Pedro
Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião
Vi
A Queda de Wall Street e O Caso Spotlight na mesma semana - bem sei, é
sobredosagem. É assistir a demasiada infâmia, demasiada maldade, demasiada
hipocrisia em tão curto espaço de tempo.
Para
quem os não viu, o primeiro conta a história de uns cavalheiros que perceberam
antes de toda a gente a vigarice da altura em Wall Street e o segundo sobre a
investigação aos casos de pedofilia por parte de sacerdotes católicos na zona
de Boston.
Qualquer
dos filmes tem vários ângulos, várias leituras, como todas as boas histórias
contadas de que forma for, bem entendido.
Há
quem olhe para o O Caso Spotlight e reforce a convicção do carácter de
imprescindibilidade do jornalismo de investigação numa comunidade; ou reflita
sobre a forma como as grandes instituições têm como princípio único e
fundamental a sua preservação, mesmo que indo contra todos os valores, toda a
moral, toda a dignidade; ou que pense na teia de cumplicidades e
interdependência entre poderes.
Em
A Queda de Wall Street quase se pode ver um bocadinho de paraíso na zona de
desastre, uns rapazes semi-sérios que perceberam a catástrofe que estava para
acontecer. Não deixa de ser perturbador e até revelador a forma como o autor
faz destes visionários quase bons homens, quando todos apenas usaram as suas faculdades,
não para evitar que a desgraça acontecesse mas para ganharem mais dinheiro.
Eu
vi, nos dois filmes, a forma como preferimos não ver. Como escolhemos, como
comunidade, não ver. Como não queremos ser confrontados com uma instituição que
marca a nossa civilização e que consentiu, protegeu, encobriu, mais uma vez,
algo de tão perverso. Esconderam-se os mais hediondos crimes, como tantas
outras vezes - e não só a Igreja -, em função da sobrevivência da instituição.
Passaram-se uns cheques, bateu-se no peito e, como tantas vezes na história da
Igreja, criou-se uma enorme história capaz de esconder o horror. Desta vez não
foi uma história, foi um homem, alguém que percebe os nossos presentes
problemas, a pobreza, a desigualdade, as questões ambientais e personifica a
bondade, o altruísmo, a tolerância. Ninguém melhor para nos tentar mostrar que
aquilo da pedofilia, da proteção total dos pedófilos por parte da hierarquia
foi algo de insignificante. Séculos e séculos de sabedoria...
Como
preferimos não ver a cegueira, propositada ou não, dos nossos representantes.
Quando a nossa vontade é irrelevante, a nossa escolha através do voto uma
farsa. Vemos perante os nossos olhos que o poder económico se sobrepôs de tal
forma ao poder político - ou seja, à nossa vontade - que os bandidos de Wall
Street continuam impunes. Absolutamente impunes. Já, aliás, preparados para a
próxima artimanha pseudofinanceira que levará para o desemprego e para fome
mais uns milhões: another day in the office. Sim, claro, o poder económico
globalizou-se e a política será sempre local. Mas a constatação desse facto
impede a democracia de funcionar? Impõe que o interesse público se confunda com
o interesse dos grandes grupos económicos globais?
Robert
Reich, colaborador de várias administrações americanas, escrevia: "O
supercapitalismo transbordou para a política e submergiu a democracia."
Sem dúvida. Transcendeu duma maneira brutal a vontade das comunidades, destruiu
pilares que julgávamos sagrados na nossa comunidade - e chegou ao extremo de
atentar contra a básica punição para quem desrespeita a lei, independentemente
da sua capacidade financeira. Que um homem que rouba para comer vá para a
prisão e quem provoca a fome e desemprego de milhões e milhões nada tenha a
temer. Quantos dos que causaram a crise de 2008 estão presos ou pagaram de
alguma forma as vigarices que fizeram, o que provocaram no mundo inteiro?
Nenhum. Depois alguém tratou de nos convencer de que aquilo foi só um
problemazito. Nós é que vivíamos acima das nossas possibilidades, nós é que
tivemos culpa.
Já
sei, lugares-comuns. Exemplos repetidos. Comparações mil vezes feitas. Mas
foram também estas tiranias que quisemos derrubar. A tirania da desigualdade
perante a lei, a tirania das grandes instituições sobre cidadãos. Ou talvez
não, talvez estejamos mudados. Às tantas estamos tão fascinados com o dinheiro,
o poder do dinheiro, que consideramos os super-ricos, os homens de Wall Street
uns verdadeiros heróis. Seres superiores a nós que merecem não ser abrangidos
pelas leis comuns.
E
nós? Nós observamos a impunidade com que se está a destruir o que custou
milhares de anos a construir. E sabemos, nada ignoramos. Confundimos velhos
conceitos de esquerda e direita para falar de justiça, de procura de um mínimo
de igualdade, de mais oportunidades, de mais coesão social, da necessária
erradicação da escumalha que por dinheiro vende a nossa vida.
Não
queremos ver, quando quisermos será tarde, demasiado tarde.
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