A
advogada Deborah Peterson Small, referência em políticas contra drogas e
direitos dos negros nos EUA, diz que o país é mais racista do que quer admitir
A
advogada e ativista americana Deborah Peterson Small chegou ao Brasil há uma
semana com a expectativa de ser acolhida pelo povo que exporta amor às
tradições africanas nas publicidades para turistas. “Descobri um Brasil que não
gosta de negros”, diz. Um relato sucinto dos dias de Deborah em terras
tupiniquins: em Salvador, num passeio à beira-mar, um homem desconhecido perguntou
a Deborah quanto ela custava. “Ele imaginou que, por ser negra e estar numa
praia, eu só poderia ser uma prostituta”. Na comunidade do Alemão, no Rio de
Janeiro, ela foi recepcionada por policiais armados e com a mão no gatilho. Num
hotel em São Paulo, durante o café da manhã, respondeu a cinco funcionários a
mesma pergunta: se estava, mesmo, hospedada ali. Ela conta as experiências sem
mágoa ou rancor. Aprendeu a viver presa à cor de sua pele, como ela mesmo diz.
Deborah,
formada em direito e políticas públicas por Harvard, foi diretora para assuntos
legais da New York Civil Liberties Union e de Drug Policy Alliance. Acumula o
trabalho na instituição com um pós-doutorado em saúde pública que cursa na
Universidade Johns Hopkins. A convite do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania, Deborah veio discutir sobre tensão racial e políticas contra drogas.
Juntas, são a base da Break the Chains, organização fundada por
Deborah. Em entrevista à ÉPOCA, Deborah fala sobre a Olimpíada, o impacto das
políticas de drogas na população negra no Brasil, o racismo visível e o
risco que o mundo corre se Donald Trump for eleito.
ÉPOCA
– A senhora esteve recentemente no Rio de Janeiro, a cidade-sede dos Jogos
Olímpicos, e disse ter se surpreendido, mas não da maneira que imaginava. Por
quê?
Deborah Peterson Small – Na minha bagagem pessoal, eu trouxe tudo o que já tinha lido a respeito das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Entendi que representavam um avanço para as comunidades carentes, uma ferramenta para reaproximar as pessoas. Mas a UPP não é nada disso. Estava na comunidade do Alemão quando passou uma viatura policial. O passageiro segurava uma arma, voltada para fora do carro. Ele estava com a mão no fuzil, como se cada morador fosse um suspeito. Se essa é a polícia exemplar, o que esperar da ruim? Ainda naquela comunidade, me assustei com as marcas de balas nas casas das pessoas – do Bondinho você via os buracos feitos pelos tiros. Atrás daquelas paredes moram pessoas, famílias com crianças pequenas. Nos Estados Unidos isso não existe, e no Brasil é tão comum que ninguém se espanta. Mas deveria. Isso é violação de direitos humanos. O Rio de Janeiro é uma zona de guerra.
ÉPOCA
– Há décadas a senhora estuda a relação entre a política contra drogas e a
população negra. O que encontrou no Rio corrobora sua tese?
Deborah – A política contra drogas no Rio é racista. Como em tantos lugares, investidas da polícia no Rio não alcançam consumidores de drogas de bairros nobres e classe média – nem as casas dessas pessoas. E isso vai acontecer na Olimpíada. Criou-se uma percepção, equivocada, de que o consumo e a venda de drogas têm uma cor. Essa falsa consciência mora fora e dentro das comunidades. Quem mora lá acredita que merece aquele tratamento em nome do perigo iminente. Fiquei muito chocada com os números de mortos por polícia no Brasil – e igualmente pasma com as pessoas que aplaudem a polícia que mata. A polícia é a segunda causa de mortes no Brasil. Isso é esquizofrênico. A Olimpíada poderia servir como bandeira para os direitos da população negra.
ÉPOCA
– A senhora quer dizer que deveria haver ativismo entre os atletas?
Deborah – Nos Estados Unidos, associações esportistas passaram a boicotar estados com legislações contra gays, por exemplo. Assim como eu, que acreditava que o Brasil era um exportador de cultura afro e amava os seus negros como um igual, outros tantos atletas negros estão chegando para a Olimpíada acreditando nisso. Mas não é verdade. Os atletas negros deveriam boicotar a Olimpíada no Brasil, porque o que está acontecendo aqui é um genocídio lento. Estão matando os seus iguais. E a sociedade lava as mãos, como se não tivesse nada a ver com isso. Historicamente, os negros serviam enquanto traziam dinheiro, ou seja, quando eram escravos. Quando libertados, sem nenhuma ajuda ou acolhimento, o sistema que os escravizou tornou os negros um problema para a sociedade, como se fôssemos um fardo. No universo das drogas, são vistos como os traficantes, os bandidos, os violentos. A quem interessa que sejam vistos assim? A quem interessa que não falemos que essas pessoas não têm acesso à casa, à escola, à família? Não se trata de não batalhar ou não, mas de não chegar ao mundo com as mesmas oportunidades. Não pensamos nisso.
ÉPOCA
– Como no Brasil, a polícia americana ganhou manchetes por suspeita de
homicídios contra negros. O movimento negro ganhou força pela dor?
Deborah – Sim, mas, acima de tudo, o movimento ganhou força com as mulheres negras – e todos os tipos de mulheres. São os homens delas que estão morrendo, são elas as principais vítimas de violência, inclusive a doméstica. O movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam, em tradução livre), que alcançou o mundo todo, foi criado por três mulheres queers (termo usado para representar a população LGBT e também transgêneros e transexuais). E o Brasil segue o mesmo caminho.
ÉPOCA
– A senhora sofreu preconceito no Brasil?
Deborah – Antes de responder, queria explicar que, diferentemente dos EUA, onde a luta é entre brancos e negros, no Brasil a batalha é entre negros e não-negros. Aqui, quanto menos negro você for, melhor. As pessoas deixam de usar o cabelo com cachos e roupas afro para parecer menos preto. Eu sou negra, minhas roupas são coloridas e amo bijuterias. As pessoas me olham diferente, porque não estão acostumadas a conviver com uma pessoa como eu. O preconceito aparece no dia a dia. No hotel, durante o café-da-manhã, perguntaram cinco vezes se eu estava hospedada aqui, porque era a única negra sendo servida. Em Salvador, estava à beira-mar com um amigo quando um desconhecido perguntou quanto eu custava. Na cabeça dele, eu só podia ser uma prostituta. Não me entenda mal, eu adoro o Brasil, mas vocês precisam enxergar que são preconceituosos, mais do que gostariam de admitir. Isso não é demérito do brasileiro, apenas. Moro na Califórnia, onde, em tese, as pessoas são descoladas. Toda vez que vou à praia com meu neto de quatro anos e meio, vejo famílias guardando os objetos pessoais, como se meu neto, um bebê de sunga, fosse roubá-los. Tenho outro neto, de oito anos. Ele ainda não entende que a vida dele será diferente, que terá de dar explicações que as outras crianças não precisam aprender. Mas vou precisar ter essa conversa com ele, explicar que quando a vendedora de uma loja vai atrás dele, não é porque quer ajudar, mas porque tem medo que ele vá roubar alguma coisa. Não gostaria que ele perdesse a pessoa que é hoje. Quando essa conversa acontecer, ele vai deixar de ser totalmente livre. Mas não posso protegê-lo a vida toda, então tenho que fazer isso e rezar para que ele sobreviva nesse mundo cruel.
ÉPOCA
– A senhora é contra a proibição das drogas. Por quê?
Deborah – A proibição não faz as pessoas terem boa relação com as coisas. Especialmente os viciados. Como o nome diz, são pessoas que têm uma relação desequilibrada com algum tipo de consumo, e que são incapazes de ficar sem aquilo. Recentemente, as prisões nos Estados Unidos proibiram presos de fumar. O que acontece com pessoas viciadas em algo – de fumo à açúcar – sumariamente impedidas de usar? Você começa a usar de um jeito mais perigoso. No caso dos presos, eles começaram a provocar pequenas mutilações na pele para encurtar o caminho da nicotina dos adesivos. Vou dar outro exemplo, a cocaína. O cérebro de uma pessoa que não usa drogas alcança a sensação de bem estar praticando esportes, fazendo sexo e etc. Quem usa a droga alcança essa sensação rapidamente, com intensidade dez vezes superior. Quanto maior o consumo, maior a queda dessa sensação, que chamamos de crush. Com o tempo, o cérebro perde a habilidade de conseguir naturalmente, e a pessoa depende da droga para se manter bem. A proibição não permite falar sobre isso nem encontrar meios de equilibrar essa situação.
ÉPOCA
– Há algum tipo de política pública que a senhora considere positiva no
tratamento de usuários?
Deborah
– Em São Paulo, conheci o programa Braços Abertos, que conseguiu levar
equilíbrio à vida de usuários de drogas carentes oferecendo acolhimento e casa.
Os frequentadores praticam esportes, tocam instrumentos musicais, limpam. Eles
eliminaram a vida caótica provocada pelas drogas e a pessoa segue em frente. A
proibição também esconde outras facetas das drogas, como os bancos que lavam o
dinheiro do narcotráfico. Por isso, falo que a política contra drogas não se
trata de acabar com as drogas. Nos Estados Unidos também é assim.
ÉPOCA:
Como a senhora vê uma possível vitória do candidato republicano, Donald Trump?
Deborah: Os republicanos têm o poder do congresso. Se ganharem, terão o controle das três casas. Então, por um lado, acho que os republicanos estão apostando porque querem ser os únicos no poder. E aí você tem um Trump, que é o oposto, em todos os sentidos, de Obama. Trump não é preparado, não sabe governar, não é um líder. Trump é um demagogo. Até meu neto de 4 anos sabe respeitar uma pessoa. O mundo levará décadas para se recuperar se Trump for eleito. Tomara que os americanos são façam como os ingleses, que descobriram o que era o Brexit horas depois do fim da votação, numa pesquisa no Google.
Thais
Lazzeri, do Época, em Geledes
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