Luísa
Rogério – Rede Angola, opinião
Numa
altura em que o país tentava perceber os factores que concorreram para a brutal
morte de Rufino Marciano António, de 14 anos, outro direito fundamental acaba
de ser banalizado. Os acontecimentos foram, supostamente, desencadeados pelos
mesmos actores da tragédia que abalou o elementar direito à vida negado ao
adolescente do Zango 3. Em busca de melhor entendimento do caso ainda envolto
numa aura de impunidade, repórteres do jornal Noza Gazeta deslocaram-se à área
atingida pela onda de demolições. Postos no terreno a natureza dos
acontecimentos alterou a sua condição de repórteres para vítimas. Igualmente
vitimizadas foram a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, o direito
à informação e demais garantias conexas ao exercício da actividade jornalística
consagradas na Constituição da República de Angola.
A
inesperada reportagem encaixa-se sob medida num eventual manual de práticas com
vista amordaçar a imprensa. O redactor Onélio Santiago, o repórter fotográfico
Manuel Tomás e o motorista Segunda de Oliveira conheceram a materialização do
termos momentos de terror. Durante mais de quatro horas ficaram sob custódia
dos militares que fazem o asseguramento da zona de demolições no Zango III, em
Luanda. Foram agredidos verbalmente, um deles foi esbofeteado. Os três
estiveram temporariamente sem as máquinas fotográficas, agendas e blocos de
anotações. Telemóveis, carteiras com documentos, dinheiro e os passes de
serviço não foram poupados. Até os atacadores dos calçados foram obrigados a
tirar. Por último, segundo a narração detalhada do sucedido, os militares lhes
obrigaram a carregar blocos de cimento para construção civil. Como se não
bastasse terem sido impedidos de fazer o seu trabalho, acrescentaram a
humilhação numa clara demonstração desproporcional de força e de poder.
O
relato dos acontecimentos na manhã de 10 de Agosto aflora um misto de
indignação e incredulidade. O envolvimento das Forças Armadas Angolanas (FAA) e
de efectivos da Polícia Militar (PM) suscita o questionamento público do papel
destes órgãos cuja principal vocação é a defesa do Estado. De tanto o aparato
sobrepor-se à componente humana que dá corpo ao Estado como entidade jurídica,
é comum ma nossa realidade ocorrer de modo mais ou menos solene a omissão de
que os cidadãos de um país são a componente que funda e sustenta o Estado. Sim,
o cidadão vivo e individualmente considerado. Que tem fome, precisa de um ligar
para viver, cumpre os seus deveres, mas espera que as instituições do Estado
estejam ao serviço de todos.
Impossível
conter arrepios de indignação na passagem do relato que descreve o militar a
ameaçar espetar lapiseira “confiscada” no pescoço do repórter. “Tá brincar de
maluco? Não brinca, rapaz! Sabes quem nos meteu aqui? Quem nos meteu aqui é o
dono do país”. Essas são expressões atribuídas literalmente ao militar pelas vítimas
do abuso. A utopia dos direitos iguais não poderia ter sido maculada de forma
mais contundente.
O
Secretário Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) denunciou o abuso
de autoridade, tendo demandado do Chefe de Estado Maior General das FAA um
esclarecimento, na forma institucional apropriada, em relação ao comportamento
dos militares envolvidos no episódio. O jornal manifesta a intenção de avançar
uma queixa-crime.
O
facto de o provedor de Justiça ter sido impedido por militares do Posto Comando
Unificado (PCU) de visitar o bairro Walale logo a seguir a morte do adolescente
de 14 anos e o flagrante atentado ao exercício da actividade jornalística
atestam a falta de alinhamento da acção dessas forças com a existência de
direitos e instituições, além das ordens que supostamente recebem em parada. A
concentração de militares na Zona Económica Especial Luanda-Bengo assim como a
particularidade destes fazerem valer a sua autoridade com o recurso a “lei da
bala” não se justificaria nem num estado de excepção constitucional. Por que
razão são militares a resolver sobreposições no aproveitamento da terra,
contrapondo interesses empresariais ao direito à habitação, com a agravante de
o fazerem com força letal?
Por
outro lado, deve dar espaço a pertinentes reflexões a alusão ao “dono do país”,
ao que tudo indica uma figura superior, quase mitológica, perante a qual todas
as normas e instituições parecem ficar esvaziadas das funções que têm no quadro
do estado democrático e de direito. De repente o Provedor de Justiça vira
“provador”. A morte de uma criança é reduzida a mero acidente sem lugar nem nas
notas de rodapé dos maiores discursos da actualidade política. Enquanto
república aos militares precisa de ser incutida a cultura de que Angola é de
todos e de cada um dos seus filhos, ao serviço dos quais estão as forças armadas.
É a lei que define o exercício e os limites desse poder.
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