segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Portugal: UM REGIME EM COMA



Tomás Vasques – jornal i, opinião

Desfez-se, aos poucos, o sentimento de que vivemos em democracia. E quando isso acontece todas as alternativas, mesmo as providências, são aceitáveis

Parafraseando George Orwell", todas as eleições são iguais, mas algumas são mais iguais do que outras. Dito de outra maneira: todas as eleições são importantes, mas algumas são mais importantes do que outras. As próximas eleições legislativas, em 2015, a quarenta anos de distância das primeiras eleições depois da queda da ditadura, vão ter uma importância igual às eleições que fundaram o regime democrático. Nas eleições de há quarenta anos, de onde resultou a aprovação da Constituição que o actual governo tanto vilipendia, votaram mais de 90% dos portugueses. Nas próximas eleições, em 2015, quebrados por tantas desilusões, e tantas ofensas, votarão muito menos portugueses, mas isso não retirará aos resultados a importância decisiva para o futuro do nosso regime democrático.

Os partidos do "arco parlamentar" atravessam uma profunda crise de credibilidade aos olhos dos eleitores. Esta leitura, que é óbvia em relação aos partidos da coligação que sustenta ao governo - o PSD e o CDS-PP -, ao maior partido da oposição, o PS, e ao Bloco de Esquerda, que começou a lutar pela sobrevivência, não deixa de atingir igualmente o PCP, apesar de este celebrar em todas as eleições a "derrota da direita". É só lembrar que os comunistas já obtiveram em eleições legislativas o dobro da votação que alcançaram em 2011.

Os eleitores já deram um forte sinal, nas eleições europeias, quer quem votou, quer quem se absteve (ou votou branco ou nulo), da sua relutância em dar mais esmola neste peditório bipartidarista à portuguesa. Nestes anos, aumentou o sentimento de que não vale a pena votar porque não há diferenças, são todos iguais; perdeu-se o sentimento de soberania popular: o voto não serve para nada, eles dizem uma coisa para chegarem ao poleiro, e fazem outra quando lá estão. Desfez-se, aos poucos, o sentimento de que vivemos em democracia. E quando isso acontece todas as alternativas, mesmo as providências, são aceitáveis.

Os dados para as próximas eleições estão lançados. No Pontal, através do seu presidente, Passos Coelho, apresentou-se um PSD (que levará a reboque o fragilizado CDS-PP) ressabiado pela incapacidade de governar no quadro da jurisprudência constitucional vigente; cada vez mais populista, querendo representar "maiorias silenciosas" à moda salazarista dos anos 30 (não há que ter receio de chamar os bois pelos nomes); atiçando ódios sociais, culpando os reformados pelo desemprego dos jovens e apelando à participação dos socialistas nesta tramoia, com o cinismo e a hipocrisia de quem fala, agora, por razões apenas eleitorais, na "separação da política dos negócios". Passos Coelho, na ausência de resultados na economia, com o furacão BES a cair-lhe em cima, cujas consequências ainda não estão todas em cima da mesa, tendo às costas o empobrecimento da maioria dos portugueses, vai encetar, até às legislativas, uma fuga para a frente, radicalizando o discurso político populista e amaldiçoando o tribunal constitucional e, nas entrelinhas, a democracia.

O maior partido da oposição atravessa um período interno doloroso, cujas consequências, independentemente de quem ganhar a liderança, não deixarão de produzir um enorme desgaste. A opção de António José Seguro em prolongar esta dor interna durante meses, até finais de Setembro, pelo menos, poderá desgastar a imagem de António Costa, mas vai arrastando o PS para o pântano da "politiquice" de que os portugueses estão fartos. O resultado final não vai ser animador para os socialistas.

É neste quadro de desgaste dos partidos do "arco parlamentar", sobretudo do PSD e do PS, que pode entrar nas contas, não um novo partido, mas uma pessoa: Marinho e Pinto. É por aqui que, nas próximas eleições legislativas, se pode romper com a "tranquilidade" do bipartidarismo que moldou o regime nas últimas décadas. Se tal acontecer, se um homem só absorver uma parte importante do descontentamento, e com isso alterar a "paz do bloco central", o PCP (e o BE, também) deviam perceber que são tão responsáveis pela situação em que vivemos como os partidos que nos têm governado.

Jurista, escreve à segunda-feira

UM REGIME EM COMA (2)

Tomás Vasques – jornal i, opinião

As desilusões e os desencantos com o regime e com os "partidos do arco parlamentar", como o descontentamento generalizado são cada vez maiores

Agosto está a dar as últimas badaladas, o que significa o começo do ano em que termina este devastador ciclo político e um outro se iniciará, caso as eleições legislativas se realizem antes do próximo Verão, como parece (quase) consensual. Este ciclo político, de má memória, que neste próximo ano se despede, gerou nas suas entranhas as condições favoráveis a uma ruptura com o rotativismo que moldou o nosso regime democrático nas últimas décadas.

Se olharmos para trás, nas eleições de 1985, depois da crise económica e financeira dos dois anos anteriores, a qual não dispensou o recurso à ajuda externa, na altura apenas do FMI, e severas medidas de austeridade, o descontentamento popular reduziu os partidos da alternância - o PS e o PSD - a menos de 50% dos votos. O partido mais votado, o PSD, então chefiado por Cavaco Silva, não chegou aos 30% dos votos, enquanto entrava em palco um novo partido - o PRD -, que capitalizou grande parte do descontentamento e alcançou um resultado eleitoral muito próximo do dos socialistas. Sublinhe-se que o Partido Comunista, que encabeçou as manifestações sindicais e todos os protestos contra a "austeridade e a intervenção externa", nesses anos de 1983-85, perdeu 3% dos votos nas eleições de 1985, descendo de 18%, em 1983, para 15%.

Hoje tudo é muito mais grave do que há 30 anos. Tanto as desilusões e os desencantos com o regime e com os "partidos do arco parlamentar" como o descontentamento generalizado são hoje incomparavelmente maiores. Acresce que o que se desenha no horizonte, capaz de capitalizar o descontentamento e baralhar todas as contas eleitorais, a avaliar pelos sinais das eleições europeias, não é um partido político, como o PRD, mas uma única pessoa: Marinho e Pinto, portador de um substrato ideológico fluido, sem programa político, mas com um discurso moldável, direccionado aos ouvidos do descontentamento. As críticas que lhe são formuladas por ter anunciado a renúncia ao cargo de deputado no Parlamento Europeu duas semanas depois de ter tomado posse, defraudando os seus eleitores, não fazem sentido nesta situação. Desde logo porque, tratando-se apenas de uma pessoa e não de um partido político (esse pelo qual concorreu é apenas uma barriga de aluguer), é "obrigado" a candidatar-se a todas as eleições, como o próprio já anunciou; depois, porque os seus eleitores (e, previsivelmente muitos mais) só ficariam defraudados caso o personagem não se apresentasse como candidato às próximas eleições legislativas. Tal como o PRD há 30 anos, Marinho e Pinto candidata- -se para poder "moralizar a vida política nacional". Este desiderato cala fundo na maioria dos portugueses, escaldados de tantos maus-tratos e enganos. Já assim era há 30 anos, quanto mais agora. Por tudo isto, não se pode meter a cabeça debaixo da areia: Marinho e Pinto pode vir a representar, em 2015, o que o PRD representou em 1985.

Chegados aqui, sublinhe-se que, em primeiro lugar, o espaço que Marinho e Pinto conquistar resulta directamente do desgaste político e da perda de credibilidade dos partidos do "arco parlamentar". Em segundo lugar, apesar de transportar consigo todos os perigos das soluções providenciais, o antigo bastonário dos advogados não é uma Marine le Pen, nem nada que se pareça. Posto isto, se tal acontecer, e mesmo que esse "fenómeno eleitoral" seja transitório, como aconteceu ao PRD, não pode deixar de ser visto, não só como um tubo de escape de muitas desilusões, mas também como uma severa advertência dos cidadãos aos partidos do "arco parlamentar". Deve ser interpretado como a vontade de alterar o figurino das soluções governativas sem, contudo, pôr em causa o essencial: a democracia, a União Europeia e o euro. Ou, quem sabe, de rupturas mais significativas. O ano político que agora começa tem todos os ingredientes para ser escaldante, do princípio ao fim.

Jurista. Escreve à segunda-feira

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