quinta-feira, 3 de abril de 2014

GUERRA E PAZ



Martinho Júnior, Luanda

1 – De todas as cidades angolanas a cidade do Cuito foi aquela em que a intensidade dos combates se prolongou por mais tempo, no quadro duma guerra que a propaganda de feição da globalização diz que foi “uma guerra civil”…

Dados os contextos históricos por que passou o continente africano e dadas as conjunturas correntes no âmbito dos processos de globalização, “guerra civil” é o rótulo que interessa precisamente àqueles que a partir de fora são responsáveis directos e indirectos pelo subdesenvolvimento, pelo estado deplorável em que se encontram os povos do continente e portanto pelas causas profundas da miséria, da fome, do desamparo, dos conflitos, tensões e guerras por que têm passado os africanos.

Aos mentores e tutores da globalização de feição ao seu carácter unipolar e hegemónico, interessa “sacudir a água do capote” de suas responsabilidades, pelo que dizem eles que as guerras em África são “guerras civis”… para eles jamais aparecerem nos dramáticos filmes de degradação que as contemplam!

Ao colocar as coisas nestes termos e sem me alongar muito, em jeito conclusivo digo claramente que os interesses externos exercem no continente africano influências de tal ordem, que não há margem para qualquer dúvida: não há praticamente conflito algum que o peso das ingerências externas não se faça sentir e por isso os conflitos, as tensões e a guerras não podem ser considerados de “civis”!

De facto África, por exemplo, não produz armas, salvo na África do Sul e no Egipto, mas tem toda a legitimidade de ter levado por diante o movimento de libertação, que se deve assumir hoje como ontem e com os olhos colocados nas possibilidades emergentes que há em relação ao futuro!

Praticamente todas as armas vêm de fora, são produzidas fora do continente e isso gere também estímulos que se encaixam nos acontecimentos correntes!

Veja-se outro exemplo: quantas esquadras da NATO estão em constante assédio a África, sob os rótulos mais variados (luta contra o tráfico de drogas, luta contra a pirataria, luta contra a migração clandestina, etc.), quando os interesses africanos no mar são esquecidos inclusive por parte dos comandantes dessas esquadras (luta contra a pesca clandestina, luta contra a poluição por via de depósito de lixos tóxicos, luta contra a introdução clandestina de mercadorias fugindo ao fisco, etc.)?!

Que ninguém, em África ou em qualquer outra parte do mundo, se deixe intoxicar com o rótulo de “guerra civil”!!!

2 – O Cuito sofreu uma guerra que envolveu aviação, artilharia, blindados e transportes de ambos os lados, tendo até havido gente que não era angolana em muitas acções, pois era necessário manusear algumas armas que os angolanos desconheciam até então e haviam sido adquiridos “a quente”!

Esse é o caso, por exemplo, dos Ouragan de Savimbi adquiridos na Ucrânia!

As batalhas que foram travadas em Angola por causa dos “diamantes de sangue” integraram-se num leque tão vasto de conflitos que muitos consideraram como a “Iª Guerra Mundial Africana”!...

…Em Angola, por exemplo, estiveram também presentes traficantes de armas internacionais, um deles muito conhecido, Victor Bout, gente que tirou partido do desmantelamento do bloco socialista e da implosão da URSS para traficar armas: eles contribuíram para fomentar as guerras, quantas vezes no engodo das riquezas africanas!

3 – As mulheres foram as que mais sofreram com as guerras em Angola, duma forma geral e muitas delas continuam a sofrer, doze anos depois do calar das armas!

Elas foram não só, quantas vezes, combatentes, mas participaram também de muitos sectores tidos como de retaguarda: da logística, das comunicações, da reparação de equipamentos, dos serviços, etc.

Por outro lado, elas eram a garantia insubstituível na educação, na saúde, na capacidade de resistência dos agregados familiares muitas vezes depois do falecimento do chefe de família!

No Cuito a densidade de viúvas é acima de muitas outras cidades do país e, doze anos depois do calar das armas, no fim do mês-mulher e na data do 4 de Abril, uma pergunta subsiste: o que fazemos nós, “na paz que estamos com ela”, em benefício das nossas viúvas e dos órfãos, as viúvas e os órfãos de tantos heróis, de quem tanto se deve?

4 – As viúvas, por exemplo, dos combatentes falecidos das Forças Especiais do Bié, as viúvas dos combatentes da LCB, muitas delas têm sobrevivido em situações de prolongada precariedade e marginalidade, tendo a seu encargo os órfãos dos combatentes que caíram!

Apesar disso, elas não mereceram até hoje a atenção devida, pois nem os combatentes das Forças Especiais, nem os da LCB, aqueles que em tempos respondiam à Segurança do Estado, foram abrangidos pelos acordos e, apesar do MPLA e do estado angolano terem começado a corresponder com base nas políticas de Reconstrução Nacional, da Reconciliação e da Reinserção Social, há dentro do executivo, “muita areia no motor”!

Angola está em dívida para com os heróis de muitas batalhas, entre elas a batalha do Cuito (capital do Bié) e se está em dívida em relação aos combatentes caídos, que dizer em relação às viúvas e aos órfãos que estão vivos?

As viúvas e os órfãos da cidade do Cuito, uma vez que os combatentes pertenciam a forças que não foram abrangidas pelos acordos, estão ainda a ser esquecidos, apesar de já haver decisões justas… em relação às quais alguns sectores do executivo não estão até agora a corresponder!

Muitas questões se equacionam e aqui vou colocar quatro delas:

Que paz se está a construir, quando há ainda tanto que fazer em termos sócio-políticos para resolver questões de fundo no âmbito dos antigos combatentes e seus familiares, em grande parte devido à ”areia no motor” que existe em alguns sectores do executivo?

O que se está a fazer em termos de valorização da mulher angolana, quando as viúvas dos nossos combatentes caídos por Angola, estão ainda entregues a tantas dificuldades e até ao esquecimento?

Qual a factura, em termos de implicações sócio-políticas e materiais de toda a ordem, desse injustificável esquecimento, em relação ao futuro, tendo em conta a existência de tantos órfãos?

Por que razão, com tanta legitimidade e de forma exemplar, está o Presidente do MPLA, da República e Comandante-em-Chefe das FAA, engenheiro José Eduardo dos santos, a avançar com seus pares africanos par uma paz pan-africana e em Angola haver ainda no executivo algumas personagens que parecem colocar deliberadamente tanta “areia no motor”?

Foto: Martinho Júnior, em 14 de Junho de 2011: Praça-nobre da cidade do Cuito, capital da geo-estratégica Província do Bié, mãe da água interior de Angola. Eis dois símbolos que explicam a lógica com sentido de vida – dos escombros ergue-se a vida, por via da reconstrução duma emblemática igreja e da estátua duma mulher preparada para um banho, na capital da matriz da água interior, uma matriz que cujo fulcro é a região central das grandes nascentes do país. A paz começa a fazer parte da moderna antropologia angolana – é um processo cultural que vai para além do manancial sócio-político, psicológico e integra os processos soberanos da gestação da identidade nacional.

A consultar:
- A tripla fronteira (escrito a 9 de Julho de 2011) – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/07/tripla-fronteira.html

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