domingo, 11 de outubro de 2015

Portugal. O ELEITORADO UNIDIMENSIONAL OU A DERRADEIRA HIÓTESE DAS ESQUERDAS



ANDRÉ FREIRE  - Público, opinião

A liberdade de competição eleitoral está cada vez mais comprimida em Portugal.

As “eleições livres, justas e frequentes” são um sine qua non de um regime democrático. Tal como noutros domínios, também a livre concorrência no mercado político nunca foi perfeita… Mas a nova lei sobre a cobertura das campanhas veio cartelizar definitivamente a cobertura mediática das eleições protegendo o statu quo parlamentar.

E isto não se passou apenas com os debates, passou-se com a cobertura das campanhas em geral. A liberdade de competição eleitoral está portanto cada vez mais comprimida em Portugal… Porventura mais graves ainda foram as entorses à lisura processual das eleições. Toda a legislatura que ora finda foi marcada por incumprimento de compromissos eleitorais fundamentais, de forma enviesada e assimétrica (violando compromissos com eleitores, assalariados e pensionistas mas deixando praticamente incólumes os grandes interesses económicos, nas parcerias público privadas, nas rendas da energia, na banca, na redução do IRC, etc., etc.), desvalorizando completamente as eleições (que passaram, assim, a ser uma espécie de cheque em branco aos eleitos: dizem uma coisa e fazem outra completamente diferente). É verdade que, ao darem a vitória com maioria relativa ao PaF (PSD e CDS-PP), os eleitores parecem ter branqueado tudo isto. Porém, vale a pena ter em conta duas coisas. Primeiro, apenas cerca de 38% dos votantes escolheram a direita; os restantes 62% votaram em partidos da oposição. Portanto, o branqueamento da falta de lisura processual das eleições é apenas relativo. Segundo, desiludam-se aqueles que pensam que isto só atinge os partidos no poder: a desvalorização das eleições, transformadas em meros “cheques em branco” às equipas eleitas, contaminam todo o sistema político, nomeadamente erodindo o apoio à democracia, e toda a classe política. O eleitorado poderá ter sido, eventualmente, unidimensional, sendo o “voto com os bolsos” num contexto de austeridade relativamente suavizada um elemento explicativo importante da resiliência da direita, apesar de tudo…, como alegou Pedro Magalhães. Pessoalmente, duvido de explicações mono causais, mas, seja como for, o importante aqui é sublinhar que os efeitos de tudo isto vão muito além do nível de penalização dos partidos no poder, afetam o próprio regime. Mas vejamos outros aspetos dos resultados eleitorais recentes e das suas implicações futuras.

Neste contexto, e apesar da relativa suavização da austeridade, a maioria relativa do PaF é, apesar de tudo, surpreendente e notável. Além da questão económica, as pressões europeias e outras pressões internacionais (por exemplo, das agências de notação), o antídoto do caso Syriza, a eficácia da mensagem política (o pior já passou, estamos a recuperar, evitámos um segundo regaste, salvámos o país de desastrosa herança socialista, não há alternativa, etc.) e o grande alinhamento dos mass media com as ideias neoliberais e com o mainstream ideológico, tudo isso concorreu para a vitória da direita. A derrota do PS e a sua pequena recuperação face a 2011 merece também algum relevo porque é, também ela, surpreendente e notável. Alguns, sobretudo os seus opositores à direita, alegaram que António Costa teria dado uma forte guinada à esquerda, uma “radical” guinada até… Puro engano, ou então pura manipulação política. Todo o exercício proposto por Costa e assente no estudo dos “magníficos economistas” era uma tentativa de demonstrar que há uma alternativa (moderada e centrista, é o máximo que as regras europeias permitem…) no quadro do Tratado Orçamental e de outras regras para-constitucionais europeias: daí o financiar da procura com os dinheiros da segurança social (sem impacto no défice das contas públicas, embora com impacto pelo menos temporário nas contas da segurança social), ainda que alegadamente apenas temporariamente sacados, e o combate à austeridade com a retoma do crescimento via estimulo à procura interna. Muito provavelmente, porém, este foi também um dos calcanhares-de-aquiles da estratégia do PS: muito eleitores não terão visto com bons olhos a descapitalização, ainda que temporária, da segurança social. Além disso, havia ainda os cortes definitivos da TSU para o capital e a ambiguidade das propostas (muito vagas) em matéria de diversificação das fontes alternativas de financiamento da segurança social. Mas a derrota de Costa tem, do meu ponto de vista, raízes no seu tacticismo e estratégia eminentemente defensiva. O líder do PS evitava em muitos casos tomar posições, correr riscos, esperando que os ventos lhe soprassem de feição: foi assim, por exemplo, com a questão presidencial. Nunca apoiou clara e taxativamente António Sampaio da Nóvoa, o candidato presidencial que várias vezes sugeriu preferir…, empurrando o problema com a barriga… saiu-lhe como brinde Maria de Belém Roseira. Quem se demite de liderar, de correr riscos, de separar as águas, acaba muitas vezes surfando as ondas dos outros… Foi assim também na questão da renegociação da divida. É certo que uma forte prudência era necessária pois a solução do problema não depende só de um país, mas uma coisa é admitir com clareza que o resultado final não depende só de nós… outra coisa é tornar isso num assunto tabu. Mais: que crédito merecia, neste domínio, um partido que tinha na sua direção vários notáveis que tinham subscrito em 2014 o manifesto dos 74, propondo a renegociação da divida e depois, com a chegada de Costa ao poder e o efeito Syriza, são “obrigados” a fingir que nunca disseram o que disseram sobre o assunto… Um rombo no porta-aviões, claro.

Os grandes vencedores (em termos de crescimento do número e percentagem de votos, e crescimento da percentagem de mandatos) foram claramente os partidos da esquerda radical, o PCP/CDU e, sobretudo, o BE. Porém, também esta foi uma vitória muito relativa, sobretudo porque há as maiores dúvidas que a maioria de esquerdas no parlamento se possa converter numa maioria de governo. O eterno drama das esquerdas em Portugal, que não na maioria dos países europeus após o fim da guerra fria. Teresa de Sousa acha que não há maioria de esquerda nenhuma no parlamento porque não se pode “somar bananas com laranjas”. Porém, vê com bons olhos, hoje como sempre, as soluções bloco central/grande coligação (PSD, CDS-PP e PS), mais ou menos formalizadas, talvez porque pense que se trata sempre e só de “laranjas” e, por isso, aí as adições já são possíveis. Pelo contrário, pela minha parte penso que há ainda uma muito improvável, é certo, mas efetiva e derradeira hipótese de converter a maioria parlamentar de esquerdas numa governação de esquerdas, assim houvesse vontade política. É sabido que o sistema político-constitucional foi construído para facilitar governos de maioria relativa, por isso o programa de governo não precisa de ser aprovado por maioria absoluta, precisa apenas de não ser chumbado. Mas se os três partidos de esquerda (PS, PCP/CDU e BE) conseguissem um entendimento para uma solução de governo (com pragmatismo e aproximação de posições tendo em conta o principio “uma pessoa, um voto”, e a linha vermelha de não sairmos do euro), nesse caso poderia “construtivamente” chumbar o programa de governo da direita e propor ao PR uma solução de governo de esquerdas (alternativa), que Cavaco teria de aceitar até porque não pode dissolver o parlamento até ao final do seu mandato. Claro que isto é altamente improvável e, por isso, muito provavelmente, vamos ter o PS como partido de suporte da coligação de direita (um acordo parlamentar encapotado), e esta dará umas migalhas ao PS para não parecer que este foi completamente humilhado perante a opinião pública; foi assim também na era Seguro….

Uma última palavra sobre um grande derrotado (que apoiei e pelo qual concorri), nas urnas que não do ponto de vista das ideias, que foi o Partido LIVRE-Tempo de Avançar: não elegeu nenhum deputado e terá porventura ficado abaixo dos 50 mil votos. É pena porque as ideias que defendeu praticou (a democratização interna dos partidos – vide as suas primárias abertas – e a necessidade de entendimentos à esquerda) são hoje como ontem de extrema atualidade e pertinência. Que útil seria ter hoje um GP do LIVRE para as defender hoje na AR! Mas a mensagem não passou, ainda… Tudo isso, mais uma extensa rede de (jovens e menos jovens) ativistas, generosos, qualificados e empenhados, que conseguiram formar um partido em temporecord e concorrer nos 22 círculos justifica que o LIVRE-TDA continue ativo apesar da derrota eleitoral!...

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

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