sexta-feira, 14 de junho de 2024

DEVER DE MEMÓRIA

Gustavo Carneiro*

Há muito que o “Ocidente” (e Hollywood) tentam reescrever a história da 2ª Guerra Mundial. Nas celebrações deste ano do desembarque na Normandia – para as quais a Rússia não foi convidada - houve de tudo: aquela batalha foi apresentada como «decisiva», a «viragem da guerra», o «princípio do fim de Hitler». Quando, com 3 anos de atraso em relação ao compromisso assumido, os aliados ocidentais abriram a 2ª frente, já a tropa nazi-fascista sofrera a leste derrotas decisivas, nomeadamente em Stalinegrado e Kursk, e perdera definitivamente a iniciativa da guerra. É bem elucidativo do estofo da camarilha dirigente ocidental que a memória dos que caíram para derrotar o nazi-fascismo seja hoje usada para promover a guerra, aumentar ao absurdo o tom da retórica militarista e dar palco a admiradores de colaboracionistas do nazi-fascismo, como Stepan Bandera.

Perdoe-nos desde já o leitor por ciclicamente voltarmos a este tema, quase sempre nesta altura do ano, mas são tantas as imprecisões, tão descaradas as mentiras e tão despudorada a propaganda que a insistência se impõe. Falamos das comemorações do chamado Dia D, assinalando o desembarque das forças britânicas e norte-americanas na Normandia, a 6 de Junho de 1944, que abriu a segunda frente de guerra contra o nazi-fascismo. Este ano, com a data redonda (80 anos sempre são 80 anos) e toda a histeria belicista que por aí anda, a mistificação foi ainda mais longe.

Nos discursos oficiais e na narrativa mediática dominante, houve de tudo. A começar pelos costumeiros exageros sobre a importância daquela batalha, apresentada como «decisiva», a «viragem da guerra», o «princípio do fim de Hitler», e outros mimos do género, procurando-se assim apagar que essa viragem tinha já começado, meses antes, e que foram a União Soviética e o seu Exército Vermelho quem a concretizou.

Foi na Frente Leste, onde até Junho de 1944 concentraram 92% das suas tropas (baixou após o Dia D para 74%), que os nazi-fascistas se confrontaram pela primeira vez com uma efectiva resistência. Às portas de Moscovo, ainda em 1941, sofreram a sua primeira derrota e, com ela, ruiu o mito da sua invencibilidade. Ali foram desbaratadas 607 das suas divisões, mais do triplo do que as perdas conjugadas nas frentes do Norte África, da Europa Ocidental e de Itália. Nas batalhas de Stalinegrado e Kursk perderam definitivamente a iniciativa da guerra, iniciando um recuo que só terminaria em Maio de 1945, na decisiva batalha de Berlim e consequente rendição ao Alto Comando Soviético.

Pelo contributo decisivo que deram para a vitória, os povos da União Soviética (russos, ucranianos, bielorrussos, moldavos, cazaques…) pagaram o preço mais elevado em vidas humanas, mais de 20 milhões de mortos: ruas, praças, monumentos e museus evocam-nos, e ao seu sacrifício, em cidades como Moscovo, São Petersburgo, Volgogrado, Minsk, Kiev, Chisinau, mas também em Viena e em Berlim. Sob o parque Treptower, na capital alemã, estão enterrados milhares de soldados soviéticos caídos na derradeira luta para libertar a Humanidade do nazi-fascismo.

Homenagem justa é também feita aos milhares de jovens norte-americanos e britânicos que perderam a vida na batalha da Normandia, muitos dos quais ali permanecem sepultados. Como os seus camaradas de armas soviéticos, morreram pela liberdade e pela paz. Daí chocar que a sua memória seja usada para promover a guerra, aumentar ao absurdo o tom da retórica militarista e dar palco a admiradores de colaboracionistas do nazi-fascismo, como Stepan Bandera. E foi isso mesmo que se fez, no passado 6 de Junho, nas praias da Normandia.

* Republicado em O Diário.info e agora em Página Global

* Fonte: https://www.avante.pt/pt/2637/opiniao/175952/Dever-de-mem%C3%B3ria.htm?tpl=179

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