à esquerda, terá de ser a de arregaçar as mangas e meter mãos à
obra. Não dá para continuar a esperar que a esquerda vença os seus mais
mesquinhos sectarismos, os seus ódios a hordas de traidores e proscritos,
enquanto este país se afunda. Não dá para repetir tentativas falhadas de vencer
esta cultura e que acabam em frustração e descrédito, motivo natural de chacota
e piada. De uma coisa não tenho dúvidas: basta aparecer à esquerda uma força
digna de algum respeito e credibilidade para que aconteça um terramoto político
em Portugal. E quem não estiver disposto a ser apenas uma parte de uma coisa
maior deixará provavelmente de ter existência política digna de nota.
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