Numa
altura em que se discute o Estado da Nação e neste início de legislatura em
que, uma vez mais, se assumem as desigualdades sociais como o principal desafio
do país, quisemos deitar um certo olhar a este fenómeno que, de acordo com os
números de relatórios internacionais sobre Cabo Verde, tende a diminuir, mas
que no dia-a-dia traz evidências de contrastes cada vez mais acentuados, com as
consequências que já se conhecem.
Nesta
que é a primeira de uma série de três reportagens, fomos ouvir o ponto de vista
de sociólogos e especialistas sobre algumas particularidades da desigualdade
social no país.
Reza
o relatório do Banco Mundial sobre Cabo Verde, actualizado em Abril último, que
entre 2003 e 2008, o índice nacional de pobreza baixou de 37% para 27%, e a
taxa de pobreza extrema foi reduzida de 21% para 12% (utilizando definições
nacionais). O crescimento do turismo terá sido o principal responsável por
estes números relativamente positivos.
Este
mesmo relatório garante - estribado na diminuição do coeficiente Gini (uma
medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini que
consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade e 1
corresponde à completa desigualdade) de 0,55 em 2003, para 0,48 em 2008 - que
“têm-se feito consideráveis progressos no sentido de promover a prosperidade
partilhada”.
Embora
estes dados apontem que o rendimento dos 40% mais pobres da população
cabo-verdiana, em percentagem do rendimento total, aumentou 9,9% nesse mesmo
período de 5 anos, o sentimento do cidadão comum é de que em Cabo Verde têm
aumentado as desigualdades.
Esta
também é a percepção dos sociólogos Crisanto Barros e Redy Wilson Lima, ambos
com trabalhos de investigação que levam em conta este tópico.
Para
Redy W. Lima, que integra um grupo transnacional de académicos cujo principal
foco de estudo é a desigualdade social nas suas diversas facetas, a
desigualdade social não está a diminuir. “Pelo contrário, a tendência é
aumentar”.
“Quando
se vê o surgimento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)… Acho
que reconhecem isso, que os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)
acabaram por ser um reprodutor da desigualdade. O modelo de desenvolvimento era
um modelo de crescimento económico, de ir para frente… Só que crescer numa
lógica em que se esquece de alguns, uma lógica que ignorava quem não conseguia
acompanhar esse crescimento e que no fundo reflecte aquela velha ideia de que o
pobre é preguiçoso. Não é à toa que o grande slogan dos ODS é “Não
deixar ninguém para trás”. Acho que reconheceram que houve afinal um aumento”,
analisa o académico.
De
facto, assim é. A nível global, os ODM da Organização das Nações Unidas não
conseguiram atender a desigualdade estrutural. Aliás a chamada Agenda 2030 para
o Desenvolvimento Sustentável vem admitir a “enorme disparidade de
oportunidades, de riqueza e de poder”.
Voltando
aos números, Crisanto Barros faz a sua própria leitura dos mesmos. “A nossa
desigualdade está a ser brutal, enorme. O último índice consistente que temos,
que é de 2001 [os novos dados são feitos sob uma outra metodologia] e mede o
acesso a recursos através do consumo, mostrava que 10% da população mais pobre
despende 1% e os 10% mais ricos despendem 47%. Ou seja, os 10% que têm mais
condições económicas gastam 47 vezes mais do que gastam os mais pobres. Isto é,
70% da nossa população tem uma participação equivalente a 28%, o que significa
que temos uma sociedade muito desigual”.
O
sociólogo reconhece que o país, nestes 41 anos de independência, “conseguiu
enormes progressos sociais em quase todas as áreas”. E cita a saúde, a
educação, o acesso a água e energia como algumas das áreas exemplares. No
entanto, Barros reitera a “presença” inescapável da desigualdade.
“Se
analisarmos globalmente todos os indicadores, há melhorias significativas, mas
a desigualdade é uma questão social. A sociedade constrói as desigualdades. É
um fenómeno universal, embora haja comunidades com menos desigualdades.”
O
académico adjectiva de “brutais” os processos de mudança pelos quais o país
passou e faz lembrar que todos os processos de mudanças aceleradas geram
desigualdades. “O nosso grande problema é que o crescimento não se tem
traduzido na redução de desigualdades”, nota.
Desigualdades
que o colega Wilson Lima vinca serem amplas, ultrapassando o campo económico,
que é o que normalmente sobressai e, na perspectiva de vários estudiosos, está
na origem de todas as outras.
“Por
exemplo, já no processo de povoamento de Cabo Verde houve desigualdades. Era
uma sociedade escravocrata e racial. Essa desigualdade foi reproduzida e a
sociedade que temos hoje é reflexo deste passado”. O autor de “Praia, cidade
partida: apropriação e representação dos espaços” aponta as investigações de
António Correia e Silva e Iva Cabral que, na esteira de António Carreira,
aprofundam esta análise histórica.
Lima,
que tem feito das periferias urbanas e da juventude citadina o seu campo de
pesquisa de eleição, relaciona no seu trabalho a desigualdade e a violência,
uma violência que caracteriza como simbólica e que hoje denomina de violência
política, “porque temos políticas que na verdade acabam por reproduzir as
desigualdades históricas de Cabo Verde”.
Estas
desigualdades, frisa por sua vez Crisanto Barros, assumem duas facetas: “a
material e, a mais importante, a simbólica, a que as pessoas constroem”. Na
perspectiva deste investigador esse é o problema maior de Cabo Verde, uma vez
que países há onde se pode crescer menos, mas em que o sentimento em relação a
desigualdade é menor porque o referencial cultural que estas sociedades criam
são aqueles com os quais as pessoas conseguem lidar.
Expectativas
e percepção de pobreza
Aí
Barros toca num ponto crucial que são as tensões que se sentem na sociedade
Cabo-Verdiana, derivadas muitas vezes dos desajustes entre os referenciais e a
realidade dos recursos.
“Em
Cabo Verde o referente de uma pessoa pobre é alguém que ela nunca pode ser se
agir correctamente, do ponto de vista ético e legal. Essa pessoa tem mesmo ao
lado um indivíduo cujos rendimentos não vêm de meios lícitos, alguém que vem do
mesmo meio social que ele, mas com alto rendimento, um rendimento que não
resulta de um trabalho e esforço dignos”, observa.
“É
essa alteração de referente do pobre e da classe média cabo-verdiana que
observamos. Uma classe média que é constituída maioritariamente por
funcionários públicos e que se impôs um estilo de vida equiparado a empresários
europeus”, acrescenta Barros.
Batendo
na tecla da falta de uma “regulação social das expectativas”, o estudioso
aponta o exemplo dos EUA, onde “um indivíduo num carro de luxo paga imposto de
luxo. Aqui não! Na Europa, um funcionário público paga uma habitação e tem um
automóvel social. Os automóveis que a nossa classe média possui são automóveis
que um professor universitário na Europa não consegue ter, porque custa caro”.
Ainda
teorizando sobre a classe média nacional, Barros caracteriza-a como detentora
de um padrão de vida que resulta muitas vezes de cargos político-administrativos
sazonais que ela luta a vida toda para manter.
“É
uma classe média estruturalmente dependente do Estado. Sempre cresceu em torno
do Estado, em torno da lealdade ao Estado. É por isso que hoje ela mantem-se e
quer manter-se pendurada ao Estado”, enfatiza ao mesmo tempo que vaticina que
as mudanças políticas afectam o estilo de vida de alguma dessa classe média que
“cai do seu estilo de vida e passa a ‘quase pobre’. Então a pobreza também toca
esse ciclo da classe média”, conclui.
O
Estado e as desigualdades
Redy
W. Lima corrobora que a política é em Cabo Verde, ao lado da emigração e do
narcotráfico, um dos três principais veículos de ascensão social e aumento de
rendimento.
“Na
ascensão politica há uma elite que se perpetua”, faz notar o jovem investigador
discorrendo desta feita sobre a desigualdade com base nas classes sociais. “Há
uma tensão entre a ‘verdadeira’ elite e os ‘novíssimos quadros’. E mesmo entre
os quadros acontece uma diferenciação entre os que têm ‘berço’ e os que não
têm”, constata.
A
ideia de desigualdades estruturadas em torno do Estado é também analisada por
Barros, coordenador do mestrado em Ciências Sociais da Uni-CV que resultou na
obra “Desigualdades Sociais e Dinâmicas de Participação em Cabo Verde”, para
quem a presença do Estado é o elemento que permite acesso a recursos.
Afinal
o Estado continua a ser o maior empregador, ainda que o estudo Balanço
Social do Capital Humano da Administração Pública cabo-verdiana, de 2015,
revele que o número de funcionários públicos em Cabo Verde diminuiu 16% numa
década, passando de quase 22 mil em 2006 para mais de 18 mil em 2015.
“Tivemos
várias vagas. Houve uma vaga em que pessoas pobres ascenderam via Estado. Por
exemplo, através da colocação de professores e mais recentemente através de
formação de agentes policiais e enfermeiros. O problema é que isso saturou. O
drama é que os pobres agora não conseguem ascender”, observa Barros para quem a
mobilidade social devia ser via mercado, “mas para isso era preciso haver uma
estrutura produtiva. O que nós temos é uma cultura rentista, de importar para
depois revender”.
E
no entanto, facilmente se pode observar que o acesso ao Estado enquanto
empregador é mais fácil para a classe média, detentora de uma maior rede de
contactos.
Redy
Lima resume assim a questão: “Temos sim uma sociedade segregada, com
desigualdades de oportunidades. ‘Descobres’ que a única maneira de ascender é
ter uma militância, ter nome de família (“raça”) ou ainda através de amizades
sexuais. A violência surge também, em certas esferas, como um veículo. A
desigualdade social é um processo que vem depois de se criar exclusão e
empobrecimento. Porque quando tens uma sociedade segregada, com oportunidades
restringidas, não tens interesse em diminuir as desigualdades. É uma lógica
histórica”.
Este
cenário fatalista é também reproduzido por Crisanto Barros. “O Estado que deve
combater a desigualdade é reprodutor da desigualdade”, diz. E aponta como
exemplo o facto da disparidade de salários ser muito mais acentuada no sector
público do que no privado.
“No
Estado encontras quem ganhe seiscentos contos e depois tens as cozinheiras que
ganham sete mil escudos”.
O
crescimento económico tido, a nível mundial, como a primeira resposta para o
combate às desigualdades, deve traduzir-se num aumento do tecido empresarial
que permita absorver (empregar) a classe mais pobre. Para o investigador isto é
um problema para Cabo Verde já que acredita que ainda vá demorar muito para se
atingir este nível de crescimento.
“Vamos
ter já licenciados, mestrados e doutorados desempregados. Essa questão à volta
da dita despartidarização da Administração Pública no fundo é uma disputada por
cargos no Estado. A questão da regionalização é disputa por mais Estado. Toda
essa conversa a volta destes assuntos é só com o fim de reproduzir o Estado e
ter acesso a rendimento em cima de um sector improdutivo”.
Uma
constatação na contramão da meta definida pelo Estado nos ODM de “alcançar o
pleno emprego e assegurar a todas as pessoas, incluindo as mulheres e os
jovens, um trabalho digno e produtivo”.
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