quinta-feira, 3 de julho de 2014

A DEMO-CARESTIA



Rui Peralta, Luanda

I - Péricles definiu a democracia como a forma de governo que “qualifica-se não em relação aos poucos, mas á maioria”, contrapondo-a às formas oligárquicas de governo. A contraposição “democracia / oligarquia” é complementada pela contraposição “governo das leis / governo dos homens” e ambas as contraposições atravessam toda a História do pensamento político. Péricles realçou esta complementaridade ao considerar que “as leis regulam as controvérsias privadas de modo tal que todos tenham um tratamento igual”, coisa que o “governo dos homens” não poderia assegurar. A superioridade do “governo das leis” advém do facto de ele ser inerente ao conceito de democracia e de ser o garante da igualdade jurídica (a “isonomia”).

A apologia do “governo das leis”, contraposto ao “governo dos homens”, elege a tirania como uma forma antiética de governo, uma forma corrompida e degenerada de governo, temporário e ilegítimo. Temporário porque surge nos períodos de crise e desaparece com a normalização, ou porque sucumbiu por efeito dos seus métodos intoleráveis. O tirano é perseguido, aprisionado ou assassinado (o tiranicídio é legitimo). A tirania é ilegítima porque viola os fundamentos do “governo das leis” que consideram que o título do poder tem de ser conforme a lei fundamental e o exercício do poder tem de estar conforme as leis ordinárias.

II - Esta questão – por muito paradoxal que seja – está na ordem do dia um pouco por toda a Europa e não é necessário procurar muito para encontrar exemplos de como as instituições financeiras internacionais fizeram do “governo das leis” uma “real chatice”, escondendo-o na gaveta e promovendo, de forma camuflada, o “governo dos homens”, pelo menos até á saída da crise. Entre os inúmeros exemplos (Grécia, Itália, Espanha, Irlanda, Portugal…), observemos os recentes acontecimentos em Portugal, onde o “governo das leis” na figura do Tribunal Constitucional (TC), foi diabolizado pelo governo e pela troika, transformado num bando de malfeitores, cujas malfeitorias iriam recair, de forma temível, sobre os portugueses.

A malfeitoria do TC foi a de ter aplicado a lei fundamental, crime de lesa-majestade para os técnicos de contas que governam (a soldo dos gestores financeiros internacionais) o país. A Constituição é responsável pela crise, na óptica da Comissão Europeia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e dos seus altifalantes nacionais, o Partidos Social-Democrata (PSD) e o Centro Democrático-Social (CDS). A estas instituições e acessórios juntam-se os banqueiros portugueses (um deles – dos mais mediáticos – desconhecia o numero de juízes que constituem o TC, tal é o respeito que o homem tem pelas questões cívicas) e a burguesia nacional (sempre de mão estendida ao capital estrangeiro e aos bancos (Camões chamou aos antecessores desta camada “Velhos do Restelo”) para quem a Constituição é a razão das contas saírem furadas. A Constituição é uma chatice para os guarda-livros que governam o país, que consideram que esta coisa dos governos é como as tabernas, é só para homens, não sendo a lei chamada para nada, bastando um policia á porta, para proteger o martirizado contabilista que põe as contas em ordem.

Este triste espectáculo (que mais parece uma “cegada”, que foi uma antiga forma de teatro popular, no inicio do seculo XX em Portugal) atingiu o auge quando alguns sectores do PSD propõem a extinção do TC, sem mais! Basta fazer a Revisão Constitucional que irá extinguir o TC e a coisa fica resolvida de uma vez por todas! Todo este intenso e fervoroso labor contabilístico (fervor jesuíta, autêntico acto de fé) culmina, pois então, com a Revisão Constitucional (substituindo a Constituição pelo Plano Oficial de Contas) e com a ida dos juízes do TC para a fogueira e/ou para a forca.

III - Efectivamente os portugueses estão perante um governo delinquente, que nem sequer tenta comprovar a sua inocência perante o veredicto do juiz. O alarido que o governo fez em torno do fim do “Programa de Assistência Financeira” (nome pomposo para designar a capitulação) é a ostentação arrogante da delinquência. A grande maioria da sociedade portuguesa foi espoliada, humilhada, espezinhada, os seus direitos, liberdades e garantias foram enviados para a máquina trituradora, sendo a cidadania limitada às colunas do “Deve” e “Haver”.

Mas a opereta de mau gosto não teve apenas um protagonista. Para além do executivo, o Partido Socialista (PS) líder da oposição (claro que é um dos 3 partidos do arco da governação e do arco da troika) também envia para as urtigas o “governo das leis”. Não que coloque em causa a Constituição (já colocou antes, quando assinou a capitulação) mas porque perante a crise interna que o assola, o PS faz com os estatutos internos o mesmo que o governo faz com a Constituição: manda-os às favas. E isto é grave, porque quer dizer que o PS, caso fosse governo, seria também um governo delinquente, ou seja, um “governo dos homens”.

O PS está mergulhado numa crise interna, profunda. As tímidas vitórias que obteve nas eleições autárquicas e nas europeias reflectem, por um lado, a incompetência da camarilha que tomou de assalto a liderança do partido, por outro a crise estrutural que afecta a social-democracia europeia, um “projecto sem projecto”, uma manta de retalhos, um gabinete de gestores de um sistema falido. O problema do PS não é um problema de Tós (de tirar o António que é inseguro e substitui-lo pelo António que deu à costa). O problema maior do PS é não descer à rua, não se apresentar junto aos trabalhadores e aos desempregados, não aparecer nas manifestações e nos actos de protesto (o PS organizou a sua ultima manifestação era Mário Soares o seu secretário-geral) e depois quando é governo nada fazer e limitar-se a gerir a situação (tendo inclusive o seu ultimo governo, assinado a capitulação do país face ao capital internacional).

O PS prefere os “olhos nos olhos” (Ferro Rodrigues quando era secretário-geral do PS, ao justificar a ausência do partido numa manifestação contra a intervenção no Iraque, a que compareceram figuras como Mário Soares e Freitas do Amaral) ou o “cara-a-cara” de António Seguro, que ficou muito aborrecido com o facto do grupo parlamentar socialista ter apoiado uma moção de censura apresentada pela bancada comunista, o que impediu o face to face entre Seguro e Coelho, o primeiro-ministro. Malfeitorias…

IV - Existe efectivamente um grave problema estrutural na sociedade portuguesa: os Velhos do Restelo. E o problema é mais grave do que no tempo de Camões, quando este os descreveu, sentados no cais, a assistir ás partidas das naus e caravelas. Agora já não estão mais no cais. Agora sentam-se no Palácio de Belém…

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