domingo, 23 de outubro de 2016

DESBRAVANDO O NEGÓCIO DA UBER




O conceito é sedutor e tem sido empolado pela comunicação social. «A Uber é uma plataforma de tecnologia que liga pessoas. Pessoas que se querem deslocar na cidade, e pessoas disponíveis para as levar onde querem ir. Para viajar basta abrir a sua aplicação, confirmar o local onde quer iniciar viagem e confirmar a chamada do veículo. Em poucos minutos, um motorista estará consigo para o levar onde quiser ir. Ao chamar o veículo, tem acesso ao nome e fotografia do motorista, bem como à marca e matrícula do veículo, isto enquanto observa o motorista chegar a si, em tempo real. Pode ainda introduzir o seu destino na aplicação, assegurando que o seu motorista tem acesso ao caminho mais rápido e conveniente, e partilhar o percurso em tempo real com amigos e familiares, garantindo que chega em segurança ao seu destino final. Ao terminar a viagem, basta sair do veículo – o pagamento é feito de forma automática e electrónica, através do cartão de pagamento registado na aplicação». São estas as palavras que encontramos no site da Uber.

Palavras que escondem o que já se tornou visível em praça pública pela mobilização dos taxistas: a ilegalidade. Mas não é a única questão. Ao falar da Uber, há que descortinar os profundos meandros de uma multinacional norte-americana que hoje consegue estar implementada em 350 cidades espalhadas por 67 países. Foi criada em São Francisco, em 2009, lançando o seu serviço nesta cidade em 2010. Opera em Portugal desde o dia 4 de Julho de 2014.

O funcionamento da «moderna» Uber

A Uber é parte de uma onda recente de empresas que compõem aquilo a que chamam «economia de partilha». Através de uma aplicação para smartphones agrega condutores e viaturas a clientes que pretendem o serviço. Sim, agregam, porque não passa directamente pela Uber a contratação de motoristas ou a aquisição de carros. Aqui entram os chamados «parceiros». A Uber está ligada a empresas que permitem a concretização do serviço, ficando apenas com a responsabilidade da «ligação entre as partes» e o cliente, e, sempre, com 25% do valor facturado em cada serviço. Em Portugal, as empresas a quem recorre a Uber são sobretudo agências de aluguer de carros (rent-a-car) e empresas ligadas ao turismo. As primeiras a surgir em Portugal, em 2014, pertencem a dois grupos económicos – a Salvador Caetano e a Sonae.

Casos relatados indicam que existem muitas empresas rent-a-car que, quando não têm os carros alugados a estrangeiros ou ao turismo, colocam os empregados dostand a serem motoristas da Uber, como forma de os meterem «a facturar». Estas situações ocorrem igualmente com funcionários de agências de viagens, sendo que não lhes pagam mais pelo serviço, alegando «que o fazem dentro do horário de trabalho».

Avaliada em Junho de 2014 em 18,2 mil milhões de dólares e com valorizações anuais de 40 mil milhões de dólares, esta multinacional norte-americana tem como investidores, entre outros, a Goldman Sachs e a Google. E «não se importa» de poder dar prejuízo para se implementar no mercado. Portugal é um dos exemplos. Segundo dados fornecidos no programa da RTP «Sexta às 9», em Portugal a Uber deu prejuízo no primeiro ano, procurando implementação no mercado, para depois, em 2015, ter um aumento exponencial do volume de negócios, neste caso para quase 724 mil euros.

Não havendo nenhuma regulamentação sobre as tarifas no caso da Uber, os preços podem variar sempre que quiser. São vários os exemplos de situações em que os preços disparam. Horas de ponta, momentos onde a procura é muita, momentos de greve ou de passagem do ano. Deixamos o exemplo relatado do Brasil. O site Techtudo explica-nos como funciona o «preço dinâmico». Trata-se da aplicação da famosa lei de oferta e procura pela Uber. Ou seja, quando há mais utilizadores a solicitar viagens do que motoristas disponíveis, o preço da corrida sobe. Quando o movimento cai e o número de passageiros é igual ou menor do que o de pilotos, a tarifa volta a cair até atingir o preço normal. Nos dias de semana, o pico tende a ser em horário comercial, especialmente em centros financeiros, que reúnem o maior número de solicitações. Nos fins-de-semana, a tarifa pode voltar a subir em regiões de bares e casas nocturnas no período de volta para casa. O mesmo pode acontecer durante um espectáculo ou evento desportivo, onde a procura de carros tende a ser maior. Nos testes do TechTudo, pode observar-se que a aplicação do «preço dinâmico» ocorre também por localização. Na cidade de Niterói, havia poucos carros e o preço tornou-se mais alto. No centro do Rio de Janeiro, a variação da tarifa chegou a ficar entre o dobro e o quíntuplo do valor original.

São também conhecidas as sucessivas insolvências de empresas intermediárias da Uber, que transferem para o Estado (dívidas fiscais, benefícios recebidos) e para os trabalhadores (salários em atraso, segurança social não paga) uma parte dos custos do dumping desta plataforma. Estas empresas acabam por poder reabrir com outro nome e exactamente para o mesmo efeito – ser intermediária da Uber.

Sobre as práticas fiscais da Uber e como exemplo da relação entre o poder político e económico, citamos um excerto da peça do Expresso intitulada «O mau exemplo que vem do coração da Europa»: «Formalmente controlada por uma companhia offshore do Estado de Delaware, nos EUA, a Uber criou duas subsidiárias na Holanda, o país de Neelie Kroes (ex-comissária europeia da Concorrência até 2010, e depois com a pasta da Agenda Digital até 2014) e concedeu-lhes o direito de usar a propriedade intelectual do negócio fora dos Estados Unidos. Isso significou uma tributação de impostos a uma taxa inferior a 1% sobre os lucros gerados pela actividade da Uber em mais de 60 países (excluindo os EUA) através de um esquema a que a revista Fortune chamou double dutch (duplo holandês). Este esquema foi montado entre 2013 e 2015, e em 2016 Kroes tornou-se consultora da Uber».

O necessário para a prática do serviço – táxi vs. Uber

Em Portugal, o transporte de veículos de aluguer de passageiros, com condutor, seguido de itinerário à escolha do utente e mediante condições de retribuição, é legalmente possível apenas através do transporte de táxi, cujo regime legal se encontra estabelecido no Decreto-Lei n.º 251/98, de 11 de Agosto.

Esta lei exige licenciamento para exercício da actividade, através de alvará cuja emissão é da competência do Instituto de Mobilidade e dos Transporte (IMT), e exige ainda o licenciamento de veículos a atribuir dentro do contingente de cada concelho (limite do número de táxis), através de licença cuja emissão é da competência da câmara municipal respectiva. A lei exige ainda que tal actividade apenas possa ser realizada por viaturas ligeiras, com lotação não superior a nove lugares, incluindo o condutor, equipadas com taxímetro, e conduzidas por motoristas habilitados com certificado de capacidade profissional.

Podemos afirmar que o Decreto-Lei n.º 251/98 estabelece as condições de acesso ao mercado e à organização do mercado de transporte público de passageiros em veículos ligeiros de passageiros, com condutor, mediante retribuição.

A Portaria 277-A/99 de 15 de Abril estabelece as características das viaturas destinadas a táxi e a Lei 6/2013 de 22 de Janeiro estabelece as regras e condições de acesso e exercício da profissão de motorista de táxi. Também o preço cobrado pelo transporte em táxi é fixado por via administrativa ao abrigo do Decreto-Lei n.º 297/92 de 31 de Dezembro.

No caso da Uber, fica assim explícito que não reúne as condições que a lei portuguesa exige para a realização de tal transporte, tendo em conta que nenhum dos intervenientes é titular do competente alvará, nem as viaturas que o executam estão licenciadas pelas respectivas câmaras municipais, nem os condutores são habilitados com o competente certificado e capacidade profissional.

Em Abril de 2015, o Presidente do IMT afirmou numa audição da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas que «os serviços prestados através da Uber configuram uma violação da legislação específica dos transportes», acrescentando que «a Uber é um transporte de passageiros e, aí, não pode fugir à lei do nosso país», a qual, conforme sublinhou, determina que «o transporte público em veículos ligeiros de passageiros só é permitido através do transporte de táxi».

Em Abril de 2015, o Tribunal de Lisboa aceitou a providência cautelar interposta pela ANTRAL – Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros e determinou a proibição, de imediato, da actividade da Uber em Portugal, com página web e aplicações encerradas. O que não veio a acontecer.

Quanto ao argumento da tecnologia, os taxistas fazem questão de revelar aquilo que parece que muita gente «não sabia»: tais plataformas, nas suas bases conceptuais e algorítmicas, são já usadas há muito na logística e nos próprios transportes de passageiros, táxis incluídos.

A situação dos motoristas da Uber

Em Portugal, parte dos motoristas são assalariados de empresas, nomeadamente de empresas parceiras da Uber. Segundo relatos de motoristas, começaram a ser pagos à hora, a recibos verdes mediante as horas de trabalho. Com o evoluir do mercado, passou a ser um sistema em muitos casos comissional e variável. A Uber retém sempre 25% do valor do que é facturado. Se houver um intermediário, este também tem que facturar. Quem paga o gasóleo é o motorista. Os impostos são pagos pelos parceiros. Ou seja, a Uber tem todo o ganho.

Alguns testemunhos foram dados à RTP. Um motorista da Uber relatou que está a recibos verdes e a fazer os seus descontos. Pouco compensa. Retira à volta de 500 euros e deixou de ter vida pessoal com o número de horas que trabalha. Vive agora com metade do ordenado que conseguia há um ano. Luís Leite deixou de fazer serviços para a Uber por causa do salário. Afirmou que, quando começou a trabalhar, a Uber tinha um valor de hora de trabalho, diurna e nocturna, e que, passados três ou quatro meses, o valor da hora foi reduzido para cerca de metade; 30 dias depois passou a receber apenas 33% daquilo que facturava. Nos últimos meses que trabalhou com a empresa parceira da Uber, chegou a ter um vencimento de 240 euros e trabalhava cerca de 40 horas semanais.

Uma reportagem do jornalista Avi Asher-Schapiro para o site Jacobin retrata as condições dos motoristas da Uber em Los Angeles e procura confirmar a tese de que as empresas da «economia de partilha», como a Uber, transferem o risco do negócio das empresas para os trabalhadores. Estamos neste caso a falar de motoristas que não são empregados de uma empresa, mas sim tecnicamente empresários, designados «motoristas-parceiros», que recebem uma percentagem pelo valor do serviço. Longos turnos e mal conseguir levar um salário mínimo para casa é um traço comum.

A atracção estava lá no início: em 2013 os clientes pagavam 2,75 dólares por cada milha (e mais 60 cêntimos por minuto se o carro estivesse parado). Os motoristas recebiam 80% da tarifa. Assim, num regime de full time, os motoristas conseguiam fazer entre 15 a 20 dólares por hora. Milhares de motoristas quiseram inscrever-se, alugando ou comprando carros para trabalhar para a Uber, nomeadamente pessoas em situações críticas devido à crise económica. No entanto, ao longo do último ano, a empresa tem enfrentado a forte concorrência da plataforma Lyft. Para aumentar a procura e expulsar a Lyft do mercado de Los Angeles, a Uber cortou as tarifas da UberX (a modalidade económica) para metade, passando a 1,10 dólares por milha, mais 21 cêntimos por minuto parado.

Os motoristas da Uber não tiveram palavra na decisão, mas têm que pagar o seguro, o combustível e os arranjos dos carros. O custo total para os motoristas estimado pelo fisco norte-americano é de 56 cêntimos por milha, trabalhando assim com margens de remuneração muito baixas.

O caso de Arman, relatado nesta reportagem, mostra-nos que, há um ano, começou a fazer 20 dólares por hora. Este ano nem sequer consegue fazer o salário mínimo. Trabalha até 17 horas por dia para levar para casa o rendimento que conseguia a trabalhar 8 horas há um ano. Quando reclamou com a Uber, a empresa demitiu-o.

Neste caso, a Uber, em vez de pagar salários a trabalhadores, simplesmente encaixa uma parte dos seus rendimentos. Os motoristas assumem todos os riscos do negócio e todos os custos – o carro, o combustível, o seguro – e são os executivos e os investidores que enriquecem.

Depois de cada corrida, a Uber pede aos passageiros para avaliar o seu motorista numa escala de uma a cinco estrelas. Os condutores com uma média inferior a 4,7 podem ser desativados. Os critérios não são mais que opiniões.

O previsto para a regulamentação da Uber e as exigências dos taxistas

O projecto de Decreto de Lei a ser cozinhado pelo Governo português para regulamentar plataformas como a Uber, cria o conceito de TVDE (Transporte em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica), onde os proprietários de tais veículos, se ligados a uma plataforma de intermediação entre oferta e procura, podem aceder à actividade de transporte oneroso de passageiros. Aqui é dado um poder absoluto às plataformas electrónicas para decidir quem pode e não pode ter acesso ao mercado. As plataformas poderiam legalizar-se mediante simples comunicação prévia. Teríamos aqui uma situação em que o sector dos táxis continuaria contingentado e com tarifas fixadas pelo Estado, e o outro, onde se inclui a Uber, completamente liberalizado. É por isso que hoje, uma das principais exigências dos taxistas é que os veículos a utilizar pelas plataformas tenham origem nos contingentes existentes que são fixados pelas câmaras municipais.

É legitimo questionar: para que serve a Autoridade da Concorrência e a Lei da Concorrência, que dizem existir para proteger a lealdade e a igualdade concorrenciais, se se permite que na mesma actividade económica – transporte individual de passageiros – haja agentes sujeitos a pesada regulamentação e outros «com quase nada» regulamentado?


Os taxistas evocam que com estas condições, a Uber pode vir a funcionar em regime de monopólio, aniquilando o sector dos táxis, e prevendo uma escalada de preços nesse cenário. Quanto às condições dos motoristas, ficou claro: a sujeição à precariedade é regra no sistema da Uber.

AbrilAbril

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