sábado, 20 de fevereiro de 2016

ESCOLHER NÃO VER



Pedro Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião

Vi A Queda de Wall Street e O Caso Spotlight na mesma semana - bem sei, é sobredosagem. É assistir a demasiada infâmia, demasiada maldade, demasiada hipocrisia em tão curto espaço de tempo.

Para quem os não viu, o primeiro conta a história de uns cavalheiros que perceberam antes de toda a gente a vigarice da altura em Wall Street e o segundo sobre a investigação aos casos de pedofilia por parte de sacerdotes católicos na zona de Boston.

Qualquer dos filmes tem vários ângulos, várias leituras, como todas as boas histórias contadas de que forma for, bem entendido.

Há quem olhe para o O Caso Spotlight e reforce a convicção do carácter de imprescindibilidade do jornalismo de investigação numa comunidade; ou reflita sobre a forma como as grandes instituições têm como princípio único e fundamental a sua preservação, mesmo que indo contra todos os valores, toda a moral, toda a dignidade; ou que pense na teia de cumplicidades e interdependência entre poderes.

Em A Queda de Wall Street quase se pode ver um bocadinho de paraíso na zona de desastre, uns rapazes semi-sérios que perceberam a catástrofe que estava para acontecer. Não deixa de ser perturbador e até revelador a forma como o autor faz destes visionários quase bons homens, quando todos apenas usaram as suas faculdades, não para evitar que a desgraça acontecesse mas para ganharem mais dinheiro.

Eu vi, nos dois filmes, a forma como preferimos não ver. Como escolhemos, como comunidade, não ver. Como não queremos ser confrontados com uma instituição que marca a nossa civilização e que consentiu, protegeu, encobriu, mais uma vez, algo de tão perverso. Esconderam-se os mais hediondos crimes, como tantas outras vezes - e não só a Igreja -, em função da sobrevivência da instituição. Passaram-se uns cheques, bateu-se no peito e, como tantas vezes na história da Igreja, criou-se uma enorme história capaz de esconder o horror. Desta vez não foi uma história, foi um homem, alguém que percebe os nossos presentes problemas, a pobreza, a desigualdade, as questões ambientais e personifica a bondade, o altruísmo, a tolerância. Ninguém melhor para nos tentar mostrar que aquilo da pedofilia, da proteção total dos pedófilos por parte da hierarquia foi algo de insignificante. Séculos e séculos de sabedoria...

Como preferimos não ver a cegueira, propositada ou não, dos nossos representantes. Quando a nossa vontade é irrelevante, a nossa escolha através do voto uma farsa. Vemos perante os nossos olhos que o poder económico se sobrepôs de tal forma ao poder político - ou seja, à nossa vontade - que os bandidos de Wall Street continuam impunes. Absolutamente impunes. Já, aliás, preparados para a próxima artimanha pseudofinanceira que levará para o desemprego e para fome mais uns milhões: another day in the office. Sim, claro, o poder económico globalizou-se e a política será sempre local. Mas a constatação desse facto impede a democracia de funcionar? Impõe que o interesse público se confunda com o interesse dos grandes grupos económicos globais?

Robert Reich, colaborador de várias administrações americanas, escrevia: "O supercapitalismo transbordou para a política e submergiu a democracia." Sem dúvida. Transcendeu duma maneira brutal a vontade das comunidades, destruiu pilares que julgávamos sagrados na nossa comunidade - e chegou ao extremo de atentar contra a básica punição para quem desrespeita a lei, independentemente da sua capacidade financeira. Que um homem que rouba para comer vá para a prisão e quem provoca a fome e desemprego de milhões e milhões nada tenha a temer. Quantos dos que causaram a crise de 2008 estão presos ou pagaram de alguma forma as vigarices que fizeram, o que provocaram no mundo inteiro? Nenhum. Depois alguém tratou de nos convencer de que aquilo foi só um problemazito. Nós é que vivíamos acima das nossas possibilidades, nós é que tivemos culpa.

Já sei, lugares-comuns. Exemplos repetidos. Comparações mil vezes feitas. Mas foram também estas tiranias que quisemos derrubar. A tirania da desigualdade perante a lei, a tirania das grandes instituições sobre cidadãos. Ou talvez não, talvez estejamos mudados. Às tantas estamos tão fascinados com o dinheiro, o poder do dinheiro, que consideramos os super-ricos, os homens de Wall Street uns verdadeiros heróis. Seres superiores a nós que merecem não ser abrangidos pelas leis comuns.

E nós? Nós observamos a impunidade com que se está a destruir o que custou milhares de anos a construir. E sabemos, nada ignoramos. Confundimos velhos conceitos de esquerda e direita para falar de justiça, de procura de um mínimo de igualdade, de mais oportunidades, de mais coesão social, da necessária erradicação da escumalha que por dinheiro vende a nossa vida.

Não queremos ver, quando quisermos será tarde, demasiado tarde.

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