KATHLEEN GOMES - Público
Durante
muito tempo, foi um tabu falar de escravatura em Portugal. Colóquio de
historiadores começa hoje na Biblioteca Nacional.
A
escravatura em África não é uma invenção levada nas caravelas quando o
navegador português Diogo Cão chega à foz do rio Zaire, em finais do século XV.
Esse já era o destino dado aos numerosos prisioneiros de guerra que decorriam
das disputas tribais. Mas havia regras, e são essas regras que vão ser
ignoradas.
“Até
à chegada dos portugueses a coerência étnica é forte: o africano não escraviza
membros do seu grupo sócio-étnico-político. Mas isso muda com estes incentivos
vindos do Atlântico”, diz José Carlos Curto, historiador especializado no
estudo da escravatura em Angola.
Este
professor da York University, em Toronto, é um dos historiadores que vão
apresentar as suas investigações sobre escravatura no Atlântico Sul num
colóquio que tem lugar quinta e sexta-feira na Biblioteca Nacional, em Lisboa.
Em termos de estudos historiográficos, Angola tem sido sobretudo abordada
enquanto ponto de abastecimento de escravos para o tráfico transatlântico –
entre 1710 e 1830, cerca de 1,2 milhões de pessoas terão sido “exportadas” de
Luanda –, ao passo que a presença de escravatura no que é hoje o território
angolano é uma problemática mais negligenciada; José Curto fala mesmo de “um
silêncio estranho”.
“É
muito mais fácil trabalhar questões relacionadas com o comércio de escravos no
Atlântico Sul: as fontes são mais numerosas, de mais fácil acesso, etc.”, diz
ao PÚBLICO. Além disso, existem poucos historiadores que se dedicam a esse
período da história de Angola. Os que existem “são praticamente todos
estrangeiros”, nota José Curto. Os escassos historiadores angolanos “ainda não
têm interesse pelo período pré-colonial”, anterior à Conferência de Berlim em
1885, na qual as potências europeias acordaram entre si a divisão e ocupação do
continente africano.
O
atraso historiográfico não é uma exclusividade angolana. Como nota o
organizador do colóquio, Diogo Ramada Curto, historiador e professor na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (e
colaborador do PÚBLICO), existem “algumas resistências” e “preconceito” em
Portugal contra o tratamento da questão da escravatura. “Existiu uma guerra
cultural que, nalguns círculos, perdura até hoje. Nem todos os círculos aceitam
debater o envolvimento do império português na escravatura”, sob o risco de isso
ser confundido com um discurso anti-português.
Esse
preconceito não é detectável na investigação historiográfica de outros países
europeus que estiveram envolvidos no tráfico esclavagista?
“O
facto de Portugal ter tido até tão recentemente um império e esse império ter
estado ligado a novas formas de escravatura – formas de trabalho forçado,
formas de trabalho a contrato que escondiam formas de escravatura – fez com que
o preconceito eventualmente pudesse ficar mais enraizado”, nota Diogo Ramada
Curto. “Houve uma necessidade política de justificação do colonialismo. Em
muitos casos, o contributo de uma ideologia luso-tropical, que pensava o
império português como uma excepção relativamente aos outros – um império mais
doce, menos violento e menos racista – fez com que se fugisse ao tratamento
destes mesmos assuntos. Eles surgem esporadicamente, de uma forma extremamente
defensiva, em declarações e manifestos, muitos deles com repercussão internacional,
onde se procura vincar que Portugal também foi pioneiro na abolição da
escravatura. Embora a prática de trabalho forçado nas colónias portuguesas
tenha durado até ao início da década de 1970.”
Durante
muito tempo, foi um tabu falar de escravatura em Portugal, e quem o fazia no
interior da própria academia era marginalizado, conclui o historiador. Mas
Diogo Ramada Curto, que em 2010 criou a primeira cadeira de História da
Escravatura numa universidade portuguesa, acredita que o facto de o colóquio
contar com o apoio e colaboração de “tantas instituições” – o Instituto
Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, a
Fundação para a Ciência e Tecnologia, o Instituto Diplomático do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, e a Biblioteca Nacional– é “um sinal de que as coisas estão a
mudar positivamente”.
A
crescente visibilidade que o debate sobre a escravatura, associado à temática
do racismo, tem adquirido no plano internacional poderá estar a exercer uma
espécie de pressão sobre as instituições, conscientes de que a indiferença
resultará em irrelevância.
“A
profusão de estudos sobre a história da escravatura nos dias de hoje do ponto
de vista internacional é muito grande e Portugal não pode ficar alheio a esse
movimento”, explica o organizador do colóquio. Os arquivos portugueses, que
“estão cheios de informação por explorar”, podem contribuir
“extraordinariamente” para a historiografia internacional.
“A
história é uma forma de nos libertarmos do passado, não é uma forma de retirar
lições do passado do ponto de vista moral, do ponto de vista de uma divisão
entre bons e maus”, defende Diogo Ramada Curto.
Um
historiador não julga. Quando se pergunta a José Curto o que é que a sua
investigação permite concluir sobre a responsabilidade africana na experiência
da escravatura, ele responde: “Somos todos humanos. Tudo depende das
circunstâncias.” Escravizar ou ser escravizado, por exemplo. “Se existe uma
possibilidade de ganhar dinheiro em escravizar outros africanos, então é isso
que se faz. Essa problemática – escravizar o outro – não se levanta naquele
tempo em termos morais. Isso é uma coisa mais recente.
Foto:
Postal com comerciantes portugueses no Dondo, Angola, no início do século COL.
PRIVADA DE FILIPA VICENTE
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