sábado, 15 de outubro de 2016

CUBA É PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE!




1 – A Embaixada de Cuba em Angola assinalou o 40º aniversário do ato terrorista que levou ao derrube do avião que cumpria o voo CU-455, entre Barbados e a Jamaica, uma data que Cuba lembra anualmente como o Dia das Vítimas do Terrorismo de Estado, associando à deliberada continuação do bloqueio, enquanto esteio da agressão permanente das sucessivas administrações norte-americanas a Cuba, de há mais de 50 anos a esta parte.

Esse ato, foi um de muitos outros atos terroristas que foram atingindo Cuba bloqueada, entre as mais variadas ementas de desestabilização de que Cuba tem sido vítima ao longo dos mais de cinquenta anos últimos.

Desse modo a hegemonia unipolar aproveita-se de Cuba para criar em ambiente fechado, (com Cuba bloqueada), um autêntico laboratório onde têm sido levado a cabo as mais extravagantes experiências características do tenebroso exercício de domínio imperialista, experiências essas que depois vai aplicar a outras partes do mundo, com os resultados que por exemplo William Blum tão esclarecidamente tem evidenciado e compendiado.

Toda essa conjuntura criminosa atentando contra os mais elementares direitos humanos (em função da dimensão e impactos do bloqueio por via de suas múltiplas aplicações económicas, financeiras, culturais e outras, bem como dos atos terroristas e as ementas de desestabilização que têm sido praticados tirando partido do enquadramento do bloqueio), teve a participação de sucessivas administrações norte-americanas que se empenharam contra Cuba, na espectativa de que assim a hegemonia unipolar iria conseguir romper a intrínseca identidade e unidade entre a revolução progressista e o povo cubano.

A manobra tem sido de tal maneira imperiosa e persistente que o exercício de dois mandatos do Presidente Barack Hussein Obama não foi suficiente para demover o Congresso a levantar o bloqueio, continuando as experiências agora com recurso às novas tecnologias, numa perspetiva de fracionar a própria sociedade cubana, sempre com vista a quebrar a resistência e a unidade da revolução com o próprio povo, acabando com o seu projeto socialista.

2 – A sabotagem criminosa do voo CU-455, tem pois um significado muito amplo e não se pode circunscrever ao ato em si, até por que outros atos terroristas e de agressão têm sido praticados contra a Cuba, por via de contínuas ingerências e manipulações, explorando da maneira mais pérfida o carácter do próprio bloqueio.

Toda essa terrível aprendizagem a partir da experiência foi importante para o poder da hegemonia unipolar, com vista a procurar aplicar noutras partes do mundo esse tipo de modelos de desestabilização e ementas vinculativas, dando cada vez mais espaço ao caos e ao terrorismo, num quadro em que entre os seus vassalos se enquadram os falcões israelitas e as monarquias arábicas feudais.

Sintomática tem sido a expressão anual da Assembleia Geral da ONU: só Israel e os próprios Estados Unidos votam a favor da manutenção do bloqueio, contra o resto da humanidade!...

Cuba tornada laboratório resistiu até hoje e quase tudo o que ali foi experimentado não vincou em relação à ilha nos seus objetivos geo estratégicos, mas acabou por resultar em muitas das outras paragens onde esse tipo de experiências foi aplicado em função das vulnerabilidades de uma parte importante das nações, estados e povos, em todos os continentes.

Entre essas experiências são conhecidas as “revoluções coloridas” e as “primaveras árabes”(efetivamente contra revoluções), introdutórias à degeneração de caos e de terrorismo.

Teorias múltiplas têm sido formuladas em Universidades elitistas (como por exemplo as financiadas pela Fundação Rockefeler), em reforço da realização substantiva desse tipo de projetos…

Sob os olhos da humanidade e atingindo o seu próprio corpo social e político, desfilam “escolas”como as de Milton Friedman (neoliberalismo e seus processos traumáticos de choque e de domínio“soft power” em forma de terapia), Leo Strauss (fonte de inspiração dos neoconservadores), Gene Sharp (manual de autoajuda para os golpes de estado)…

Todas essas nações, estados e povos devem portanto estudar Cuba enquanto laboratório por três razões essenciais:

- Para melhor avaliar o que a hegemonia unipolar vai disseminando pelo mundo num quadro de novas tecnologias e globalização, atingindo em cheio e no seu miolo as sociedades-alvo;

- Para por fim melhor se inspirar nos ensinamentos geo estratégicos que a resistência socialista cubana proporciona de forma clarividente e humana, conforme ao significado vivencial de que“pátria é humanidade”;

- Para conhecer as medidas de inteligência que Cuba foi obrigada a desencadear a fim de, tirando partido do carácter dos mecanismos do poder nos Estados Unidos, infiltrá-los a fim de suster o terrorismo de sua própria emanação.

O mundo pode aprender com Cuba como tem sido possível garantir essa resistência heroica e inteligente, em benefício da unidade, num quadro traumático próprio dum laboratório experimental conforme às mais perversas intenções imperialistas.

3 – As prioridades do socialismo cubano em termos de educação e saúde, que estão a conduzir ao desenvolvimento científico, assim como as medidas coerentes de respeito para com a Mãe Terra, são os eixos estratégicos e humanizados da resistência cubana.

Às tensões, conflitos e guerras impostas pelo império, Cuba contrapõe a clarividência no exercício da paz social possível, tornando-se assim um pequeno farol sinalizador para toda a humanidade, pela sua filosofia, doutrina e lúcida prática marxista-leninista.

 Ao caos e terrorismo Cuba responde com inteligência, conforme o exemplo dos 5 heróis… à barbárie Cuba responde com a sabedoria humanizada daqueles que tudo fazem pela paz de acordo com uma lógica com sentido de vida.

Os esforços na educação e na saúde estão de forma vital vocacionados para a formação das novas gerações, influindo substantivamente nas respostas solidárias e internacionalistas de toda a sociedade, com tal expressão que Cuba se abre ao mundo, numa energia imparável que em muitos aspetos vai rompendo com o próprio bloqueio.

O respeito para com a Mãe Terra, associado a todos esses esforços com atenção prioritária voltada para a formação de novas gerações, permite que o turismo, para muitos uma “indústria de paz”, se tenha vindo a tornar, paulatinamente, num dos mais importantes sectores de atividade económica e financeira em Cuba.

O exercício da independência e da soberania tem sido garantido ao povo cubano pela revolução socialista nesses precisos termos humanizados e essa resposta contrasta com as pérfidas razões do império armado do bloqueio e de todas as sevícias laboratoriais que o anima, integrando o pacote geral de desestabilização global.

Mais que votar hoje na ONU contra o bloqueio, as nações, estados e povos da Terra, em especial os membros do Movimento Não Alinhado, deveriam reconhecer, desde logo na Assembleia Geral, que Cuba é património de e para toda a humanidade!

Imagens:
- Duas fotos do ato celebrado nas instalações diplomáticas cubanas em Luanda, que contaram com a prestigiosa presença da camarada Maria Eugénia Neto;
- O Herói cubano, oficial de inteligência e combatente anti terrorista Gerardo Hernandez, discursando em Cuba, no ato do Dia das Vítimas do Terrorismo de Estado, realizado no cemitério de Colón em Havana;
- Cópia de documento desclassificado relativo à operação terrorista realizada contra o voo CU-455 nos Barbados;
- Foto do monumento erigido em memória das vítimas.

A consultar:
- "El bloqueo de EEUU causó a Cuba daños por 4.680 millones de dólares el último año" – https://actualidad.rt.com/actualidad/218338-cuba-presentar-informe-anual-bloqueo-embargo-eeuu 
- DISCURSO PRONUNCIADO POR EL COMANDANTE FIDEL CASTRO RUZ, PRIMER SECRETARIO DEL COMITE CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CUBA Y PRIMER MINISTRO DEL GOBIERNO REVOLUCIONARIO, AL CONMEMORARSE EL X ANIVERSARIO DEL TRIUNFO DE LA REBELION, EN LA PLAZA DE LA REVOLUCION, EL 2 DE ENERO DE 1969 – http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1969/esp/f020169e.html 
- Del bloqueo no se dijo una palabra – http://www.granma.cu/granmad/secciones/ref-fidel/art120.html
- America Latina e África contra o bloqueio dos Estados Unidos c ontra Cuba em UN – http://tudoparaminhacuba.wordpress.com/2012/10/01/america-latina-e-africa-contra-o-bloqueio-dos-estados-unidos-contra-cuba-em-un/ 
- O bloqueio é uma política do passado e deve acabar – http://pt.granma.cu/cuba/2016-07-20/o-bloqueio-e-uma-politica-do-passado-e-deve-acabar 

ANGOLA E BRASIL NA DEUTSCHE WELLE



As pausas acentuadas de publicação que estão a ocorrer no Página Global quanto a atualidade e opinião sobre os países lusófonos convidam a que pelo menos se faça aqui um “apanhado” sobre a matéria que tem sido publicada noutros títulos deixando as respetivas ligações para os que tenham interesse em se atualizar.

Começamos por Angola e contamos neste fim-de-semana abordar ainda outros países da lusofonia através do mesmo método – um mal-menor.

Na Deutsche Welle tem alguns títulos que podem interessar. Que até envolvem o Brasil:


Jornalista angolano critica proximidade de Lula da Silva ao chefe de Estado de Angola e fala sobre a Odebrecht nesse país. O ex-presidente brasileiro tornou-se réu (13.10) em ação sobre obras em Angola.


A denúncia é de ex-responsável da Petrobras, no âmbito das investigações de corrupção na petrolífera brasileira (Operação Lava Jato). Advogado de um dos visados nas novas denúncias diz que se vive "fase dos boatos".


  
Ativistas angolanos anunciarm a intenção de realizar "manifestações espontâneas" em Luanda para reivindicar a libertação de 'Dago Nível Intelecto'.


Em discurso realizado na quarta-feira (12.10.) em Luanda, Filomeno Dias diz que Igreja Católica não pode ficar alheia à luta e à exigência pela justiça social no país.

Angola na Comissão do Golfo da Guiné e na Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul



Conferência que se realiza já no próximo dia 25 de Outubro, 18,00 horas, no ISCTE-IUL, em Lisboa.

Um projecto a que Eugénio Costa Almeida se dedicou este ano no âmbito do seu Pós-Doutoramento.

Projeto que era para ser um pouco mais abrangente, mas razões académicas e institucionais levaram que se ficasse por este Debate único onde estarão excelentes oradores.

Título completo da Conferência/Debate: 

«A orientação de Angola no seio da Comissão do Golfo da Guiné (CGG) e a sua coordenação com a Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ZOPACAS): qual o posicionamento na interação das duas organizações»

Informação no PG com a cortesia de Eugénio Costa Almeida. Leia mais Eugénio Costa Almeida* no Página Global

*Investigador e Pós-Doutorando. 

*Eugénio Costa Almeida – Pululu - Página de um lusofónico angolano-português, licenciado e mestre em Relações Internacionais e Doutorado em Ciências Sociais - ramo Relações Internacionais - nele poderão aceder a ensaios académicos e artigos de opinião, relacionados com a actividade académica, social e associativa.

CORUJA: O PRIMEIRO CRONISTA DE PORTO ALEGRE




No século XIX, grande parte do cotidiano de Porto Alegre foi registrado em crônicas presentes em publicações da época. Este tipo de narrativa teve na figura de Antônio Álvares Pereira Coruja (1806-1889), cuja alcunha era “Coruja”, o seu pioneirismo entre os porto-alegrenses.

Nascido, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 1806, nosso primeiro cronista, de acordo com o pesquisador Lotário Neuberger, era filho do português José Pedro Álvares de Souza Guimarães e da gaúcha Felícia Maria da Silva. De origem humilde, teve que trabalhar, desde cedo, como sacristão, na Igreja Nossa Senhora Madre de Deus (Igreja Matriz).

A responsável por sua alfabetização, por volta de 1811, foi a gaúcha, natural de Rio Pardo, Maria Josefa B. Pereira Pinto (1775-1837), considerada a primeira mulher jornalista no Brasil. Monarquista convicta, ela defendia o retorno do dom Pedro I, que havia abdicado do trono,  07 de abril de 1831, além de combater os liberais farroupilhas, por meio de seu periódico “ Belona Irada contra os Sectários de Momo”(1833 -1834).

Como meio de sobrevivência, nossa primeira jornalista fundou, em Porto Alegre, uma escola primária, em sua própria casa, na qual o nosso cronista foi alfabetizado. As aulas eram ministradas, na Rua da Cadeia, para ambos os sexos, sendo o local absorvido mais tarde pela Avenida Senador Salgado Filho. Este foi o primeiro curso no Brasil, que reuniu meninos e meninas na mesma sala, ratificando o quanto esta mulher foi vanguarda em sua época.  

Após esta etapa, Coruja seguiu seus estudos com o mestre português Antônio Ávila, na Rua do Cotovelo (Atual Riachuelo), próximo ao Arquivo Público do Estado. Conhecido  por ser muito rigoroso, que punia, com castigos, o aluno não cumpridor de suas determinações, este professor ganhou a alcunha de “Amansa Burros’. Aos 9 anos, em 1816, Coruja se aproximou do Pe. Tomé de Souza - famoso professor de latim da cidade -, do qual foi aluno, tendo aulas de português, latim, matemática e filosofia.

Existem algumas versões quanto à origem de sua alcunha “Coruja”. Uma delas afirma que o nosso cronista em sua primeira aula, com o Padre Tomé, ao apresentar-se, chamou a atenção do discípulo Cândido Batista que gritou: “Olhem, parece mesmo uma coruja”. A partir de então, a alcunha se difundiu, sendo esta a maneira que, o nosso gramático, historiador, dialectólogo, político e empresário, ficou conhecido, popularmente, durante a sua vida.


A jornada do mestre

Em 1826, designado pelo Presidente da Província, o futuro Visconde de Camamu, Coruja viajou ao Rio de Janeiro, para cursar o método de ensino mútuo do inglês Joseph Lancaster. Tratava-se de um curso, que teve a duração um ano, do qual saiu habilitado e nomeado professor régio. Retornando para Porto Alegre, ele passou a exercer o cargo.

  No dia 02 de agosto de 1827, ele abriu, na Rua da Graça, uma escola de ensino mútuo, conhecida como “Casa Queimada”, para alfabetizar em grupo. Este método não foi generalizado devido à falta de professores que soubessem aplica-lo. De acordo com o historiador Aurélio Porto (1879-1945), a escola possuía grande variedade de livros didáticos à venda.  O nosso cronista lecionou também na escola do seu antigo mestre, Antônio Ávila (o Amansa Burros), de 1827 a 1835, quando, então, eclodiu a Revolução Farroupilha (1835-1845). O importante escritor Múcio Teixeira (1857-1926), que pertenceu à Sociedade Partenon Literário (1868) - a mais antiga sociedade literária do Brasil -, descreveu o nosso cronista Coruja:

“ (....) um homem feio de sombrancelhas hirsutas, nariz adunco, boca rasgada e cabeça grandemente achatada.”

Coruja, a Maçonaria e a Revolução Farroupilha (1835-1845)

No ano de 1831, o professor Coruja se tornou redator do jornal “O Compilador  em Porto Alegre” (1831-1832) que foi criado por alguns liberais, como  Francisco das Chagas Martins Ávila e Souza (o Padre Chagas), Pedro José de Almeida (Pedro Boticário) – redator de “Idade de Pau” e o próprio Coruja que fundaram, no dia 31 de julho, daquele ano, o “Gabinete de Leitura”.  Na realidade, o Gabinete encobria, por motivos de perseguições de ordem política e religiosa, a nossa primeira loja maçônica “Filantropia e Liberdade“. A decisão, quanto à invasão de Porto Alegre, pela Ponte da Azenha, dando início a mais longeva guerra civil no Brasil, ocorreu nesta loja, que se localizava na Rua do Rosário, atual Vigário José Inácio. O jornal “O Continentino” (1831-1832) era órgão oficial desse “Gabinete de Leitura”, que também mantinha uma escola de primeiras letras.

No dia 18 de setembro de 1835, Bento Gonçalves da Silva (1788-1847) abriu a reunião que decidiu o início da Revolução Farroupilha (1835-1845). Estavam presentes na Loja Filantropia e Liberdade: José Gomes Jardim (1774-1854), Onofre Pires (1799-1844), Pedro Boticário (1799-1850), Vicente da Fontoura (1807-1860), Paulino da Fontoura (1800-1843), Antônio de Souza Neto (1803-1866) e Domingos José de Almeida (1797-1871) e o próprio Coruja que fundaram, no dia 31 de julho, daquele ano, o “Gabinete de Leitura”.  Na realidade, o Gabinete encobria, por motivos de perseguições de ordem política e religiosa, a nossa primeira loja maçônica “Filantropia e Liberdade“. A decisão, quanto à invasão de Porto Alegre, pela Ponte da Azenha, dando início a mais longeva guerra civil no Brasil, ocorreu nesta loja, que se localizava na Rua do Rosário, atual Vigário José Inácio. O jornal “O Continentino” (1831-1832) era órgão oficial desse “Gabinete de Leitura”, que também mantinha uma escola de primeiras letras.

Em 07 de abril de 1835, realizaram-se eleições para a Assembleia Provincial que contou com a participação de Coruja do Partido Liberal. Não atingindo o número de votos, ele ficou como suplente de deputado. Ainda no mesmo ano, o Presidente da Província, Fernandes Braga, nomeou Coruja para lecionar a cadeira de Filosofia Racional e Moral. Passados alguns meses, em 14 de setembro, ele assumiu uma cadeira na Assembleia e tornou-se o primeiro secretário da Mesa.

A família e o exílio no Rio de Janeiro

Os liberais farroupilhas dominaram a Capital da Província de 20 de setembro de 1835 a 15 de junho de 1836, quando esta foi retomada das mãos dos revolucionários liberais.  Dentro deste período, em 30 de dezembro de 1835, o professor Coruja se casou com a riograndina Catarina Lopes e teve um filho adotivo que foi abandonado à porta de Antônio Marques da Cunha. Anterior à criação, em 1838, da Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia, cuja finalidade era receber as crianças enjeitadas, era um costume deixá-las à porta de uma residência. Este filho adotivo recebeu o nome de  Antônio Álvares Pereira Coruja Júnior.

Quando Manuel Marques de Souza (1804- 1875) – futuro Conde de Porto Alegre – retoma a Capital, Coruja e outros liberais, incluindo o presidente da Província José Marciano Ribeiro, são presos e exilados para o Rio de Janeiro. O navio de guerra Pojuca, que levava os traidores do Império, chegou ao seu destino, em 18 de agosto de 1836.  Em outubro daquele ano, foram soltos por ordem de habeas corpus, voltando para Porto Alegre. Aqui, ao desembarcarem, foram encarcerados a bordo do Presiganga, o navio-prisão, do qual havia escapado o futuro Conde de Porto Alegre, responsável pela retomada do poder imperial na Capital gaúcha.
   
No ano de 1837, quando chegou a Porto Alegre o presidente Araújo Ribeiro, Coruja foi liberto da prisão. Após esses acontecimentos, nosso cronista decidiu retornar para o Rio de Janeiro, onde viveu o resto da sua existência.

Desencantado com as questões políticas, que havia vivenciado na Província, nosso cronista passou a dedicar-se, de forma exclusiva, ao estudo, ao ensino e à educação. Sua esposa, a professora Catarina Lopes, e o filho adotivo chegaram a Capital do Império em 1837, O casal tinha em comum à dedicação ao Magistério.

O mestre Coruja no Rio de Janeiro

Em 02 de julho de 1839, Coruja foi anistiado por decreto do Regente Araújo Lima, embora permanecesse, em vigor, a ordem de não retornar a Província gaúcha. Ainda nesse ano, foi recebido como membro efetivo do Instituto histórico e Geográfico do Brasil tendo sido o tesoureiro por 20 anos.

Considerado o primeiro gramático no Brasil, o nosso cronista fundou, em 1841,em sua residência, o Liceu Minerva, à Rua São José, 56, tendo sido o diretor até o ano de 1856.

Em 1860, no Rio de Janeiro, Coruja se tornou presidente da Cia. de Seguros Feliz Lembrança, da qual foi o fundador. Ele também fundou a Sociedade Imperial Amante da Ilustração e a centenária Sociedade Sul-Rio-Grandense. Membro efetivo do Supremo Conselho do Grande Oriente do Brasil, ele recebeu, em 1866, a condecoração de Cavaleiro da Ordem da Rosa.

Os fracassos financeiros

Em 1879, a empresa Caixa Depositária Sociedade Glória do Lavradio, fundada por Coruja, faliu e dessa crise ele não se recuperaria mais, pois teve que entregar tudo o que tinha de bens aos credores. Já em 1872, havia falido uma casa bancária também fundada, em sociedade, por ele. Dizem que o mestre Coruja, bastante envergonhado, com os acontecimentos, deixou de circular durante o dia e no Carnaval costumava visitar os parentes mascarado. A ruína, do seu primeiro empreendimento, é atribuída à má índole do seu sócio Costa Guimarães.

Quase meio século longe de sua amada Porto Alegre, não impediu que o nosso cronista escrevesse sobre a cidade, onde viveu a sua infância e juventude. O transcorrer dos anos foram dramáticos para Coruja, pois, em 07 de janeiro de 1880, faleceu a sua esposa Catarina e, após seis anos, o filho adotivo, o Comendador Coruja, com o qual foi morar após sua irreversível falência econômica.

 Suas crônicas

 Dentro deste quadro de dores e perdas financeiras e afetivas, Coruja passou a escrever as crônicas, que o consagraram, pela sua importância histórica, como “O primeiro cronista gaúcho”. Os registros de Coruja, acerca da nossa Capital, principalmente, após o período da Revolução farroupilha (1835-1845), são fontes imprescindíveis para o pesquisador que se debruçar sobre a história da Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre.

A partir de 1880, Antônio Álvares Coruja escreveu sua famosa série de crônicas sobre Porto Alegre. “As Antigualhas, reminiscências de Porto Alegre” foram inicialmente publicadas, como folheto, em 1881, pela Tipografia do Jornal do Comércio (1864-1911). Entre os anos de 1883 a 1889, suas crônicas foram publicadas na “Gazeta de Porto Alegre” (1879-1884). O importante Anuário da Província do Rio Grande do Sul publicou também seus trabalhos no período de 1885 a 1889.

Já no século XX, as crônicas do nosso escritor Coruja, em 1947, aparecem na “Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul” do número 105 a 108. Em 1983, foram publicadas pela Companhia de Seguros Gerais com notas explicativas graças à excelente pesquisa do historiador Sérgio da Costa Franco.  Outra série dessas crônicas foi publicada pela Secretaria Municipal de Cultura, sob a coordenação de Luís Augusto Fischer, denominada de Série Coruja.

Os aspectos da antiga cidade, como seus costumes, ruas e personagens, estão presentes em suas crônicas intituladas: Reminiscências de Porto Alegre, Antigualhas, Origem dos nomes de algumas famílias conhecidas, As alcunhas de Porto Alegre e outras alcunhas e As ruas de Porto Alegre, entre outras.
  
A produção intelectual do mestre Coruja foi intensa, a exemplo das obras: “Compêndio da Gramática Nacional” (1835), que teve várias reedições; “Manual dos Estudos de Latim” (1838), “Compêndio de Ortografia da Língua Nacional” (1848), “Aritmética para Meninos” (1850). “Manual de Ortografia da Língua Nacional” (1850), “Lições de História do Brasil” (1855), “Coleção de frases e vocábulos usados na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul” (Londres,1856), que foi publicada  cinco vezes, inclusive, na famosa revista gaúcha “Província de São Pedro” nos números 7-10 de 1946 e por último em “Vocabulário Sul-Rio-Grandense” publicado, em 1964, pela Editora Globo. 
  
Os derradeiros meses de existência do nosso primeiro cronista foram bastante difíceis com a sombra da miséria a acompanhá-lo. Coruja teve que aceitar abrigo em república de estudantes e até morar em cortiço. Assim faleceu o ilustre professor e pedagogo de mais de uma geração de brasileiros. Antônio Álvares Pereira Coruja deixou este mundo, às 17 horas, no dia 04 de agosto de 1889, num modesto quarto da Rua Conde d’Eu, atual Frei Caneca, nº 108, no Rio de Janeiro. Seu atestado de óbito registra como causa mortis “miséria orgânica”. Devido à sua extensa contribuição cultural, o mestre Coruja mereceu um extenso necrológio do Anuário da Província do Rio Grande do Sul de 1890.

A figura do mestre Coruja, embora a grandeza do seu trabalho, não é devidamente reconhecida no resto do Brasil. Em nosso Estado, de acordo com a Ata de 27 de junho de 1907, a Câmara Municipal de Porto Alegre deu o nome de Comendador Coruja a uma rua no bairro Floresta.

A Caixa Econômica Federal, criada, em 04 de novembro de 1861, com o nome de Caixa Econômica e Monte de Socorro, lembrou-se do nome do mestre Coruja, que foi o seu primeiro depositante com a quantia de dez mil réis. Nas comemorações do  centenário desta instituição, por ordem de sua diretoria, Coruja foi homenageado, quando se concedeu  o prêmio de Cr$ 50, 000,00 à menina Teresinha Gazola de Barros. Esta menina, que, á época, tinha seis meses, era filha do Capitão Edwy dos Santos Pessoa de Barros, neto do Comendador Coruja Júnior. Já a Caixa Econômica Federal de Porto Alegre, em suas dependências, possui um quadro emoldurado com a fotografia do nosso primeiro cronista e gramático, evidenciando a importância desse gaúcho.

 O nome do porto-alegrense Antônio Álvares Pereira Coruja, devido à grandeza de seu trabalho, é motivo de orgulho para todos os brasileiros, que seguem na luta por uma educação de qualidade e inclusiva, desenvolvendo valores que formem cidadãos conscientes e responsáveis diante dos desafios de construirem uma sociedade mais fraterna e menos desigual e excludente. De origem humilde, Coruja descobriu, desde cedo, o valor da educação, como ferramenta, que liberta o ser humano dos grilhões da ignorância e da exploração do homem pelo homem.  

*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Imagens
1- Imagem de Antônio Álvares Pereira Coruja
2- Capa do livro " Antigualhas, Reminiscências de  Porto Alegre"
3- Rua da Praia ou Rua dos Andradas em 1860 / A mais tradicional via do centro de Porto Alegre
4- Compêndio de Ortografia da Língua Nacional de 1848

Bibliografia
CESAR, Guilhermino, História da literatura (1737- 1902). Porto alegre: Editora Globo, 1956.
CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas, Reminiscências de Porto Alegre.
Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983.
COSTA LEITE, Carlos Roberto Saraiva da.  História da Imprensa. In: “Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – 30 anos”. Porto Alegre: CORAG, 2004.
FERREIRA FILHO, Arthur. Nomes tutelares do Ensino Rio-grandense. Porto Alegre: IEL DAC e SEC, 1977.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1978.
MIRANDA, Marcia Eckert; COSTA LEITE, Carlos Roberto Saraiva da. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
NEUBERGER, Lotário. Comendador Coruja. In: “Vidas e Costumes“. Porto Alegre: CIPEL, 1994.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória Porto Alegre: espaços e vivências, Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1999.
PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, s/d.
PORTO, Aurélio. Professor A. A. Pereira Coruja. Rio de Janeiro: Boletim da Sociedade. Felipe de Oliveira, nº 08, jul  / 1944.
SPALDING, Walter. Cronistas da cidade. Porto Alegre: Boletim Municipal, Vol. V, Ano IV,  nº 10, jan–abr /1940.

O MITO DE UMA EUROPA EM PAZ



Nadine Rosa-Rosso [*]

No dia seguinte aos atentados de 13 de Novembro em Paris, perante o Congresso, François Hollande afirmou em tom grave: "a França está em guerra". A mesma frase repete-a sem cessar após cada atentado. Depois dos acontecimentos de Niza, acrescentou que a "guerra está fora e dentro da França". A terra sagrada dos direitos humanos, da paz e das Luzes amanheceu em estado de sítio, cobardemente atacada pela barbárie e o obscurantismo.

Esta é a versão da história que se supõe que deveríamos aceitar e assumir, nós, os povos de uma Europa civilizada que temos conseguido viver em paz há setenta anos.

Na realidade, nunca deixámos de estar em guerra. E a França é um bom exemplo do que é um estado de guerra permanente. Impõe-se a necessidade de recordar a história.

Um período de guerras ininterruptas 

Mal acabara a II Guerra Mundial, o governo provisório francês surgido, das forças da resistência e tantas vezes representado como exemplo pela esquerda actual, envia ao Vietname (nessa época parte da Indochina francesa) um corpo militar expedicionário para tratar de acabar com a guerra de independência. Sob a presidência de Leon Blum, figura política modelar para a esquerda actual, a intervenção transforma-se numa verdadeira guerra. A França envia cerca de meio milhão de soldados para salvaguardar o seu território colonial: 43,5% dos soldados desse exército provem das outras colónias francesas (Magreb e África negra) A França será derrotada na batalha de Dien Bien Phu, em Maio de 1954.

Nesse mesmo período, em 1947, a França perpetra um massacre em Madagáscar contra a rebelião dos malgaches, houve 11 mil mortos, segundo as versões oficiais francesas e 100 mil mortos segundo os resistentes malgaches. Nessa guerra, uma vez mais, as tropas de repressão francesas eram constituídas na sua maioria por soldados provenientes das colónias africanas e magrebinas.

Essas guerras sangrentas não impediram a participação da França, no mesmo período, na guerra da Coreia, de 25 de Junho de 1950 a 27 de Junho de 1953. Uma coligação de 17 estados (entre eles a Bélgica e a Grã Bretanha), liderados pelos Estados Unidos e sob bandeira da ONU, teve por objectivo exactamente como na Indochina — opor-se às lutas de libertação dirigidas por forças comunistas. Estas duas guerras provocaram mais de dois milhões de mortos. A guerra esquecida da Coreia foi uma guerra de destruição maciça. Em termos actuais chama-se a isso genocídio. A capital Pyongyang foi totalmente arrasada. "No início do ataque, a 14 e 15 de Dezembro, a aviação norte americana lançou sobre Pyongyang 700 bombas de 500 libras cada uma. Os aviões de combate Mustang lançaram napalm e 175 bombas de explosão retardada que aterrorizavam com um ruído ensurdecedor e rebentavam depois. Quando as pessoas tentavam resgatar os corpos dos mortos dos incêndios provocados pelo napalm, as bombas de explosão retardada detonavam. No início do mês de Janeiro o general Ridgway ordenou de novo um ataque contra a capital Pyongyang "procurando destruir a cidade pelo fogo com bombas incendiárias" (objectivo cumprido em duas etapas, a 3 e 5 de Janeiro de 1951)" [1] .

A guerra do Vietname, assim como a guerra da Coreia desembocaram na partição dos dois países. O Vietname conseguiu a sua reunificação mediante uma nova e longa guerra de independência, desta vez contra os Estados Unidos em 1975. A Coreia ainda não está reunificada e o território do sul continua ocupado pelos Estados Unidos. É este o tipo de paz que dão as nações autoproclamadas civilizadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Essas guerras foram rapidamente olvidadas pela população europeia, mas não pelas populações afectadas por essas guerras.

E não foram só os povos asiáticos os afectados por essas guerras. A vitória dos vietnamitas em 1954 contra a metrópole francesa deu um forte impulso a outras lutas de libertação em toda a África.

Longe de aprender com a sua derrota humilhante no Vietname, a França continuou com o seu programa colonial. "Entre 1960 e 1968, houve 60 intervenções militares francesas na África subsahariana, 23 foram empreendidas para "manter a ordem" ao serviço de um regime amigo e as outras 14 para derrotar governos que não se submetiam às ordens dos dirigentes franceses". [2]

A guerra mais conhecida, no que respeita à França, é, supostamente, a guerra da Argélia. Só quero insistir em alguns aspectos. Primeiro sobre a posição do Partido Comunista Francês, aureolado desde a Libertação — e aos olhos dos nacionalistas argelinos, pela sua heróica resistência perante o ocupante nazi. (em Maio de 1945, uma marcha nacionalista em Setif foi reprimida sangrentamente e a revolta que se seguiu, será também liquidada com uma violência inaudita. Nesse caso também variam as cifras entre um milhão e 80 mil vitimas segundo o ponto de vista do historiador.

Como explica Mohammed Harbi, em França as forças políticas provenientes da Resistência deixam-se manejar pelo partido colonialista. "Procura-se a paz há 10 anos, se a França não fizer nada, tudo voltará à situação anterior mas pior e provavelmente sem remédio" alertou o general Duval, mestre da obra da repressão. O Partido Comunista Francês (PCF) que qualificou os líderes nacionalistas como "provocadores ao serviço de Hitler" e que pediu que esses dirigentes fossem passados pelas armas" (fuzilados) — será considerado apesar da mudança de opinião posterior e o seu combate pela amnistia, como partidário da colonização" [3]

O inimigo interno 

Outro aspecto que quero sublinhar é a criação do "inimigo interno" na politica e na ideologia francesa e que tomou corpo durante a guerra da Argélia. "A 17 de Outubro de 1961, Paris foi cenário de um dos maiores massacres de civis da história contemporânea da Europa ocidental. Nesse dia dezenas de milhares de argelinos manifestavam-se pacificamente contra o toque de recolher que lhes havia sido imposto doze dias antes e a repressão desencadeada contra eles pelo perfeito da polícia do Sena, Maurice Papon. A intervenção da polícia foi brutal e sanguinária. Dezenas de argelinos provavelmente entre 150 e 200, foram assassinados. Alguns corpos foram encontrados no Sena. Durante decénios, a memória deste episódio maior da guerra da Argélia foi silenciado" [4]

Segundo Mathieu Rigouste [5] o conceito de inimigo interno data dessa época e está vinculado à presença de uma emigração importante surgida da colonização. "A história do controle da emigração no pensamento militar francês permite analisar, estudando a reconstrução de um inimigo interno socio-étnico, a recriação e depois a generalização no tempo e espaço de uma tecnologia concebida para efectuar um controle excepcional de populações consideradas inferiores".

Como reacção ao atentado de Niza (França) de Julho de 2016, Georges Fenech, presidente da comissão de investigação parlamentar sobre os atentados de 2015 pediu a criação de um "Guantanamo à francesa". Propôs reunir todos os jiadistas que voltavam da Síria no centro penitenciário da ilha de Re.

Essa ideia que provocou muita polémica, funde as suas raízes na guerra da Argélia durante a qual o governo francês desenvolveu campos de reagrupamento" destinados aos resistentes da FNL para impedi-los de receber qualquer tipo de apoio por parte da população argelina. Só falta introduzir oficialmente a tortura na França para completar o regresso ao passado. Por outro lado, este debate delirante já se dá no seio da Frente Nacional: reintroduzir a tortura ou aplicar a pena de morte para Salam Abdesiam, tudo pode acontecer.

Assassinatos políticos em grande escala 

A história "pacífica" da França não se limita às guerras. A pátria autoproclamada dos direitos humanos também desenrolou uma tradição importante de assassinatos políticos exterminando dirigentes nacionalistas da África e do Magreb. No livro "Devolvam as espingardas" Jean Ziegler dedica um capítulo às campanhas de assassinatos políticos organizados pelos serviços secretos europeus e analisa o caso dos Camarões. Todos os dirigentes nacionalistas, sem excepção, foram assassinados uns atrás dos outros. Ruben UmNyobe, já em 1955, e depois os seus sucessores Isaac Nyobe Pandjok, David Milton, Tankeu Noé [6] . Zigler documenta o assassinato do jovem médico Félix Roland Mounie, dirigente da União das Populações dos Camarões (UPC) que foi convidado por um "jornalista" francês para um almoço. Félix-Roland Mounie morreu em Genebra envenenado na noite seguinte. Esse jornalista, era na realidade, o coronel William Betchel, oficial francês do SDEXCE (Serviço de Documentação Exterior e a sua inteligência) e que nunca foi condenado por esse crime. E há muitos outros casos.

Agora é moda no Ocidente a denúncia da corrupção (evidente) de muitos chefes dos estados africanos, mas seria melhor lembrar que os nossos governos e seus sicários assassinaram quase todos os dirigentes nacionalistas íntegros que queriam devolver a independência, a dignidade e a justiça aos países africanos. Sendo belga, não posso deixar de lembrar Patrice Lumumba, herói africano ferozmente assassinado pelo comandante belga Weber a 17 de Janeiro de 1961, e cujo corpo foi depois dissolvido em ácido. Os seus filhos lutam até hoje sem qualquer resultado, para que os culpados e o Estado belga sejam condenados. Como lembra Jean Ziegler. "Estes crimes de Estado foram implacáveis: era imperativo acabar com os autênticos líderes nacionalistas para instalar no poder as elites autóctones, amestradas, influenciadas e controladas pelo colonizador" [7] Matar Lumumba para instalar o títere Mobutu, por exemplo.

Guerras, torturas e assassinatos políticos, esses são os verdadeiros rostos desta França que se apresenta como portadora das luzes quando age para defender o seu império colonial e os interesses das suas multinacionais, Elf, Total, Areva, Bollore, Eramet, Technip, Bouygues, Orange, Geocoton, Rougier, etc. [8] . E não se trata de uma história do passado, mas sim da vida quotidiana de milhões de africanos.

O que é realmente novo hoje, é que a guerra, ou pelo menos uma mínima parte dessa guerra, chegou até nós, em solo francês ou em solo belga. Vítimas civis inocentes que morrem, e com isso se mergulham famílias inteiras no horror. Por termos fechado os olhos perante tantas vítimas inocentes no terceiro mundo, vítimas das nossas guerras coloniais? Porque continuamos a apoiar governos e partidos políticos que perpetuam essa mesma política?

Se o discurso dos recrutadores da jihad atrai tantos jovens é porque a maioria das vezes usa uma retórica anti imperialista e porque qualquer outra forma de protesto seu contra as nossas sociedades foi reprimida [9] . Em vez de concentrar todo o debate no aspecto religioso do fenómeno, seria mais produtivo analisar o aspecto político e fazer um balanço correcto a propósito das "nossas" políticas coloniais e neocoloniais impregnadas de massacres e de guerras. Embora os chefes do Daesh nada tenham que ver com os dirigentes nacionalistas do século passado, bem podem ocupar o lugar vazio deixado pelo nosso silêncio ensurdecedor sobre 70 anos de política colonial feita de guerras e massacres.

Mas para quebrar esse silêncio nada podemos esperar nem dos partidos no poder nem dos partidos na oposição, porque para eles pôr em dúvida o colonialismo só lhes serviria para perder votos eleitorais. Mas, como diz Jean Ziegler, "cada um deve escolher o seu campo", o de quem, apesar da repressão e os massacres continua a resistir, e embora sejam aqui muito poucos, existem apesar de tudo os Henry Alleg (autor do importante livro A questão denunciando a tortura e escrito sendo prisioneiro dos franceses na Argélia), os membros da Rede Jeanson (rede de apoio a FLN), os carregadores de maletas anónimas (pessoas que transportam dinheiro e documentos falsos para a FLN, que fazem com que continuemos a amar a França). 

Notas:

(1) chaoscontrole.canablog
(2) Francis Azalier, Colonialismo e imperialismo: "a excepção francesa" ou o "mito humanista", numa má descolonização, a França: do império aos levantamentos dos bairros populares. O tempo das cerejas, Pantin, 2007, p. 36-37.
(3) Mohammed Harbi, Faces ocultas da segunda guerra mundial. A guerra da Argélia começou em Setif. O Mundo diplomático, Maio de 2005, pag. 21;www.monde-diplomatique
(4) www.lemonde.fr/societe/
(5) Mathieu Rigouste, o inimigo interno, da guerra colonial ao controle securitário, conflits.revues.org/31
(6) Jean Ziegler, Devolvam as armas. Escolher o seu campo. Edições do Seuil, Paris, 2014, pp 199-200
(7) Idem, p. 198
(8) www.afrique-demain.org/
(9) Ver o meu artigo anterior: 26 anos depois da revolta dos jovens em Forest: primeira, segunda, terceira geração, sempre a repressão….

[*] Jornalista, belga.

O original encontra-se em http://nadinerosarosso.blospot
e a versão em português em http://www.odiario.info/o-mito-de-uma-europa-em/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
 

EURÁSIA, O PESADELO QUE ATORMENTA WASHINGTON



Como a China aproveita-se da obsessão militarista dos EUA para propor, em alternativa, uma integração baseada em ferrovias de alta velocidade, gasodutos, portos e redes de fibra ótica

Pepe Escobar – Outras Palavras - Tradução Vila Vudu

Há quase seis anos, o presidente Putin propôs à Alemanha “a criação de uma comunidade econômica harmoniosa que se estenda de Lisboa a Vladivostok.”

A ideia representava um imenso empório comercial que uniria Rússia e União Europeia ou, nas palavras de Putin, “um mercado continental unificado com capacidade estimada em trilhões de dólares.”

Em resumo: Integração da Eurásia.

Washington entrou em pânico. Registros mostram como a visão de Putin – embora extremamente sedutora para os industriais alemães – foi rapidamente desmontada pelo processo de demolição controlada que os EUA puseram em ação na Ucrânia.

Três anos atrás, no Cazaquistão, depois na Indonésia, o presidente Xi Jinping expandiu a visão de Putin, propondo o projeto Um Cinturão, Uma Estrada [ing. One Belt, One Road (OBOR)], também chamadoNovas Rotas da Seda, ampliando a integração geoeconômica do Pacífico Asiático mediante uma vasta rede de rodovias, ferrovias para trens de alta velocidade, oleodutos e gasodutos, portos e cabos de fibra ótica.

Em resumo: uma versão da integração da Eurásia ainda mais ambiciosa, envolvendo dois terços da população mundial, a economia e o comércio. A diferença é que agora a coisa vem com poderosos músculos financeiros a lhe dar suporte, mediante um Fundo Rota da Seda, o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BSII), o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NBD), uma muito ampla ofensiva comercial por toda a Eurásia e a entrada oficial do yuan na cesta de moedas que usufruem dos Direitos Especiais de Saque do FMI (que é como o batismo do yuan, que passa a ser moeda que interessa manter nos cofres, como moeda de reserva, a todos e quaisquer bancos centrais de países em crescimento.

Na recente reunião do G20 em Huangzhou, o presidente Xi claramente demonstrou como o projeto OBOR é absolutamente central à visão chinesa de como deve avançar a globalização. Pequim está apostando que a ampla maioria de nações em toda a Eurásia preferirão investir em, e lucrar com, um projeto “ganha-ganha” de desenvolvimento econômico, em vez de se deixar enredar num jogo estratégico tipo perde-perde entre EUA e China.

E isso é anátema absoluto para o Império do Caos. Como aceitar que a China esteja vencendo o Novo Grande Jogo na Eurásia / século 21, construindo Novas Rotas da Seda?

E não esqueçam a Rota da Seda na Síria

Poucos no ocidente souberam que, como RT noticiou, antes do G20 reuniu-se um Fórum Econômico Oriental em Vladivostok. Essencialmente, foi mais uma celebração de facto da integração da Eurásia, com Rússia, China, Japão e Coreia do Sul.

E que essa Eurásia integrada em pouco tempo se fundirá com a União Econômica Eurasiana liderada pela Rússia – a qual, só ela, já é um tipo de Nova Rota da Seda russa.

Todas essas estradas levam à conectividade total. Considerem-se, por exemplo, os trens de carga que agora já ligam regularmenteGuangzhou, o entreposto chave no sudeste da China, ao centro logístico no parque industrial Vorsino, perto de Kaluga [quase na fronteira entre a Rússia e a União Europeia]. A viagem agora é feita em apenas duas semanas – economizando nada menos que um mês de viagem, em relação ao trajetopor mar; e corta 80% do custo, em relação ao transporte aéreo.

É mais uma conexão estilo Nova Rota da Seda entre China e Europa via Rússia. Outra conexões, muitíssimo mais ambiciosa, será a expansão da ferrovia Transiberiana, com trens de alta velocidade: a Rota da Seda Siberiana.

Há também a integração mais próxima, de China e Cazaquistão – país também membro da União Econômica Eurasiana. A ferrovia duty-freeTranseurasiana já está operando, de Chongqing em Sichuan cruzando Cazaquistão, Rússia, Belarus e Polônia, até Duisburg na Alemanha. Pequim e Astana estão desenvolvendo uma zona livre comum de comércio em Horgos. E, paralelamente, uma Zona de Cooperação Econômica Transfronteira China-Mongólia, começou a ser construída mês passado.

O Cazaquistão está até flertando com a ambiciosa ideia de um Canal Eurasiano do Mar Cáspio ao Mar Negro, e dali adiante até o Mediterrâneo. Mais cedo ou mais tarde, empresas construtoras chinesas aparecerão com um estudo de viabilidade, pronto.

Uma agenda de Washington virtualmente invisível na Síria – embutida na obsessão do Pentágono com não admitir que nenhum cessar-fogo jamais funcione, ou para impedir que seus “rebeldes moderados” caiam, em Aleppo – é quebrar ali, também, um importante nó da Nova Rota da Seda. A China tem operado comercialmente conectada à Síria desde a Rota da Seda original, que sempre passou por Palmyra e Damasco. Antes da “Primavera Árabe” síria, comerciantes sírios erapresença vital em Yiwu, sul de Xangai, o maior centro atacadista para bens de consumo de pequeno porte de todo o mundo. Os sírios compravam ali todos os tipos de produtos, no atacado, para revender no Oriente Médio.

O “Lago Norte-americano”

A Washington neoconservadora/neoliberal está totalmente catatônica, incapaz de formular qualquer resposta – ou, pelo menos, alguma contraproposta, à integração eurasiana. Uns poucos ali, com QI um pouco mais alto, podem compreender que o que se chama “ameaça” da China aos EUA tem tudo a ver com força econômica. Considerem a profunda hostilidade de Washington contra o BAII (Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento). Mas nem todo o lobbying norte-americano mais furioso conseguiu impedir que aliados seus, como Alemanha, Grã-Bretanha, Austrália e Coreia do Sul, se integrassem ao novo banco, como parceiros.

E há o empenho insano para conseguir aprovar a “Parceria” Trans-Pacífico, TPP – China excluída – e braço comercial da OTAN, de apoio ao pivô para a Ásia, que deveria ter sido a cereja do bolo, hoje já quase completamente abatumado, da política econômica de Obama. Seja como for, no pé em que está hoje, a TPP está praticamente morta.

O que a conjuntura geopolítica parece estar mostrando é a Marinha dos EUA disposta a fazer praticamente qualquer coisa, no esforço para impedir que a China assuma o domínio estratégico no Pacífico, ao mesmo tempo em que a TPP operaria como arma para impedir que a China dominasse economicamente aquela região.

Com o pivô para a Ásia configurado como ferramenta para “conter a agressão chinesa”, os excepcionalistas demonstraram claramente como são incapazes de admitir que todo o jogo está relacionado à geopolítica da cadeia de suprimento pós-ideológico. Os EUA não precisam conter a China; precisam, isso sim, desesperadamente, da conexão industrial, financeira e comercial com os nós cruciais, em toda a Ásia, para (re)construir a economia norte-americana.

Longe vão os dias, de março-1949, quando MacArthur podia pavonear-se de que “o Pacífico é agora um lago anglo-saxão”. Mesmo depois do fim da Guerra Fria, o Pacífico era um lago norte-americanode facto; os EUA violavam à vontade o espaço aéreo e naval da China.

Hoje, meros 67 anos depois, temos aí toda a Academia de Guerra do Exército dos EUA e toda a Think-Tankelândia passando noites em claro debruçados sobre os sofisticados mísseis chineses capazes de vedar o acesso à Marinha dos EUA para o Mar do Sul da China. Lago norte-americano? Acabou-se. No more.

O xis da questão é que a China apostou fortemente na construção de infraestrutura – que se traduz em conectividade de primeira classe para todo o planeta – como os reais commons globais do século 21, muitíssimo mais importantes que security. Afinal, toda uma grande parte da infraestrutura global ainda está para ser construída. Enquanto a China turbina o próprio papel de maior exportador global de infraestrutura – de ferrovias de alta velocidade a telecomunicações de baixo custo – a “nação indispensável” está ainda às voltas com a tal pivoteação, atrapalhada, perplexa, doentiamente obcecada com “contenção” por via militar.

Dividir para governar aqueles rivais “hostis”

Bem… As coisas não mudaram muito desde quando o Dr. Zbig “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski sonhava no final dos anos 1990s com uma fragmentação chinesa de dentro para fora, diretamente até a Estratégia de Segurança Nacional de 2015 de Obama, que nada é além de fútil nostalgia retórica sobre conter Rússia, China e Irã.

Daí a cesta de mitos agregados como “liberdade de navegação” – eufemismo que Washington adota para “controle perene de rotas marítimas que são rotas de suprimento para a China – e uma apoteose de “agressão chinesa” cada vez mais fundida com “agressão russa”; afinal de contas, a parceria estratégica encabeçada por Pequim-Moscou para integração da Eurásia tem de ser rompida a qualquer custo.

Por quê? Porque a hegemonia global dos EUA tem de ser sempre percebida como força irremovível, uma força da natureza que ninguém muda, feito a morte e os impostos (exceto a Apple na Irlanda).

Vinte e quatro anos depois do Guia de Planejamento da Defesa do Pentágono (ing.Pentagon’s Defense Planning Guide), ainda prevalece o mesmo modo de pensar: “Nosso primeiro objetivo é impedir a reemergência de novo rival (…) impedir qualquer potência hostil de dominar região cujos recursos, sob controle consolidado, sejam suficientes para gerar poder global. Essas regiões incluem Europa Ocidental, Ásia Oriental, o território da União Soviética e o sudoeste da Ásia”.

Epa! Agora, até o Dr. Zbig “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski também está apavorado. Como conter essas amaldiçoadas rotas da seda, com as “ameaças existenciais” (para o Pentágono) China e Rússia, bem ali, no coração da ação? Dividir para governar. E o que mais teriam?!

Para um já confuso Brzezinski, os EUA devem “conceber uma política na qual pelo menos um dos dois estados potencialmente ameaçadores torne-se parceiro na busca por estabilidade primeiro regional, depois mais amplamente global, e assim conter pelo menos o rival menos previsível mas potencialmente o que tem maior probabilidade de se superdistender. Atualmente, o que mais provavelmente se superdistenderá parece ser a Rússia, mas no longo prazo, pode ser a China.”

Tenham bons pesadelos.

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