segunda-feira, 8 de junho de 2015

AFRICOM NO! A FREE COM. YES!



Rui Peralta, Luanda

I - No ano 2000 os relatórios dos monopólios da segurança e da defesa (públicos e privados) não mencionavam qualquer ameaça de "grupos islâmicos transnacionais" ou de "terrorismo fundamentalista islâmico", no continente africano, excepto na Somália (na época a designação era "milícias" ou "senhores da guerra") e algumas movimentações a nível do Estado-maior de grupos fundamentalistas no Sudão, para além de "alguma actividade de baixa e media intensidade "no Egipto, Tunísia, Argélia, Marrocos e Mauritânia. A Líbia era um "santuário" mas não do "terrorismo fundamentalista". Kadhafi naquele ano de 2000 era acusado, nuns relatórios  de dar guarida ao "terrorismo residual esquerdista", a "grupos separatistas", enquanto outros relatórios o descreviam como uma espécie de polícia de giro que fazia as suas negociatas no bairro, mas que mantinha os "fundamentalistas" na "ordem" (ou seja nas cadeias, excepto os casos de alguns lideres xiitas libaneses que visitaram Trípoli a convite de Kadhafi que desapareceram da face da Terra).

Após o 11 de Setembro, em 2001, os relatórios mudam de cenário e os USA iniciam as primeiras acções de formação em contrainsurgência e contra-terrorismo em território africano. Os problemas acumulam-se e surgem por todo o lado. Insurgência islâmica, milícias religiosas de cariz duvidoso ou simplesmente bandos armados aproveitaram a fragilidade dos Estados africanos, as vastas fronteiras, a corrupção generalizada. Em 2008 os USA criam o AFRICOM, cujo comando inicial instala-se em Camp Lemonnier, no Djibuti. Os discursos oficiais norte-americanos e dos parceiros africanos foram triunfalistas. Em pouco tempo mudariam de tom. Hoje são, no mínimo, decepcionantes. O comandante do AFRICOM, general David Rodriguez descreveu recentemente um cenário sombrio à Comissão de Actividades Militares do Senado norte-americano. E foi num tom amargurado que admitiu a possibilidade de intervenções militares directas e unilaterais dos USA em Africa, perante a expressão assombrada dos senadores...

II - A situação degrada-se no terreno. Os bandos fascistas islâmicos estendem a sua presença e adquirem um elevado nível de operacionalidade. O Estado Islâmico aumenta a sua actividade no Norte de África efectuando atentados  com sofisticados sistemas de explosivos e coordenando operações, acções de recrutamento, financiamento e treino, com a al-Qaeda do Magreb, o Ansar-al-Dine do Mali, a al-Shabab da Somália (que amplia o campo de operações para o Quénia, Uganda, Djibuti e Etiópia), a al-Murabituri e o Boko-Haram. O número de atentados bombistas no continente aumentou 40% em 2014 e as atenções centram-se agora na Líbia (onde bandos armados controlam vastas áreas do território e o Estado Islâmico aumenta a sua influencia em Trípoli, Derna, Bengasi e Sebha) e na Nigéria (o Boko-Haram - que jurou, no mês passado, fidelidade ao Estado Islâmico -  expande-se para o Chade, Níger e Camarões e ameaça o funcionamento do governo federal nigeriano no Norte do país, afectando a estabilidade e paralisando os serviços públicos básicos).

Também a Republica Centro Africana sofre na pele esta ameaça e o Congo-Brazzaville corre o risco do seu território tornar-se uma plataforma dos grupos armados que instalam-se nas suas fronteiras. Quanto à RDC as tensões nos Grandes Lagos ameaçam a sua estabilidade interna podendo arrastar o país para um violento turbilhão destruidor, que alterará o mapa da região.

Este cenário revelador das encruzilhadas em que se encontra o continente merece a qualificação de "catastrófico" e "apocalíptico" por parte do responsável do AFRICOM no Grupo de Apoio Europa-Africa do SOCOM (Comando de Operações Especiais dos USA), Matt Pascual. O problema é que as lágrimas de crocodilo do senhor Pascual caem sobre as mulheres, mães, viúvas, crianças órfãs, idosos, refugiados, que viram a eterna precariedade das suas vidas serem transformadas num inferno avassalador...

III - Em 2014 o AFRICOM efectuou 674 actividades militares (ataques com drones, operações diversas, exercícios, formação, instrução e acções de informação), das quais 595 em actividades de cooperação em matéria de segurança (instrução militar e formação técnica, táctica e estratégica, a cargo da Guarda Nacional e da ACOTA - Assistência e Cooperação para Operações de Contingência em África - tudo financiado pelo Departamento de Estado dos USA, além da oferta de equipamento), 11 exercícios conjuntos com os parceiros africanos (os exercícios mais importantes e com maior envolvência de meios e equipamentos foram o African Lion, em Marrocos; o Western Accord, no Senegal; o Central Accord, nos Camarões e o Southern Accord, no Malawi. Quanto às operações realizadas em solo africano somam 68, sendo as mais importantes a Juniper Micron e a Echo Casemate, ambas de apoio às missões francesas no Mali e RCA, respectivamente; Observant Compass, na Africa Central contra as bolsas residuais do Lord Resistance Army, do fundamentalista cristão ugandês Joseph Kony e a United Assistance, na Àfrica Ocidental, missão de apoio e suporte de segurança às equipas médicas durante a epidemia de Ébola. A estas 674 actividades deve-se adicionar os exercícios conjuntos com a NATO e forças navais africanas, no âmbito da segurança marítima (o Obangame Express, no Golfo da Guiné; o Saharan Express nas águas senegalesas e as 3 semanas do Phoenix Express).

Estes números indicam uma actividade crescente do AFRICOM (um crescimento de 300% desde 2008, o ano da sua fundação). Em 2013 registaram-se 546 actividades militares diversas (contra 172 em 2008), entre as quais 481 em matéria de segurança, 10 exercícios conjuntos e 55 operações.

Esta intensa actividade e os resultados quase nulos registados no palco das operações levaram a um acordo de aplicação entre os USA e o Djibuti, assinado em Maio de 2014, que garante a permanência de forças militares norte-americanas em solo africano até 2040. Este acordo permite ao AFRICOM  construir uma rede de vigilância que cobre todo o Norte de Africa e amplia as zonas permanentes de actuação, bases e aeródromos ao Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Chade, RCA, Sudão do Sul, Uganda, Quénia e Etiópia. O objectivo é uma guerra prolongada, assente em forças coligadas e centrada nas operações especiais, conforme refere o Guia de Planificação de 2015, cujo mentor é o general de divisão e um dos comandantes do AFRICOM, James Linder.

IV - Em Damasak, uma cidade no Norte da Nigéria foram encontrados cerca de 400 corpos, na sua maioria de mulheres e crianças. As autoridades governamentais acusam o Boko Haram de ser responsável por este genocídio, mas esta não é uma opinião unanime na população. Muitas activistas dos direitos das mulheres têm denunciado os crimes perpetrados pelo Boko Haram e alertam para o aumento exponencial das vítimas das forças policiais e governamentais, para além de, nas áreas rurais do Norte do país surgirem "milícias anti-islâmicas" que aterrorizam comunidades rurais, camponeses e pequenos-proprietários de terras.

O Norte da Nigéria é uma região economicamente atrasada, cuja população - maioritariamente islâmica, com elevado analfabetismo (apenas 10% da população feminina sabe ler) e muito pobre - vive aterrorizada pelo Boko Haram. Esta organização fascista islâmica (camuflada no rótulo de "fundamentalismo islâmico") leva a efeito uma campanha terrorista contra "os valores e a educação do Ocidente" (um discurso que hoje está em voga e que não é exclusivo do mundo islâmico).

A maioria dos nigerianos vive na pobreza, apesar do crescimento intenso das "classes médias" (um crescimento artificial e sem sustentabilidade, uma vez que a classe média nasceu  endividada à banca) e de uma elevada taxa crescimento do PIB. Sem duvida que um dos vários factores que impedem  a Nigéria de "arrancar" é o facto de despender 30% do PIB com a defesa. As Forças Armadas Nigerianas custam cerca de 2,2 mil milhões de USD, sem que existam programas de industrialização da defesa, ou de investimento interno e externo no sector da defesa e da segurança.

Este panorama da Nigéria é um exemplo das consequências de fazerem-se leituras erradas de determinados fenómenos socioculturais e especificidades históricas das sociedades (o Norte da Nigéria e as particularidades da sua oligarquia islâmica são uma consequência da colonização britânica), ou de adiar problemas "ad eternum". Os discursos superficiais acerca do “fundamentalismo islâmico”, a própria leviandade do conceito, iludem a realidade. O Boko Haram, a al-Qaeda e outros bandos, grupos e organizações são efectivamente fascistas, idênticas aos bandos, grupos e organizações congéneres cristãs no Ocidente (sejam os grupos racistas norte-americanos, ou os bandos oligárquicos latino-americanos, ou a FN francesa, a extrema-direita parlamentar europeia e os bandos nazis e xenófobos europeus), na Rússia e Eurásia, em Africa (o "cristão" LRA do Uganda ou os fascistas zulus do Inkhata e os fascistas boers, na Africa do Sul - para não falar nos tiques totalitários que surgem no ANC - ou o fascismo banto que atravessa os conceitos decadentes e neocoloniais da negritude, autenticidade e Africa Negra, ou a social-fascista Frente Patriótica do bando de Mugabe no Zimbabwe) e na Ásia.

V - O combate contra a pobreza, a luta pelo desenvolvimento, o aprofundamento da democracia, a luta contra o fascismo e a integração africana apenas serão possíveis de levar a bom termo com a construção de projectos soberanos, portadores de uma Nova Cultura Politica que concretize os caminhos traçados pela luta de libertação, removendo os desvios e as "picadas" concebidas pelas oligarquias pós-coloniais para aprisionarem o continente africano aos seus interesses.

A cidadania africana vê na consolidação do Estado Democrático de Direito um instrumento decisivo para estas batalhas de longa duração que retirarão as suas nações da situação ultraperiférica e que reposicionarão o continente na Economia-mundo. Não é o AFRICOM ou outras estruturas similares que permitirão resolver os problemas de defesa e segurança do continente, nem qualquer lógica subordinada aos interesses dos monopólios globalizados público-privados, sejam nacionalistas, socializantes ou pura e simplesmente submissas à nova ordem neocolonial. É no reforço das instituições democráticas, da participação cidadã, dos direitos, liberdades e garantias, na criação de mecanismos equitativos no comércio livre, na livre circulação de pessoas, bens, mercadorias e capitais, na criação de mercado africano livre e integrado, que o ambiente necessário ao progresso e desenvolvimento se encontrará criado. É numa ordem de Liberdade e de Justiça que o Futuro torna-se de todos e não no medo, na paranoia e na angústia. É na tolerância, no governo da lei e na aceitação da diferença, nas contradições e conflitos que representam as dinâmicas da pluridimensionalidade africana que a segurança é assumida de forma eficaz.

É pois, meus caros amigos e amigas, companheiros e companheiras, irmãos e irmãs, camaradas, nosso dever de cidadãos africanos estarmos firmes na linha da frente deste prolongado combate. Ou não é, África, a Mãe?

Tunes, Dacar, Dar-es-Salam, Lusaca e Pretória, Junho de 2015

Bibliografia
Turse, N. Tomorrow's battlefield: US proxy wars and secret OPS in Africa Haymarket Books, 2015
New York Times - 2014/12/31; 2015/04/07
Washington Post - 2014/11/27
Artigos de Nick Turse publicados em http://www.tomdispatch.com:
- American proxy wars in Africa;
- Neithor a base nor a camp;
- AFRICOM: a gigantic small footprint;
- Non stop OPS in Africa;
- AFRICOM becomes a war fighting combatant command;
- American success and the rise of West Africam piracy;
AFRICOM commander wants full counterinsurgency plan - http://www.defenseone.com/threats/2015/01
American's secret: In Libia war US spent 1 billion on covert OPS helping NATO – http://www.thedailybeast.com 2011/08/30
The war is boring: the Lord's Resistance Army is collapsing - https://medium.com
AFRICOM annual exercise schedule continues with "Saharan Express" - https://www.codebook.wordpress.com; 2014/03/08
Jihadist insurgency on Nigeria turning regional conflict - http://www.economist.com
Entrevista a Hakima Abbas, activista nigeriana dos direitos das mulheres e directora de programas de assistencia da Association  for Women's Rights in Development (AWRD). Ver: Nigerian massacre evidence grows - http://www.democracynow.org 2015/01/16
http://www.reuters.com -  2015/04/02; 2015/02/09

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