O
conceito é sedutor e tem sido empolado pela comunicação social. «A Uber é uma
plataforma de tecnologia que liga pessoas. Pessoas que se querem deslocar na
cidade, e pessoas disponíveis para as levar onde querem ir. Para viajar basta
abrir a sua aplicação, confirmar o local onde quer iniciar viagem e confirmar a
chamada do veículo. Em poucos minutos, um motorista estará consigo para o levar
onde quiser ir. Ao chamar o veículo, tem acesso ao nome e fotografia do
motorista, bem como à marca e matrícula do veículo, isto enquanto observa o
motorista chegar a si, em tempo real. Pode ainda introduzir o seu destino na
aplicação, assegurando que o seu motorista tem acesso ao caminho mais rápido e
conveniente, e partilhar o percurso em tempo real com amigos e familiares,
garantindo que chega em segurança ao seu destino final. Ao terminar a viagem,
basta sair do veículo – o pagamento é feito de forma automática e electrónica,
através do cartão de pagamento registado na aplicação». São estas as palavras
que encontramos no site da Uber.
Palavras
que escondem o que já se tornou visível em praça pública pela mobilização dos
taxistas: a ilegalidade. Mas não é a única questão. Ao falar da Uber, há que
descortinar os profundos meandros de uma
multinacional norte-americana que hoje consegue estar implementada em
350 cidades espalhadas por 67 países. Foi criada em São Francisco, em
2009, lançando o seu serviço nesta cidade em 2010. Opera em Portugal desde o
dia 4 de Julho de 2014.
O
funcionamento da «moderna» Uber
A
Uber é parte de uma onda recente de empresas que compõem aquilo a que chamam
«economia de partilha». Através de uma aplicação para smartphones agrega
condutores e viaturas a clientes que pretendem o serviço. Sim, agregam, porque
não passa directamente pela Uber a contratação de motoristas ou a aquisição de
carros. Aqui entram os chamados «parceiros». A Uber está ligada a empresas que
permitem a concretização do serviço, ficando apenas com a responsabilidade da
«ligação entre as partes» e o cliente, e, sempre, com 25% do valor facturado em
cada serviço. Em Portugal, as empresas a quem recorre a Uber são sobretudo
agências de aluguer de carros (rent-a-car) e empresas ligadas ao turismo. As
primeiras a surgir em Portugal, em 2014, pertencem a dois grupos económicos – a
Salvador Caetano e a Sonae.
Casos
relatados indicam que existem muitas empresas rent-a-car que, quando
não têm os carros alugados a estrangeiros ou ao turismo, colocam os empregados
dostand a serem motoristas da Uber, como forma de os meterem «a
facturar». Estas situações ocorrem igualmente com funcionários de agências de
viagens, sendo que não lhes pagam mais pelo serviço, alegando «que o fazem
dentro do horário de trabalho».
Avaliada
em Junho de 2014 em 18,2 mil milhões de dólares e com valorizações anuais de 40
mil milhões de dólares, esta multinacional norte-americana tem como
investidores, entre outros, a Goldman Sachs e a Google. E «não se importa» de
poder dar prejuízo para se implementar no mercado. Portugal é um dos exemplos.
Segundo dados fornecidos no programa da RTP «Sexta às 9», em Portugal a Uber
deu prejuízo no primeiro ano, procurando implementação no mercado,
para depois, em 2015, ter um aumento exponencial do volume de negócios, neste
caso para quase 724 mil euros.
Não
havendo nenhuma regulamentação sobre as tarifas no caso da Uber, os preços
podem variar sempre que quiser. São vários os exemplos de situações em que os
preços disparam. Horas de ponta, momentos onde a procura é muita, momentos de
greve ou de passagem do ano. Deixamos o exemplo relatado do Brasil. O site Techtudo explica-nos
como funciona o «preço dinâmico». Trata-se da aplicação da famosa lei de oferta
e procura pela Uber. Ou seja, quando há mais utilizadores a
solicitar viagens do que motoristas disponíveis, o preço da corrida sobe.
Quando o movimento cai e o número de passageiros é igual ou menor do que o de
pilotos, a tarifa volta a cair até atingir o preço normal. Nos dias de
semana, o pico tende a ser em horário comercial, especialmente em centros
financeiros, que reúnem o maior número de solicitações. Nos fins-de-semana, a
tarifa pode voltar a subir em regiões de bares e casas nocturnas no período de
volta para casa. O mesmo pode acontecer durante um espectáculo ou evento
desportivo, onde a procura de carros tende a ser maior. Nos testes do TechTudo,
pode observar-se que a aplicação do «preço dinâmico» ocorre também por
localização. Na cidade de Niterói, havia poucos carros e o preço tornou-se mais
alto. No centro do Rio de Janeiro, a variação da tarifa chegou a ficar entre o
dobro e o quíntuplo do valor original.
São
também conhecidas as sucessivas insolvências de empresas intermediárias da
Uber, que transferem para o Estado (dívidas fiscais, benefícios recebidos) e
para os trabalhadores (salários em atraso, segurança social não paga) uma parte
dos custos do dumping desta plataforma. Estas empresas acabam por
poder reabrir com outro nome e exactamente para o mesmo efeito – ser
intermediária da Uber.
Sobre
as práticas fiscais da Uber e como exemplo da relação entre o
poder político e económico, citamos um excerto da peça do Expresso intitulada
«O mau exemplo que vem do coração da Europa»: «Formalmente controlada por uma
companhia offshore do Estado de Delaware, nos EUA, a Uber criou duas
subsidiárias na Holanda, o país de Neelie Kroes (ex-comissária europeia da
Concorrência até 2010, e depois com a pasta da Agenda Digital até 2014) e
concedeu-lhes o direito de usar a propriedade intelectual do negócio fora dos
Estados Unidos. Isso significou uma tributação de impostos a uma taxa inferior
a 1% sobre os lucros gerados pela actividade da Uber em mais de 60 países
(excluindo os EUA) através de um esquema a que a revista Fortune chamou double
dutch (duplo holandês). Este esquema foi montado entre 2013 e 2015, e em
2016 Kroes tornou-se consultora da Uber».
O necessário
para a prática do serviço – táxi vs. Uber
Em
Portugal, o transporte de veículos de aluguer de passageiros, com condutor,
seguido de itinerário à escolha do utente e mediante condições de retribuição,
é legalmente possível apenas através do transporte de táxi, cujo
regime legal se encontra estabelecido no Decreto-Lei n.º 251/98, de 11 de
Agosto.
Esta lei
exige licenciamento para exercício da actividade, através de alvará cuja
emissão é da competência do Instituto de Mobilidade e dos Transporte (IMT), e
exige ainda o licenciamento de veículos a atribuir dentro do contingente de
cada concelho (limite do número de táxis), através de licença cuja emissão é da
competência da câmara municipal respectiva. A lei exige ainda que tal
actividade apenas possa ser realizada por viaturas ligeiras, com lotação não
superior a nove lugares, incluindo o condutor, equipadas com taxímetro, e
conduzidas por motoristas habilitados com certificado de capacidade
profissional.
Podemos
afirmar que o Decreto-Lei n.º 251/98 estabelece as condições de acesso ao
mercado e à organização do mercado de transporte público de passageiros em
veículos ligeiros de passageiros, com condutor, mediante retribuição.
A
Portaria 277-A/99 de 15 de Abril estabelece as características das viaturas
destinadas a táxi e a Lei 6/2013 de 22 de Janeiro estabelece as regras e
condições de acesso e exercício da profissão de motorista de táxi. Também o
preço cobrado pelo transporte em táxi é fixado por via administrativa ao abrigo
do Decreto-Lei n.º 297/92 de 31 de Dezembro.
No
caso da Uber, fica assim explícito que não reúne as condições que a lei
portuguesa exige para a realização de tal transporte, tendo em conta que nenhum
dos intervenientes é titular do competente alvará, nem as viaturas que o
executam estão licenciadas pelas respectivas câmaras municipais, nem os
condutores são habilitados com o competente certificado e capacidade
profissional.
Em
Abril de 2015, o Presidente do IMT afirmou numa audição da Comissão
Parlamentar de Economia e Obras Públicas que «os serviços prestados através da
Uber configuram uma violação da legislação específica dos transportes»,
acrescentando que «a Uber é um transporte de passageiros e, aí, não pode fugir
à lei do nosso país», a qual, conforme sublinhou, determina que «o transporte
público em veículos ligeiros de passageiros só é permitido através do
transporte de táxi».
Em
Abril de 2015, o Tribunal de Lisboa aceitou a providência cautelar interposta
pela ANTRAL – Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis
Ligeiros e determinou a proibição, de imediato, da actividade da Uber
em Portugal, com página web e aplicações encerradas. O que não
veio a acontecer.
Quanto
ao argumento da tecnologia, os taxistas fazem questão de revelar aquilo que
parece que muita gente «não sabia»: tais plataformas, nas suas bases
conceptuais e algorítmicas, são já usadas há muito na logística e nos próprios
transportes de passageiros, táxis incluídos.
A
situação dos motoristas da Uber
Em
Portugal, parte dos motoristas são assalariados de empresas, nomeadamente de
empresas parceiras da Uber. Segundo relatos de motoristas, começaram a ser
pagos à hora, a recibos verdes mediante as horas de trabalho. Com o evoluir do
mercado, passou a ser um sistema em muitos casos comissional e variável. A Uber
retém sempre 25% do valor do que é facturado. Se houver um intermediário, este
também tem que facturar. Quem paga o gasóleo é o motorista. Os impostos são
pagos pelos parceiros. Ou seja, a Uber tem todo o ganho.
Alguns
testemunhos foram dados à RTP. Um motorista da Uber relatou que está a recibos
verdes e a fazer os seus descontos. Pouco compensa. Retira à volta de 500 euros
e deixou de ter vida pessoal com o número de horas que trabalha. Vive agora com
metade do ordenado que conseguia há um ano. Luís Leite deixou de fazer serviços
para a Uber por causa do salário. Afirmou que, quando começou a trabalhar, a
Uber tinha um valor de hora de trabalho, diurna e nocturna, e que, passados
três ou quatro meses, o valor da hora foi reduzido para cerca de metade; 30
dias depois passou a receber apenas 33% daquilo que facturava. Nos últimos
meses que trabalhou com a empresa parceira da Uber, chegou a ter um vencimento
de 240 euros e trabalhava cerca de 40 horas semanais.
Uma
reportagem do jornalista Avi Asher-Schapiro para o site Jacobin retrata
as condições dos motoristas da Uber em Los Angeles e procura confirmar a tese
de que as empresas da «economia de partilha», como a Uber, transferem o risco
do negócio das empresas para os trabalhadores. Estamos neste caso a falar de
motoristas que não são empregados de uma empresa, mas sim tecnicamente
empresários, designados «motoristas-parceiros», que recebem uma percentagem
pelo valor do serviço. Longos turnos e mal conseguir levar um salário
mínimo para casa é um traço comum.
A
atracção estava lá no início: em 2013 os clientes pagavam 2,75 dólares por cada
milha (e mais 60 cêntimos por minuto se o carro estivesse parado). Os
motoristas recebiam 80% da tarifa. Assim, num regime de full time, os
motoristas conseguiam fazer entre 15 a 20 dólares por hora. Milhares de
motoristas quiseram inscrever-se, alugando ou comprando carros para trabalhar
para a Uber, nomeadamente pessoas em situações críticas devido à crise
económica. No entanto, ao longo do último ano, a empresa tem enfrentado a forte
concorrência da plataforma Lyft. Para aumentar a procura e expulsar a Lyft do
mercado de Los Angeles, a Uber cortou as tarifas da UberX (a modalidade
económica) para metade, passando a 1,10 dólares por milha, mais 21 cêntimos por
minuto parado.
Os
motoristas da Uber não tiveram palavra na decisão, mas têm que pagar o seguro,
o combustível e os arranjos dos carros. O custo total para os motoristas
estimado pelo fisco norte-americano é de 56 cêntimos por milha, trabalhando
assim com margens de remuneração muito baixas.
O
caso de Arman, relatado nesta reportagem, mostra-nos que, há um
ano, começou a fazer 20 dólares por hora. Este ano nem sequer consegue
fazer o salário mínimo. Trabalha até 17 horas por dia para levar para casa o
rendimento que conseguia a trabalhar 8 horas há um ano. Quando reclamou com a
Uber, a empresa demitiu-o.
Neste
caso, a Uber, em vez de pagar salários a trabalhadores, simplesmente encaixa
uma parte dos seus rendimentos. Os motoristas assumem todos os riscos do
negócio e todos os custos – o carro, o combustível, o seguro – e são os
executivos e os investidores que enriquecem.
Depois
de cada corrida, a Uber pede aos passageiros para avaliar o seu motorista numa
escala de uma a cinco estrelas. Os condutores com uma média inferior a 4,7
podem ser desativados. Os critérios não são mais que opiniões.
O
previsto para a regulamentação da Uber e as exigências dos taxistas
O
projecto de Decreto de Lei a ser cozinhado pelo Governo português para
regulamentar plataformas como a Uber, cria o conceito de TVDE (Transporte em
Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica), onde os
proprietários de tais veículos, se ligados a uma plataforma de intermediação
entre oferta e procura, podem aceder à actividade de transporte oneroso de
passageiros. Aqui é dado um poder absoluto às plataformas electrónicas para
decidir quem pode e não pode ter acesso ao mercado. As plataformas poderiam
legalizar-se mediante simples comunicação prévia. Teríamos aqui uma situação em
que o sector dos táxis continuaria contingentado e com tarifas fixadas pelo
Estado, e o outro, onde se inclui a Uber, completamente liberalizado. É por
isso que hoje, uma das principais exigências dos taxistas é que os veículos a
utilizar pelas plataformas tenham origem nos contingentes existentes que são
fixados pelas câmaras municipais.
É
legitimo questionar: para que serve a Autoridade da Concorrência e a Lei da
Concorrência, que dizem existir para proteger a lealdade e a igualdade
concorrenciais, se se permite que na mesma actividade económica – transporte
individual de passageiros – haja agentes sujeitos a pesada regulamentação e
outros «com quase nada» regulamentado?
Os
taxistas evocam que com estas condições, a Uber pode vir a funcionar em regime
de monopólio, aniquilando o sector dos táxis, e prevendo uma escalada de preços
nesse cenário. Quanto às condições dos motoristas, ficou claro: a sujeição à
precariedade é regra no sistema da Uber.
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