quarta-feira, 25 de março de 2015

Cabo Verde. PELA CLARIFICAÇÃO DOS SALÁRIOS DOS POLÍTICOS



Expresso das Ilhas - editorial

A perspectiva de aprovação de um novo estatuto dos titulares dos ór­gãos de soberania tem sido nas últimas semanas matéria de discussão e controvérsia em artigos de jornal, debates na rádio e televisão e de con­versas de café. Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade da iniciativa legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de questionamento que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os deputados e o Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da oposição são os mais visados.

Sente-se em círculos mais mediáticos em Cabo Verde um certo can­saço em relação à democracia, ao modelo de representação política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se queixas de crispação polí­tica, de bipartidarismo e da inutilidade do Parlamento. Reclama-se mais consenso, menos exercício do contraditório e menos partido. Aparente­mente esses sintomas do que se podia chamar um mal-estar democrático em Cabo Verde são similares aos notados nas democracias avançadas, designadamente as europeias. Na realidade diferem porque as causas, a cultura política subjacente e o contexto são outros.

Na Europa a crise de confiança nos políticos e no sistema político ga­nhou expressão na gestão da crise que mostrou governos nacionais quase impotentes, primeiro perante os mercados financeiros e depois perante a Troika. Os cidadãos sob o impacto das medidas de austeridade não se sentem devidamente representados nos parlamentos e olham com des­confiança para as elites partidárias do “arco de governação” como cúm­plices da banca e dos burocratas da União Europeia em salvar um status quo que favorece os poderosos em detrimento do homem comum. Mas ninguém na Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o go­verno e de o forçar a prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma fiscalização efectiva da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que configuram cedência excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.

Em Cabo Verde é diferente. Muito do desencanto com o Parlamento e das críticas ao sistema político e aos políticos vem da percepção de con­flitualidade ou crispação política entre o governo e as forças da oposição. E é interessante notar que esse sentimento tende a favorecer o governo e a ser mais hostil para com a oposição, tomada como conflituosa, não colaborante e ávida do poder. Compreende-se em parte que assim seja se se considerar que a democracia cabo-verdiana é jovem de quase 25 anos e ainda procura libertar-se dos resquícios anti-pluralistas do salazarismo e do regime de partido único.

A proposta de um novo estatuto para os políticos trouxe outra vez à baila esse azedume contra o Parlamento e contra os deputados. Podia-se pensar que a culpa é da conjuntura difícil em que a falta de dinâmica eco­nómica, o desemprego e as fracas perspectivas no sector privado focaliza ainda mais a atenção de todos nos recursos, acessos e favores do Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em 2006, no tempo das vacas gordas, quando uma proposta do governo de aumento salarial encontrou resistên­cia na sociedade e acabou por ser inviabilizada no Parlamento pelo MpD.

A matéria de ajustamento salarial do presidente da república, primei­ro-ministro, ministros, deputados e juízes parece despertar em muita gente o gosto pela demagogia barata. E nem se pode dizer que por detrás disso há uma preocupação legítima quanto aos custos. Devia ser evidente que a perda do poder de rendimento real desde o último ajustamento de 1997 está de algum modo a ser compensada. Só que de uma forma não transparente e eventualmente comprometedora da relação de equilíbrio entre os diferentes órgãos de soberania.

O Governo que tem a responsabilidade directa de gestão dos recursos do Estado sai reforçado nesse tipo de relações. Por exemplo, pelo decreto­-lei 8/2008 pôde unilateralmente melhorar de forma significativa as con­dições de vida dos magistrados, dos membros do governo e de outras enti­dades militares e policiais. Noutras leis estendeu benefícios na compra de carros a certas categorias profissionais. Mesmo na administração pública que não tem os salários indexados aos dos titulares dos órgãos de sobera­nia e tem beneficiado de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer de contratos de gestão para altos funcionários com valores superiores ao salário do presidente da república. Se considerarmos os salários pratica­dos no Estado em sentido lato, empresas públicas, agências reguladoras e institutos públicos, os valores em causa são ainda muito maiores.

Enfraquecidos neste sistema fica o Parlamento que fiscaliza o governo e o presidente da república que modera todo o sistema político. Para a garantia de um poder judicial independente, um dos pilares fundamen­tais do Estado de Direito democrático, não convém que a manutenção do nível de rendimento e do bem-estar dos magistrados dependa só da ini­ciativa do governo. Por tudo isso é fundamental que se restaure a transpa­rência nos salários da classe política por forma a que a actividade política seja suficientemente atractiva para todos os que aspiram a servir na tarefa dura e exigente de desenvolver Cabo Verde.

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