Enquanto
a Europol diz que não sabe por onde andam pelo menos 10 mil crianças cujas
entradas no espaço europeu foram registadas pelas autoridades, enquanto o
governo francês manifesta a intenção de prorrogar o estado de emergência por
tempo indeterminado, enquanto os paraísos fiscais em que se transformaram
países como a Holanda e o Luxemburgo legitimam um proveitoso tráfico
empresarial de impostos, a Comissão Europeia impõe ao governo português um
regateio de défice orçamental à décima, num processo em que se revela a
intenção única de Bruxelas: anular as ainda que tímidas medidas de reversão da
austeridade adoptadas pelo executivo de Lisboa.
A
União Europeia transformou-se num museu de aberrações vivas, cada uma mais
assombrosa que outra, sem rei nem roque mas sempre sacrificando as pessoas em
nome de um pretexto qualquer.
O
processo em torno do orçamento de Estado português é exemplar sobre o teor zero
da democracia nas regras pelas quais se guia a União. Os dirigentes de Bruxelas
não gerem, policiam. Um instrumento fundamental para a soberania de um país,
como o orçamento de Estado, é sujeito a um processo de inspecção à lupa em nome
de tratados e regulamentos que foram anexados à boleia da crise,
verdadeiramente à revelia dos povos, e que funcionam, agora, como as leis
únicas em aplicação. É possível instaurar a censura, como acontece na Polónia,
transformar os tribunais em câmeras de eco da vontade do governo, como acontece
na Hungria, incentivar a fuga aos impostos empresariais através de mecanismos como
os criados na Holanda e no Luxemburgo, mas o Tratado Orçamental e o chamado
Semestre Europeu, os ícones do regime de austeridade, esses são intocáveis e
dependentes do comportamento arbitrário dos eurocratas de turno.
O
governo de Portugal elaborou um esboço de orçamento com um défice dentro dos
limites impostos pelos tratados e, agindo em conformidade com estes,
apresentou-o a Bruxelas. Então aí, os polícias orçamentais sacaram das
lupas e decidiram que o governo português é feito de manhosos, aldrabões que
amanharam um défice virtual, meta que serão incapazes de cumprir. Logo, devem
esses governantes trapaceiros e mal comportados sujeitar-se a uma “negociação”
para que o orçamento final do Estado português tenha o figurino traçado pelos
eurocratas e seja, é disto que se trata, extirpado de todas as decisões que
tenham como objectivo aliviar o cutelo da austeridade sobre os portugueses.
Aos
polícias de Bruxelas tanto se lhes dá como lhes deu que os portugueses tenham
votado maioritariamente contra austeridade; é-lhes irrelevante que os
portugueses tenham conseguido formar um governo até certo ponto compatível com
a reversão de medidas austeritárias. O que conta para os polícias de Bruxelas é
o regime de austeridade, mesmo que a democracia imponha o contrário e prove,
até, que é possível recuperar medidas sociais respeitando os limites do défice
impostos por Bruxelas. Não é, no fundo, o cumprimento do défice que interessa
aos eurocratas, mas sim a vigência da austeridade a qualquer preço. Se os
actuais governantes portugueses demonstram que o orçamento contemplando algumas
medidas sociais e as fronteiras do défice são compatíveis então, dizem os
polícias, é porque são aldrabões e torcem os números.
Reparem
que já não estamos sequer no terreno da aberração máxima, que é o facto de um
orçamento de um Estado apresentado por um governo democrático ter de ser
aprovado fora desse Estado por uns cavalheiros com mentalidade ditatorial e que
ninguém elegeu – tudo isto antes se ser sujeito ao mecanismo democrático, o Parlamento
nacional.
Nem
sequer é disso já que se trata. Passámos para o estado delirante em que os
polícias de Bruxelas não só desnudam o orçamento como também têm a palavra
final sobre a competência técnica e a idoneidade moral dos membros de um
governo democrático – que são, à partida, acusados de aldrabice,
competindo-lhes então demonstrar o contrário e, no limite, submeter-se à
decisão final dos esbirros orçamentais.
Ficando
provado, pelo que atrás ficou escrito, que no pé em que as coisas estão a soberania
de um qualquer Estado da Zona Euro apenas será democraticamente restaurada
escapando ao garrote da moeda única, não esperando, sequer, pelo naufrágio
anunciado da União Europeia. O resto, como está à vista, são ilusões.
*
José Goulão - Mundo Cão, em 02.01.2012
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