José
Sócrates – Jornal de Notícias, opinião (ontem)
A
proposta de comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos tem como objetivo
principal lançar mais outro ataque de caráter sobre mim e sobre o Governo que
liderei. Uso por isso o meu legítimo direito de defesa para responder
publicamente às insinuações e acusações que vêm dos meus adversários políticos
e dos seus sicários na Imprensa, tal como me tenho defendido de imputações
semelhantes que o Ministério Público tem feito contra mim. Em primeiro lugar
desejo afirmar perentoriamente que nunca - repito nunca - intervim junto da
Administração da Caixa Geral de Depósitos para que fosse concedido qualquer
crédito, nem nunca ninguém me pediu que o fizesse. Vejo para aí dito, como
verdade revelada, isto é que não precisa de demonstração ou de prova, que todos
os governos o fizeram. Falo por mim: no que me diz respeito isso é falso.
Enquanto
desempenhei as funções de primeiro-ministro, nunca dei orientações, ou fiz
qualquer sugestão fosse a quem fosse, que tivessem a ver com concessões de
crédito, matéria que eu e o meu Governo sempre consideramos e respeitamos como
competência exclusiva da Administração do Banco. Tal insinuação não passa
portanto de uma falsidade a somar a tantas outras. Vejo para aí dito, como
verdade revelada, que todos os governos o fizeram. Falo por mim: no que me diz
respeito isso é falso. A novidade é que desta vez o insulto vem de uma área
política que há muito perdeu todo o escrúpulo e todo o sentido da decência na
política. Mas nesta atividade quem perde o respeito pelos outros, perde-se a si
próprio.
Julgo
que a ninguém escapa que no centro deste ataque político está a imputação feita
pelo Ministério Público relativa a Vale do Lobo. Defendo-me dela uma vez mais e
defender-me-ei as vezes que forem necessárias: a) nunca tive conhecimento - nem
tinha de ter - de nenhuma decisão da Caixa relativa a esse empreendimento
turístico; b) até 2015, altura em que o assunto passou a ser noticiado, não
conhecia nem os acionistas nem os gestores nem ninguém ligado a tal
empreendimento. Nunca ninguém me falou de Vale do Lobo como assunto de
interesse público, nem como preocupação privada. As constantes insinuações que
vejo feitas a propósito deste assunto são, portanto, profundamente injustas e
infamantes, sendo ainda desonrosas para quem a elas recorre.
Há
um outro aspeto relativo a Vale do Lobo que está implícito nesta campanha: a de
que este empreendimento teria sido criminosamente beneficiado pela decisão de
aprovação do Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve. Ora isso é
objetivamente falso: o referido plano não beneficiou em nada o empreendimento
turístico como resulta evidente da lei aplicável e de todas as provas
documentais e testemunhais existentes no processo. Bastará, para provar isso,
invocar o facto de não ter sido aprovado, entre 2005 e 2012, nenhum novo plano
ou alteração de plano de urbanização ou de pormenor, únicos instrumentos que
podiam atribuir direitos aos proprietários.
Esta
imputação não tem, portanto, pés nem cabeça. Ela foi inventada à pressa para
permitir sustentar artificialmente acusações públicas de corrupção. Acontece
que são justamente estas estapafúrdias imputações do Ministério Público que
precisam desta recíproca sustentação: eu levanto-as, tu aproveitas; tu
aproveitas e com isso legitimas. Estas pessoas são tão perversas como
espirituosas - elas sabem que a falsa acusação de corrupção é o moderno
assassinato político que substitui o punhal e o golpe de mão. Voltaremos ao
assunto.
Já
quanto à análise estrita da dimensão política de tal iniciativa ela só pode ser
desastrosa para os seus autores. É difícil acreditar que as necessidades atuais
de capital da Caixa Geral de Depósitos se devam à responsabilidade do Governo
que governou... há cinco anos atrás. Não me parece que tal linha política vá
longe. Em 2012 a Caixa foi capitalizada com o montante na altura considerado,
pelo Governo de então e pela nova Administração que nomeou, como bastante para
resolver os problemas existentes. Outros bancos fizeram operações idênticas e
passados uns anos devolveram (ou estão a devolver) o dinheiro emprestado pelo
Estado. Se isso não aconteceu na Caixa é difícil não deduzir que o falhanço no
reembolso da dívida e nas necessidades acrescidas de capital tenha a ver com o
que se passou nos anos subsequentes. Ou foram mal calculadas as necessidades
iniciais de financiamento ou a gestão não alcançou os objetivos a que se propôs
e que estava convencida de que atingiria. Em qualquer dos casos, quem deve
assumir esse falhanço é quem nesses anos tinha a responsabilidade pública. O que
me parece é estarmos perante uma infantil manobra tática preventiva: acuso-te
já para que não me venham a acusar. Mas sendo a acusação tão débil, a astúcia
torna-se ridícula.
Há
no entanto uma outra motivação para esta ação política. Trata-se de desacreditar
tudo o que é público. Claro que a Caixa teve problemas com créditos concedidos
como tiveram todos os bancos em Portugal e no Mundo. Mas há uma diferença
significativa e que é esta: quando os empréstimos concedidos levaram a lucros
da Caixa esses lucros foram distribuídos como dividendos ao Estado. Nos dez
anos antes da crise de 2008, o Estado encaixou 2,27 mil milhões de euros em
dividendos. Não, não é tudo a mesma coisa, como se pretende fazer crer. A Caixa
teve lucros públicos e prejuízos igualmente públicos. Os bancos privados quando
tiveram lucros estes foram privados; quando tiveram elevados prejuízos estes,
pelo menos em parte, foram tornados problema público. E talvez o mais
inquietante seja perceber que nessa altura a sociedade estava verdadeiramente
encurralada: o mal menor foi pôr dinheiro público na resolução do problema ou,
como justamente se diz, socializar os prejuízos. Verdadeiramente, a questão à
qual temos que responder é esta: como defender que a atividade bancária seja
privada e mercantil se nos momentos de aflição, de insucesso ou de falência, os
prejuízos têm que ser suportados pelo Estado? E por favor, não podemos apenas
responder com o "eterno ontem" : é assim porque sim e porque sempre
foi assim. Quem não anda às escuras no debate percebe bem que precisamos de
trocar umas ideias sobre o assunto.
Voltemos à comissão de
inquérito. A iniciativa tem implícita o infame princípio de transformar
eventuais más decisões - sublinho eventuais porque isso precisa de ser
demonstrado - em crimes ou de corrupção ou de amiguismo. Esta é uma estratégia
de terra queimada de quem está disposto a pôr de lado os fundamentos do Estado
de Direito Democrático julgando sem acusação e condenando sem julgamento.
Nenhum ser humano decente faz isso sem um "esgar de repulsa". Estes
princípios são mais importantes que a chamada defesa das instituições. Ou,
melhor dito, são justamente estes princípios que sustentam a legitimidade e a
credibilidade das instituições democráticas. Para a Direita política parece que
chegou o tempo em que os fins justificam os meios, transformando o espaço da
política em território de "pequenos" inquisidores". Pela minha
parte, que sempre detestei a indiferença, não contribuirei para ela com o
silêncio.
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