Expresso
das Ilhas - editorial
A
perspectiva de aprovação de um novo estatuto dos titulares dos órgãos de
soberania tem sido nas últimas semanas matéria de discussão e controvérsia em
artigos de jornal, debates na rádio e televisão e de conversas de café.
Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade da iniciativa
legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de questionamento
que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os deputados e o
Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da oposição são
os mais visados.
Sente-se
em círculos mais mediáticos em
Cabo Verde um certo cansaço em relação à democracia, ao
modelo de representação política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se
queixas de crispação política, de bipartidarismo e da inutilidade do
Parlamento. Reclama-se mais consenso, menos exercício do contraditório e menos
partido. Aparentemente esses sintomas do que se podia chamar um mal-estar
democrático em Cabo
Verde são similares aos notados nas democracias avançadas,
designadamente as europeias. Na realidade diferem porque as causas, a cultura
política subjacente e o contexto são outros.
Na
Europa a crise de confiança nos políticos e no sistema político ganhou expressão
na gestão da crise que mostrou governos nacionais quase impotentes, primeiro
perante os mercados financeiros e depois perante a Troika. Os cidadãos sob o
impacto das medidas de austeridade não se sentem devidamente representados nos
parlamentos e olham com desconfiança para as elites partidárias do “arco de
governação” como cúmplices da banca e dos burocratas da União Europeia em
salvar um status quo que favorece os poderosos em detrimento do homem
comum. Mas ninguém na Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o governo
e de o forçar a prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma
fiscalização efectiva da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que
configuram cedência excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.
A
proposta de um novo estatuto para os políticos trouxe outra vez à baila esse
azedume contra o Parlamento e contra os deputados. Podia-se pensar que a culpa
é da conjuntura difícil em que a falta de dinâmica económica, o desemprego e
as fracas perspectivas no sector privado focaliza ainda mais a atenção de todos
nos recursos, acessos e favores do Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em
2006, no tempo das vacas gordas, quando uma proposta do governo de aumento
salarial encontrou resistência na sociedade e acabou por ser inviabilizada no
Parlamento pelo MpD.
A
matéria de ajustamento salarial do presidente da república, primeiro-ministro,
ministros, deputados e juízes parece despertar em muita gente o gosto pela
demagogia barata. E nem se pode dizer que por detrás disso há uma preocupação
legítima quanto aos custos. Devia ser evidente que a perda do poder de
rendimento real desde o último ajustamento de 1997 está de algum modo a ser
compensada. Só que de uma forma não transparente e eventualmente comprometedora
da relação de equilíbrio entre os diferentes órgãos de soberania.
O
Governo que tem a responsabilidade directa de gestão dos recursos do Estado sai
reforçado nesse tipo de relações. Por exemplo, pelo decreto-lei 8/2008 pôde
unilateralmente melhorar de forma significativa as condições de vida dos
magistrados, dos membros do governo e de outras entidades militares e
policiais. Noutras leis estendeu benefícios na compra de carros a certas
categorias profissionais. Mesmo na administração pública que não tem os
salários indexados aos dos titulares dos órgãos de soberania e tem beneficiado
de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer de contratos de gestão para
altos funcionários com valores superiores ao salário do presidente da
república. Se considerarmos os salários praticados no Estado em sentido lato,
empresas públicas, agências reguladoras e institutos públicos, os valores em
causa são ainda muito maiores.
Enfraquecidos
neste sistema fica o Parlamento que fiscaliza o governo e o presidente da
república que modera todo o sistema político. Para a garantia de um poder
judicial independente, um dos pilares fundamentais do Estado de Direito
democrático, não convém que a manutenção do nível de rendimento e do bem-estar
dos magistrados dependa só da iniciativa do governo. Por tudo isso é
fundamental que se restaure a transparência nos salários da classe política
por forma a que a actividade política seja suficientemente atractiva para todos
os que aspiram a servir na tarefa dura e exigente de desenvolver Cabo Verde.
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