domingo, 23 de outubro de 2016

DESBRAVANDO O NEGÓCIO DA UBER




O conceito é sedutor e tem sido empolado pela comunicação social. «A Uber é uma plataforma de tecnologia que liga pessoas. Pessoas que se querem deslocar na cidade, e pessoas disponíveis para as levar onde querem ir. Para viajar basta abrir a sua aplicação, confirmar o local onde quer iniciar viagem e confirmar a chamada do veículo. Em poucos minutos, um motorista estará consigo para o levar onde quiser ir. Ao chamar o veículo, tem acesso ao nome e fotografia do motorista, bem como à marca e matrícula do veículo, isto enquanto observa o motorista chegar a si, em tempo real. Pode ainda introduzir o seu destino na aplicação, assegurando que o seu motorista tem acesso ao caminho mais rápido e conveniente, e partilhar o percurso em tempo real com amigos e familiares, garantindo que chega em segurança ao seu destino final. Ao terminar a viagem, basta sair do veículo – o pagamento é feito de forma automática e electrónica, através do cartão de pagamento registado na aplicação». São estas as palavras que encontramos no site da Uber.

Palavras que escondem o que já se tornou visível em praça pública pela mobilização dos taxistas: a ilegalidade. Mas não é a única questão. Ao falar da Uber, há que descortinar os profundos meandros de uma multinacional norte-americana que hoje consegue estar implementada em 350 cidades espalhadas por 67 países. Foi criada em São Francisco, em 2009, lançando o seu serviço nesta cidade em 2010. Opera em Portugal desde o dia 4 de Julho de 2014.

O funcionamento da «moderna» Uber

A Uber é parte de uma onda recente de empresas que compõem aquilo a que chamam «economia de partilha». Através de uma aplicação para smartphones agrega condutores e viaturas a clientes que pretendem o serviço. Sim, agregam, porque não passa directamente pela Uber a contratação de motoristas ou a aquisição de carros. Aqui entram os chamados «parceiros». A Uber está ligada a empresas que permitem a concretização do serviço, ficando apenas com a responsabilidade da «ligação entre as partes» e o cliente, e, sempre, com 25% do valor facturado em cada serviço. Em Portugal, as empresas a quem recorre a Uber são sobretudo agências de aluguer de carros (rent-a-car) e empresas ligadas ao turismo. As primeiras a surgir em Portugal, em 2014, pertencem a dois grupos económicos – a Salvador Caetano e a Sonae.

Casos relatados indicam que existem muitas empresas rent-a-car que, quando não têm os carros alugados a estrangeiros ou ao turismo, colocam os empregados dostand a serem motoristas da Uber, como forma de os meterem «a facturar». Estas situações ocorrem igualmente com funcionários de agências de viagens, sendo que não lhes pagam mais pelo serviço, alegando «que o fazem dentro do horário de trabalho».

Avaliada em Junho de 2014 em 18,2 mil milhões de dólares e com valorizações anuais de 40 mil milhões de dólares, esta multinacional norte-americana tem como investidores, entre outros, a Goldman Sachs e a Google. E «não se importa» de poder dar prejuízo para se implementar no mercado. Portugal é um dos exemplos. Segundo dados fornecidos no programa da RTP «Sexta às 9», em Portugal a Uber deu prejuízo no primeiro ano, procurando implementação no mercado, para depois, em 2015, ter um aumento exponencial do volume de negócios, neste caso para quase 724 mil euros.

Não havendo nenhuma regulamentação sobre as tarifas no caso da Uber, os preços podem variar sempre que quiser. São vários os exemplos de situações em que os preços disparam. Horas de ponta, momentos onde a procura é muita, momentos de greve ou de passagem do ano. Deixamos o exemplo relatado do Brasil. O site Techtudo explica-nos como funciona o «preço dinâmico». Trata-se da aplicação da famosa lei de oferta e procura pela Uber. Ou seja, quando há mais utilizadores a solicitar viagens do que motoristas disponíveis, o preço da corrida sobe. Quando o movimento cai e o número de passageiros é igual ou menor do que o de pilotos, a tarifa volta a cair até atingir o preço normal. Nos dias de semana, o pico tende a ser em horário comercial, especialmente em centros financeiros, que reúnem o maior número de solicitações. Nos fins-de-semana, a tarifa pode voltar a subir em regiões de bares e casas nocturnas no período de volta para casa. O mesmo pode acontecer durante um espectáculo ou evento desportivo, onde a procura de carros tende a ser maior. Nos testes do TechTudo, pode observar-se que a aplicação do «preço dinâmico» ocorre também por localização. Na cidade de Niterói, havia poucos carros e o preço tornou-se mais alto. No centro do Rio de Janeiro, a variação da tarifa chegou a ficar entre o dobro e o quíntuplo do valor original.

São também conhecidas as sucessivas insolvências de empresas intermediárias da Uber, que transferem para o Estado (dívidas fiscais, benefícios recebidos) e para os trabalhadores (salários em atraso, segurança social não paga) uma parte dos custos do dumping desta plataforma. Estas empresas acabam por poder reabrir com outro nome e exactamente para o mesmo efeito – ser intermediária da Uber.

Sobre as práticas fiscais da Uber e como exemplo da relação entre o poder político e económico, citamos um excerto da peça do Expresso intitulada «O mau exemplo que vem do coração da Europa»: «Formalmente controlada por uma companhia offshore do Estado de Delaware, nos EUA, a Uber criou duas subsidiárias na Holanda, o país de Neelie Kroes (ex-comissária europeia da Concorrência até 2010, e depois com a pasta da Agenda Digital até 2014) e concedeu-lhes o direito de usar a propriedade intelectual do negócio fora dos Estados Unidos. Isso significou uma tributação de impostos a uma taxa inferior a 1% sobre os lucros gerados pela actividade da Uber em mais de 60 países (excluindo os EUA) através de um esquema a que a revista Fortune chamou double dutch (duplo holandês). Este esquema foi montado entre 2013 e 2015, e em 2016 Kroes tornou-se consultora da Uber».

O necessário para a prática do serviço – táxi vs. Uber

Em Portugal, o transporte de veículos de aluguer de passageiros, com condutor, seguido de itinerário à escolha do utente e mediante condições de retribuição, é legalmente possível apenas através do transporte de táxi, cujo regime legal se encontra estabelecido no Decreto-Lei n.º 251/98, de 11 de Agosto.

Esta lei exige licenciamento para exercício da actividade, através de alvará cuja emissão é da competência do Instituto de Mobilidade e dos Transporte (IMT), e exige ainda o licenciamento de veículos a atribuir dentro do contingente de cada concelho (limite do número de táxis), através de licença cuja emissão é da competência da câmara municipal respectiva. A lei exige ainda que tal actividade apenas possa ser realizada por viaturas ligeiras, com lotação não superior a nove lugares, incluindo o condutor, equipadas com taxímetro, e conduzidas por motoristas habilitados com certificado de capacidade profissional.

Podemos afirmar que o Decreto-Lei n.º 251/98 estabelece as condições de acesso ao mercado e à organização do mercado de transporte público de passageiros em veículos ligeiros de passageiros, com condutor, mediante retribuição.

A Portaria 277-A/99 de 15 de Abril estabelece as características das viaturas destinadas a táxi e a Lei 6/2013 de 22 de Janeiro estabelece as regras e condições de acesso e exercício da profissão de motorista de táxi. Também o preço cobrado pelo transporte em táxi é fixado por via administrativa ao abrigo do Decreto-Lei n.º 297/92 de 31 de Dezembro.

No caso da Uber, fica assim explícito que não reúne as condições que a lei portuguesa exige para a realização de tal transporte, tendo em conta que nenhum dos intervenientes é titular do competente alvará, nem as viaturas que o executam estão licenciadas pelas respectivas câmaras municipais, nem os condutores são habilitados com o competente certificado e capacidade profissional.

Em Abril de 2015, o Presidente do IMT afirmou numa audição da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas que «os serviços prestados através da Uber configuram uma violação da legislação específica dos transportes», acrescentando que «a Uber é um transporte de passageiros e, aí, não pode fugir à lei do nosso país», a qual, conforme sublinhou, determina que «o transporte público em veículos ligeiros de passageiros só é permitido através do transporte de táxi».

Em Abril de 2015, o Tribunal de Lisboa aceitou a providência cautelar interposta pela ANTRAL – Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros e determinou a proibição, de imediato, da actividade da Uber em Portugal, com página web e aplicações encerradas. O que não veio a acontecer.

Quanto ao argumento da tecnologia, os taxistas fazem questão de revelar aquilo que parece que muita gente «não sabia»: tais plataformas, nas suas bases conceptuais e algorítmicas, são já usadas há muito na logística e nos próprios transportes de passageiros, táxis incluídos.

A situação dos motoristas da Uber

Em Portugal, parte dos motoristas são assalariados de empresas, nomeadamente de empresas parceiras da Uber. Segundo relatos de motoristas, começaram a ser pagos à hora, a recibos verdes mediante as horas de trabalho. Com o evoluir do mercado, passou a ser um sistema em muitos casos comissional e variável. A Uber retém sempre 25% do valor do que é facturado. Se houver um intermediário, este também tem que facturar. Quem paga o gasóleo é o motorista. Os impostos são pagos pelos parceiros. Ou seja, a Uber tem todo o ganho.

Alguns testemunhos foram dados à RTP. Um motorista da Uber relatou que está a recibos verdes e a fazer os seus descontos. Pouco compensa. Retira à volta de 500 euros e deixou de ter vida pessoal com o número de horas que trabalha. Vive agora com metade do ordenado que conseguia há um ano. Luís Leite deixou de fazer serviços para a Uber por causa do salário. Afirmou que, quando começou a trabalhar, a Uber tinha um valor de hora de trabalho, diurna e nocturna, e que, passados três ou quatro meses, o valor da hora foi reduzido para cerca de metade; 30 dias depois passou a receber apenas 33% daquilo que facturava. Nos últimos meses que trabalhou com a empresa parceira da Uber, chegou a ter um vencimento de 240 euros e trabalhava cerca de 40 horas semanais.

Uma reportagem do jornalista Avi Asher-Schapiro para o site Jacobin retrata as condições dos motoristas da Uber em Los Angeles e procura confirmar a tese de que as empresas da «economia de partilha», como a Uber, transferem o risco do negócio das empresas para os trabalhadores. Estamos neste caso a falar de motoristas que não são empregados de uma empresa, mas sim tecnicamente empresários, designados «motoristas-parceiros», que recebem uma percentagem pelo valor do serviço. Longos turnos e mal conseguir levar um salário mínimo para casa é um traço comum.

A atracção estava lá no início: em 2013 os clientes pagavam 2,75 dólares por cada milha (e mais 60 cêntimos por minuto se o carro estivesse parado). Os motoristas recebiam 80% da tarifa. Assim, num regime de full time, os motoristas conseguiam fazer entre 15 a 20 dólares por hora. Milhares de motoristas quiseram inscrever-se, alugando ou comprando carros para trabalhar para a Uber, nomeadamente pessoas em situações críticas devido à crise económica. No entanto, ao longo do último ano, a empresa tem enfrentado a forte concorrência da plataforma Lyft. Para aumentar a procura e expulsar a Lyft do mercado de Los Angeles, a Uber cortou as tarifas da UberX (a modalidade económica) para metade, passando a 1,10 dólares por milha, mais 21 cêntimos por minuto parado.

Os motoristas da Uber não tiveram palavra na decisão, mas têm que pagar o seguro, o combustível e os arranjos dos carros. O custo total para os motoristas estimado pelo fisco norte-americano é de 56 cêntimos por milha, trabalhando assim com margens de remuneração muito baixas.

O caso de Arman, relatado nesta reportagem, mostra-nos que, há um ano, começou a fazer 20 dólares por hora. Este ano nem sequer consegue fazer o salário mínimo. Trabalha até 17 horas por dia para levar para casa o rendimento que conseguia a trabalhar 8 horas há um ano. Quando reclamou com a Uber, a empresa demitiu-o.

Neste caso, a Uber, em vez de pagar salários a trabalhadores, simplesmente encaixa uma parte dos seus rendimentos. Os motoristas assumem todos os riscos do negócio e todos os custos – o carro, o combustível, o seguro – e são os executivos e os investidores que enriquecem.

Depois de cada corrida, a Uber pede aos passageiros para avaliar o seu motorista numa escala de uma a cinco estrelas. Os condutores com uma média inferior a 4,7 podem ser desativados. Os critérios não são mais que opiniões.

O previsto para a regulamentação da Uber e as exigências dos taxistas

O projecto de Decreto de Lei a ser cozinhado pelo Governo português para regulamentar plataformas como a Uber, cria o conceito de TVDE (Transporte em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica), onde os proprietários de tais veículos, se ligados a uma plataforma de intermediação entre oferta e procura, podem aceder à actividade de transporte oneroso de passageiros. Aqui é dado um poder absoluto às plataformas electrónicas para decidir quem pode e não pode ter acesso ao mercado. As plataformas poderiam legalizar-se mediante simples comunicação prévia. Teríamos aqui uma situação em que o sector dos táxis continuaria contingentado e com tarifas fixadas pelo Estado, e o outro, onde se inclui a Uber, completamente liberalizado. É por isso que hoje, uma das principais exigências dos taxistas é que os veículos a utilizar pelas plataformas tenham origem nos contingentes existentes que são fixados pelas câmaras municipais.

É legitimo questionar: para que serve a Autoridade da Concorrência e a Lei da Concorrência, que dizem existir para proteger a lealdade e a igualdade concorrenciais, se se permite que na mesma actividade económica – transporte individual de passageiros – haja agentes sujeitos a pesada regulamentação e outros «com quase nada» regulamentado?


Os taxistas evocam que com estas condições, a Uber pode vir a funcionar em regime de monopólio, aniquilando o sector dos táxis, e prevendo uma escalada de preços nesse cenário. Quanto às condições dos motoristas, ficou claro: a sujeição à precariedade é regra no sistema da Uber.

AbrilAbril

REFORMADOS E PENSIONISTAS EXIGEM AUMENTO DE PENSÕES



Reformados e pensionistas concentraram-se no Largo de Camões, em Lisboa, para exigir melhores pensões e defender que o aumento de 10 euros previstos no Orçamento do Estado para 2017 contemple as reformas superiores a 628 euros.

Defendemos o aumento de todas as pensões e o aumento de 10 euros deve ser alargado ao maior número de reformados e pensionistas, porque esse aumento está previsto só para pensões até cerca de 600 euros», disse à imprensa o presidente da Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos (MURPI), Casimiro Menezes.

Organizado pelo MURPI, o protesto contou com a presença de reformados e pensionistas de Lisboa, Setúbal, Beja, Santarém e Leiria, que exigiram «um aumento de pensões e reformas» e «melhores pensões e saúde».

Como é visível no seu comunicado, para o MURPI é justo haver «um aumento intercalar de todas as reformas e pensões, repondo parcelas do poder de compra perdido nos últimos anos». 

Afirmam igualmente que não é aceitável «continuar a transferir milhões e milhões de euros para tapar buracos financeiros dos bancos, para pagar indevidamente às PPP (parcerias público-privadas), e continuar a não taxar as grandes fortunas». Para a Confederação seria possível concretizar um aumento mínimo de 25 euros nas pensões e dar prioridade à correção «das profundas injustiças» na distribuição do rendimento nacional que atingem os que têm como único meio de subsistência a reforma, pensão ou salário. Afirmam que seria ainda possível tomar medidas para aumentar as receitas devidas à Segurança Social pelo combate às «vultuosas perdas que resultam da fraude e evasão contributiva» e diversificar as suas fontes de financiamento. 

O MURPI assinala como positiva a adoção de medidas levadas a cabo na nova solução política, como o desagravamento da sobretaxa do IRS e a sua eliminação total em 2017, a reposição dos complementos de pensões aos reformados das empresas públicas, o reforço dos cuidados de saúde primários, bem como a melhoria das condições de acesso ao Complemento Solidário para Idosos. No entanto, manifestam o «profundo repúdio» pelo magro aumento em 2016, de 0,4% nas pensões até 628 euros, que se traduziu em valores entre 98,5 cêntimos e 2,5 euros por mês e pela manutenção do congelamento de todas as outras. Os reformados, pensionistas e idosos perderam cerca de 7% do seu poder de compra desde 2010. Por isso exigem um aumento intercalar das pensões e reformas.

Dando resposta a apelos dos seus associados, a estrutura vai promover ainda iniciativas públicas no Porto, dia 28 de Outubro pelas 15h00, na Praça dos Poveiros, e em Faro, dia 29 de Outubro, pelas 15h30, no Mercado Municipal de Faro.

Estas iniciativas públicas vêm na sequência da Campanha Nacional promovida pelo MURPI desde 31 de Maio. Segundo a Confederação, «milhares de reformados que têm vindo a aderir a esta campanha desejam ir mais longe e manifestar o seu apoio ao aumento extraordinário das pensões a ser contemplado no Orçamento do Estado para 2017». Nestas iniciativas culturais e políticas será valorizada a expressão cultural das Associações de Reformados, pela actuação dos seus Grupos de Cantares e de Música, ao mesmo tempo que contam com intervenções dos dirigentes da Confederação MURPI sobre a actualidade.

AbrilAbril – Foto: Um reformado junto ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social durante um protesto promovido pelo MURPI, Lisboa, 31 de Maio de 2016 - CréditosMiguel A. Lopes / Agência LUSA

TERRORISMO GLOBAL: CAUSAS, CONSEQUÊNCIAS E SOLUÇÕES



O finlandês Timo Kivimäki, professor de Relações Internacionais e diretor de Pesquisa da Universidade de Bath (Reino Unido), especialista em terrorismo global e um dos poucos acadêmicos sóbrios ao pensar o assunto, concedeu a seguinte entrevista falando sobre suas origens, consequências e as possíveis formas de combatê-lo de maneira eficaz, que proteja civis. Ele também apresenta sua visão sobre os limites entre terror e resistência, esta última legitimada pelas leis internacionais, e a cobertura da mídia de desinformação das massas sobre terrorismo.

"Não há nenhuma Guerra contra o Terror. Se houvesse, não usaria o terror como tática", enfatiza sem rodeios o analista, quem também recorda personagens "esquecidos" pela mídia e pelos arquitetos da suposta Guerra ao Terror, tais como Julian Assange e Edward Snowden, cujas denúncias trazem revelações que apontam ao sentido totalmente contrário das versões oficiais sobre origens do terrorismo, e das intenções da "Guerra ao Terror" perpetrada pelas grandes potências ocidentais.

O professor Kivimäki atuou como consultor de vários governos, bem como de várias organismos da ONU e da União Europeia, sobre conflitos e terrorismo, e já teve a oportunidade inclusive de entrevistar indivíduos suspeitos ou condenados por práticas terroristas. Ele é autor de The Long Peace of East Asia (Farnham: Ashgate, 2014), e de Can Peace Research Make Peace. Lessons in Academic Diplomacy(Farnham: Ashgate, 2012), este último indicado para concorrer ao prestigioso Best Book Prize (Prémio Melhor Livro) pela Sociedade de Pesquisa de Conflito, em 2014.

Recentes artigos de Timo Kivimäki sobre paz e conflitos foram publicados na China, em Journal of International Relations, Pacific Focus,The Pacific Review, International Relations of the Asia Pacific, Journal of Peace Research, Asian Security e Middle East Policy.

A seguir, o professor Kivimäki leva à reflexão - rara nos dias de hoje - sobre um dos temas mais importantes da atualidade, saindo, desta maneira, da histeria político-midiática predominante que apenas promove embaralhamento do entendimento coletivo e abre cada vez mais o caminho para uma dominação global apoiada no medo, na intolerância, na indústria da guerra e na diminuição das liberdades civis.
  
Edu Montesanti: Professor Timo Kivimäki, você tem sido frequente consultor dos governos finlandês, dinamarquês, holandês, malaio, indonésio, sueco, russo, bem como a várias organizações da ONU e da União Eiropeia sobre conflitos e terrorismo. Por favor, Professor Kivimäki, fale um pouco sobre essas consultas.

Timo Kivimäki: Na verdade, não só estes: tenho colaborado amplamente com 11 governos com problemas associados a conflitos. Mas os que você mencionou, tenho ajudado mais que outros. Ajudei a Finlândia, a Dinamarca e, marginalmente, a Suécia também, a fim de projetar estratégias no desenvolvimento de cooperação a fim de ajudar a serem mais sensíveis diante dos conflitos, ou seja, ajudar a prevenir em vez de alimentar conflitos.

Para primeiros ministros da Finlândia, Dinamarca e Rússia eu ofereci alguma ajuda para argumentação em política externa, oferecendo comentários sobre como diferentes argumentos relacionam-se aos atuais resultado da investigação. Também tentei ajudar estes três do governo em suas iniciativas de lançar processos de diálogo pacíficos.

Orientei a equipe de negociação do governo da Moldávia para suas negociações de paz com os separatistas da Transnístria e também orientei algumas partes em conflito da Indonésia e de Mianmar, em favor das negociações de paz Além disso, ajudei um dos ministros de Defesa da Tailândia a fim de entender algumas das complicações do conflito no sul do país.

Apesar de tudo, percebi que muitos governos estão muito ansiosos em promover a paz, apesar da falta de vontade pública em mostrar quaisquer sinais no sentido de assumir compromissos. Os governos tendem a tentar evitar sinais que poderiam ser interpretados como fraqueza, e por isso, às vezes, é importante aos acadêmicos tomar a iniciativa e ajudar os governos em algo que eles não podem fazer, sem mostrar sinais de fraqueza.

Edu Montesanti: No artigo First Do No Harm: Do Air Raids Protect Civilians? [Middle East Policy 22, no. 4 (2015): 55-64] o senhor revelou que as guerras de proteção, ou seja, as guerras que são justificadas referindo-se ao motivo cosmopolita de proteção aos civis "globais", matam mais civis que qualquer outro tipo de guerra. Por favor, detalhe isso.

Timo Kivimäki: Há um crescente senso de solidariedade cosmopolita e universalista no mundo hoje, e esta solidariedade dos cidadãos insta os líderes a "fazer algo" quando a mídia revela injustiça e violência contra civis, independente do local onde esses civis estejam. Isso, em geral, é muito bom e oferece oportunidades para construir uma ordem mundial mais justa, e menos violenta.

Se nos próximos 100 anos o sistema de segurança internacional sair da posição de comunidades baseadas no Estado e partir em direção a uma comunidade global, isso poderia ser muito bom. Historicamente, sempre que a segurança governamental é levada a comunidades maiores - de famílias para clãs, de clãs para sociedades sedentárias, de pequenas sociedades para cidades-Estado, de cidades-Estado para Estados-nação -, grande parte da violência desaparece. Assim, o crescimento da solidariedade é potencialmente uma coisa boa.

No entanto, hoje a solidariedade não é seguida por um esforço a fim de permitir uma agência de segurança comum: as nações que têm se preocupado em punir Saddam e os talibans, impondo sua interpretação de normas globais, não têm estado interessadas no fortalecimento da ONU, até agora a única organização verdadeiramente global que poderia representar o mundo na imposição do cumprimento das normas humanitárias globais.

Pelo contrário, esses poderes que estão impondo normas sobre outros países têm estado relutantes em se comprometer com o fortalecimento das normas globais em conjunto com todos os países e, em vez de trabalhar através da ONU, eles formaram coalizões militares ad hoc. Na imposição de justiça e equidade, estes países tornaram-se atores enquanto outros, especialmente os países em desenvolvimento e países muçulmanos, tornaram-se os objetos de disciplina das coalizões militares

Isto causou ressentimento e as operações militares para intervir na violência no Oriente Médio têm aumentado a violência que existe lá, de maneira que a proteção voltou-se contra aqueles que se tem o objetivo de proteger. Se olharmos para os países onde nossa proteção tem operado, podemos ver que mais da metade das mortes em conflitos do mundo é produzida ali.

Edu Montesanti: Como você vê as invasões dos Estados Unidos ao Afeganistão em 2001 e ao Iraque em 2003, do ponto de vista jurídico?

Timo Kivimäki: Acho que, do ponto de vista jurídico, eles têm sido tipos de operações um tanto diferenciadas, já que o Iraque [a invasão norte-americana ao Iraque] tem estado explicitamente fora do mandato da ONU. Ao mesmo tempo, as operações militares continuadas têm sido muito impopulares em ambos os locais, e resultado em uma grande quantidade de sofrimento. Do ponto de vista da proteção de civis, ambas as operação têm sido um desastre.

Washington e seus aliados têm endurecido o discurso e as políticas em relação ao terrorismo, ferindo os direitos humanos e diminuindo as liberdades civis. O regime de Barack Obama tem aumentado drasticamente os ataques aéreos. A "Guerra ao Terror" tem ajudado a manter os Estados Unidos e seus aliados seguros do terrorismo?

A guerra contra organizações terroristas tem sido uma catalizadora de terror, devido ao simples fato de que conflito e terror são sempre uma interação, não apenas ação de uma das partes. Enquanto a razão para o nosso violento contraterrorismo tem sido as ações terríveis dos terroristas, é claro que a razão para a violência terrorista tem sido a nossa violência. A lógica de uma escalada na guerra contra organizações terroristas tem sido sempre interativa, e apenas através de ações interativas de paz e de diálogo, esta espiral de escalada poderia ser encerrada.

Acho que o problema se deve ao fato de que nunca houve, efetivamente, uma guerra ao terror, mas tem havido apenas uma guerra contra terroristas. Isto é muito diferente, já que uma guerra contra o terror estaria focada nos civis como alvo tentando impedir isso, enquanto a guerra contra os terroristas tem como meta matar tantos terroristas quanto possível, mesmo que isso signifique uma série de danos colaterais, ou seja, a perda de vida civil.

Uma guerra contra o terror não seria capaz de usar meios que se aproximam de atos terroristas, como é a contra o terror, enquanto a guerra contra os terroristas tem usado frequentemente meios que possam ser eficazes contra os terroristas, mas aumentam o terror. Concentrando-se em princípios em vez de demonizar os inimigos, seria importante nesta situação aliviar a tensão, e isso também significaria que não devemos apontar os dedos aos Estados Unidos ou a seus aliados, mas, em vez disso, devemos culpar estratégias ruins contra a violência que vemos ao nosso redor.

Deveríamos tentar negociar formas de limitar estas estratégias violentas ao invés de demonizarmo-nos uns aos outros, dado que a conclusão lógica de uma visão que atribui a violência ao "outro" demonizado, apresenta o motivo para destruir este "outro". Destruição e demonização de nossos inimigos não são um caminho para a paz.

Edu Montesanti: Quais as reais raízes do terror, Professor Kivimäki, e quais seriam as políticas eficientes para combater o terrorismo?

Timo Kivimäki: Acho que não devemos pensar no terror como algo que tem raízes que, simplesmente, causam terror. O terror é uma tática imoral que as pessoas usam, mesmo que não devam, com objetivos políticos. Se olharmos para o terror que tem como base o abuso do Islã, nos parece claro que nas raízes deste tipo de terror está a percepção de que não há opções pacíficas a fim de provocar mudanças.

Mais de dez anos atrás estudei as origens de indivíduos e organizações terroristas estatisticamente, e também autorizei e realizei uma série de entrevistas entre indivíduos suspeitos ou condenados por atos de terror. Desta maneira, trabalhei para as chancelarias dinamarquesas e finlandesas. Descobriu-se que a maioria dos indivíduos terroristas vieram de países onde nenhuma mobilização para mudança pacífica é completamente impossível. A Arábia Saudita foi o local de nascimento de 15 dos 19 autores operativos dos ataques do 11 de Setembro, enquanto que no momento a Argélia é a principal fonte de indivíduos terroristas na lista europeia de terroristas.

Devido ao fato de que qualquer uma dessas organização era impossível nestes países, e no Egito de Hosni Mubarak, muitas dessas pessoas desesperadas mudou-se para os Estados fracassados onde poderiam se mobilizar em resistência. O Afeganistão tornou-se o centro de organização terrorista, apesar do fato de que não muitos terroristas são originários dali.

Nesses estados falidos, indivíduos que foram preparados para a violência para atingir seus objetivos não poderiam encontrar uma agenda comum na resistência a seus próprios governos já que vieram de diferentes países e, consequentemente, o fato de que muitos dos regimes autoritários desses países foram apoiados pelo Estados Unidos e por alguns de seus aliados europeus, tornaram-se alvo do novo alvo comum.

Isso eu acho que é a origem do tipo atual de terrorismo, mas uma vez que o processo de luta contra o Ocidente e a luta do Ocidente contra esses terroristas tinha começado, passou a adquiri novas formas. Algumas margens de comunidades de imigrantes encontraram ressonância para a frustração de sua própria marginalização na retórica anti-ocidental radical desses grupos islamitas originais, e novos tipos de terror começaram a emergir.

As maciças operações militares ocidentais que minaram os direitos soberanos de muitos países muçulmanos e que causaram uma série de fatalidades, deram origem à expansão do radicalismo anti-ocidental no Terceiro Mundo muçulmano. A lógica da escalada, do aprofundamento e da difusão do ódio de ambos os lados se impuseram, e novas formas de terrorismo surgiram.

O que é comum entre todos esses processos, foi que o ódio e a destruição dão origem ao ódio e à destruição, e a única maneira de avançar seria dialética, focando nosso interesse comum na prevenção da violência. O foco mútuo sobre a destruição do seu inimigo, apenas incita a violência.

A Síria tem atraído a atenção do mundo, e dividido a mídia predominante e da mídia alternativa. Como o senhor vê as raízes da guerra civil síria, e como avalia a intervenção dos Estados Unidos e da Rússia naquele país, o primeiro opositor ao presidente Bashar al-Assad, o segundo de apoio ao governo sírio?

Acho triste que temos desperdiçado as oportunidades diplomáticas pacíficas que existiam em 2011. Isso é também o que escrevi em meu artigo First Do No Harm que você mencionou. Não vejo nenhuma oportunidade positiva em direção às soluções sobre o apoio à capacidade de matar envolvendo ambos os lados do conflito: o apoio militar dos Estados Unidos a grupos violentos muito obscuros Síria, e o apoio da Rússia a um regime violento podre são, simplesmente, maneiras de expandir a magnitude da violência na Síria.

Vejo que a única forma de avançar se daria através da negociação inclusiva entre todas as partes em conflito, incluindo o Estado Islamita.

Edu Montesanti: Qual sua visão sobre os limites entre resistência e terror?

Timo Kivimäki: Acredito que a resistência é uma atividade definida pelo objetivo da ação, enquanto o terror deve ser definido como uma tática específica. Resistência é a atividade contra uma regra considerada ilegítima, e pode ser violenta ou não-violenta, terrorista ou não-terrorista dependendo dos métodos que a resistência se utiliza.

Terrorismo, novamente, envolve táticas em que uma pessoa ou um grupo tenta influenciar tomadores de decisão usando as vidas de civis inocentes como barganha. Acredito que é útil aplicar-se, ao conceito de terror, uma distinção entre táticas violentas que têm como alvo civis inocentes, e outros tipos de violência. Sem o conceito, não seria possível definir a norma contra a morte de civis.

No entanto, há um problema até com a definição correta de terror, para nem mencionar as definições politicamente manipuladas. O principal problema que vejo com a definição correta de terror é a natureza "ou-ou" do conceito. Se alguém atinge intencionalmente civis como estratégia de conflito onde alguém seja terrorista, mas e se você tiver partes em conflito que visam alvos militares que, porém, usam armas e áreas-alvo que são conhecidos por resultar em danos colaterais? Consequentemente, essas pessoas são sutilmente terroristas? No conflito palestino há atores que têm civis como alvos intencionais em algumas das operações. Eles são legitimamente chamados de terroristas. Mas também há atores, como o Estado de Israel, que visam militantes mas fazem isso atingindo militantes em centros civis com bombas de fragmentação. Isto também poderia ser chamado de terrorismo? É aceitável o fato de que um militante seja morto em uma operação que mata uma quantidade de civis um pouco menor que uma operação terrorista?

Na Palestina, tenho notado que as estatísticas de mortalidade tornam muito difícil a justificativa do conceito de terrorismo dentro do "ou-ou": há confrontos com mais mortes de crianças palestinas que as mortes israelenses. Isso significa que mesmo que as operações israelenses consigam matar alguns militantes, elas também tendem a matar mais civis do que militantes. Não deveríamos, então, chamar de terroristas as operações israelenses, mesmo que também tenham como alvo os militantes?

O principal problema com o uso atual da palavra "terrorismo" é que, cada vez mais, o terror é associado a objetivos políticos, muito mais do que alguns terroristas realmente os têm como objetivo. A fim de promover foster uma norma contra o terror, dever-se-ia tentar evitar a associação do terrorismo com objetivos políticos específicos, já que gostaríamos de pensar que a resistência pacífica e a promoção de objetivos políticos é legítimos, ainda que haja terroristas que também promovem esses mesmos objetivos, usando táticas terroristas imorais.

Demasiadas vezes usamos o conceito "terrorismo" para descrever atividades que promovem objetivos políticos islamitas, mesmo que não tenham sido perpetradas por meios terroristas. Esta prática, obviamente, desgasta a legitimidade da norma contra a morte de civis entre as comunidades que gostariam de ver a ordem política islamita, se o termo reservado para a morte de civis é confundida com ações para promover a política islamita. Esta prática conceitual de associar terrorismo com islamismo, também faz com que a Guerra do Terror ataque civis mais facilmente, se o terrorismo é associado com o islamismo. Assim, não devemos ser enganados sobre essa manipulação do conceito de "terrorismo".

Edu Montesanti: Charles Krauthammer escreveu no jornal The Washington Post: "[Estados Unidos deve criar] A Psicologia do Medo", a fim de garantir o "profundo respeito ao poderio norte-americano". Como o senhor vê essa posição?

Timo Kivimäki: Reconheço, de verdade. que o controle do poder mantém oportunidades violentas sob controle. Conflitos em Estados fracos e frágeis provam esta questão: sem aplicação da lei vigente, haverá anarquia.

No entanto, quando há vontade, há caminho: se os Estados Unidos se utilizam de muita violência para criar tal medo, isso também vai gerar o desejo de resistir a essa ordem. Sou mais a favor da conclusão de Henry Kissinger em seu livro World Order, segundo o qual o poder tem de estar associado à legitimidade a fim de gerar estabilidade e paz.

Agora, parece que a legitimidade, e não o poder, é o que está faltando na governança global dos Estados Unidos. É a imposição norte-americana de sua ordem, e a resistência a essa ordem, a fonte de tanta violência em áreas onde os Estados Unidos operam militarmente. Mais medo não resultará em mais legitimidade da instituição norte-americana de sua ordem, muito pelo contrário. Assim, acho que a receita de Krauthammer está errada.

Edu Montesanti: Quanto a "Guerra ao Terror" tem ampliado o preconceito contra islâmicos ao redor do mundo?

Timo Kivimäki: O problema tem sido a escalada da tensão e a violência entre os terroristas que utilizam indevidamente o Islã como base, e a violenta Guerra aos Terroristas. Não há nenhuma Guerra contra o Terror. Se houvesse, não usaria o terror como tática.

Esta escalada criou o preconceito contra os muçulmanos no mundo ocidental, e contra os norte-americanos e ocidentais no mundo muçulmano. Esta escalada é algo que devemos tentar reverter por meio do diálogo e de negociações, ao invés de matar nossos adversários.

Edu Montesanti: Como o senhor avalia a cobertura da grande mídia em relação ao terrorismo global?

Timo Kivimäki: A propalada mídia ocidental livre na verdade tem, ocasionalmente, sido surpreendentemente não-livre nas práticas de repetir termos, rótulos e narrativas de políticos ocidentais e da "segurocracia". Quando um grupo é chamado de terrorista por causa de seus objetivos por parte de políticos que se opõem a esses objetivos, os meios de comunicação, com demasiada frequência, simplesmente divulgam o rótulo.

Uma mídia crítica deve estar sempre atenta aos interesses dos políticos para evitar servi-los acriticamente. Às vezes acho incrível o que lemos até nos jornais mais respeitados sobre terror global, mesmo depois de ter tido acesso às revelações de Chelsie Manning, WikiLeaks, Glenn Greenwald e Edward Snowden. Às vezes, é como se nenhuma dessas revelações tivessem, jamais, sido feitas.

*Edu Montesanti é comunicador, escritor, professor de idiomas e tradutor. Autor do livro Mentiras e Crimes da "Guerra ao Terror" (2012), escreve para a revista Caros Amigos, para Jornal Pravda e Pravda Report (Rússia), para Global Research (Canadá), Truth Out (Estados Unidos). É tradutor do sítio na Internet das Abuelas de Plaza de Mayo (Argentina), e foi tradutor do sítio na Internet da escritora, ativista pelos direitos humanos e ex-parlamentar afegã injustamente expulsa do cargo, Malalaï Joya. Escreveu para Diário Liberdade (Galiza), Observatório da Imprensa (TV Brasil) eNolan Chart (Estados Unidos).  Contato: edumontesanti.pravda@gmail.com / www.edumontesanti.skyrock.com


EUA planeia ofensiva contra Coreia do Norte por arma nuclear



Após a falha no lançamento de um míssil nesta quinta-feira por parte da Coreia do Norte, as forças armadas de EUA e Coreia do Sul acordaram intensificar os esforços para contrapor as manobras nucleares.

Pravda.ru - Tradução de Edu Montesanti

O chefe do Pentágono, Ashton Carter, garantiu nesta quinta que os Estados Unidos responderam de maneira "esmagadora" se a Coreia do Norte realizar novos testes nucleares. A ofensiva poderia ocorrer logo após as eleições presidenciais de 8 de novembro.

"Não se enganem, qualquer tipo de ataque aos Estados Unidos ou a nossos aliados e, sobretudo o uso de armas nucleares, contará com uma resposta esmagadora", afirmou Carter durante uma entrevista coletiva conjunta com o ministro da Defesa sul-coreano, Han Min-koo.

"Os Estados Unidos estão comprometidos com a defesa de seus aliados, e para isso se serve de todo o espectro do poder militar estadunidense", afirmou Carter após a visita do ministro Han e do ministro de Relações Exteriores, Yun Byung-se para reafirmar seu compromisso com a defesa da Coreia do Sul, onde os EUA mantêm mais de 28.500 soldados como medida dissuasória diante da Coreia do Norte.

A Coreia do Norte testou, nesta quinta-feira, um míssil que falhou imediatamente após seu lançamento, informaram as forças armadas dos Estados Unidos e da Coreia do Sul horas depois de que ambos os países acordaram intensificar os esforços para contrapor a ameaça nuclear e de mísseis de Pyongyang, divulgaram as agências de notícias.

http://www.telesurtv.net/news/EE.UU.-planea-ofensiva-contra-Corea-del-Norte-por-arma-nuclear-20161020-0048.html

Pravda.ru

Análise: HILLARY CLINTON, O DIABO QUE JÁ CONHECEMOS




Juliano Fiori

Você provavelmente já viu essa foto: Donald inclinado sobre a mesa de seu escritório de Manhattan, preparando-se para traçar um "taco bowl” pousado sobre uma pilha de jornais ainda não lidos e de uma revista aberta numa página em que sua ex-mulher Marla Maples aparece de biquíni; ele exibe orgulhosamente uma gravata listrada de vermelho e branco de sua marca, Donald Trump Signature Collection, os fios de seu inigualável topete armado sobre a testa (será que ele penteia para trás ou para a frente?), sua expressão congelada está entre um sorriso sarcástico e uma careta de dor; e um pesado troféu de golfe reluz no parapeito da janela atrás dele.

Nada nesta cena comunica alguma afinidade autêntica com os latinos. Mas foi a foto que ele tuitou pouco depois de se tornar o candidato republicano presumido, para tentar alcançar o mesmo eleitorado que ele havia feito tudo para irritar durante as primárias. 'Eu amo os hispânicos ", escreveu ele na legenda.

É claro que Trump não ama os hispânicos. Trump os vê como vê tudo e todos: acessórios descartáveis da incontestável grandeza de Trump em uma épica história sobre Trump – meros peões em sua campanha movida a propagação de medo, intermediários em seus projetos de especulação imobiliária, lucrativos objetos de adoração em seu concurso de beleza, 'Miss Dona de Casa", público-alvo de um chauvinista decadente que fica trolando no Twitter para mostrar que não leva desaforo pra casa.

E a maioria dos latinos nos EUA – e, provavelmente, um grande número fora do país – também não ama Trump. Ele nunca lhes deu muitos motivos para amá-lo, com suas diatribes demagógicas sobre proibi-los de viver ao norte da fronteira (“Vamos construir um muro!"), e seus empreendimentos comerciais ao sul da fronteira que deixaram o conhecido rastro de famílias desalojadas, trabalhadores explorados e impostos sonegados.

Mesmo quando o egocentrismo e a bufonaria de Trump permitiram a apresentação de alguma política substantiva durante a campanha, a América Latina quase não foi mencionada. Conhecemos seus planos para a Segurança Nacional e uma " nova e especial força-tarefa de deportação" para reprimir a imigração, inclusive dos mexicanos: o reforço dos controles de entrada, a detenção e deportação de imigrantes ilegais, e, claro, a construção de um "muro físico impenetrável” na fronteira sul dos EUA, pelo qual, ele garante, o México irá pagar, mesmo que "ainda não saiba". Mas, com exceção de sua promessa de se retirar da Parceria Trans-Pacífico (TPP, um acordo ainda a ser ratificado entre doze países do Pacífico, incluindo Chile, México e Peru) e de renegociar ou se retirar também doTratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA, acordo trilateral entre Canadá, México e EUA), pouco sabemos sobre que forma teria a política externa de Trump para a América Latina – se seu governo de fato produzir qualquer coisa coerente o suficiente para ser chamada de uma política externa.

De sua parte, Hillary Clinton também não disse quase nada sobre a América Latina durante a campanha, apesar de sua experiência à frente da política para a região quando secretária de Estado, entre 2009 e início de 2013. Em 2015, durante um discurso no Atlantic Council, ela bajulou um grupo de latino-americanos e latino-americanistas ao afirmar que nenhuma região é "mais importante para a nossa prosperidade e segurança de longo prazo", mas, a verdade é que a América Latina simplesmente não consta entre as prioridades estratégicas dos EUA, e isso há uma geração; mas isso não é geralmente um motivo de tristeza para os latino-americanos que viveram a Operação Condor ou a Guerra às Drogas.

Ao longo da primeira década do novo milênio, partidos de centro-esquerda foram eleitos para governar grande parte dos países da América Latina, em uma espécie de “maré cor-de-rosa” (Pink Tide). Amparados em economias em constante crescimento e no aumento do consumo interno, esses governos tornaram-se menos dependentes de seus antigos parceiros comerciais e, no caso do governo brasileiro, mais assertivo nas instituições multilaterais. Enquanto os EUA estavam focados na Guerra Global contra o Terror, eles procuraram fortalecer a integração regional e formar novas alianças no exterior, especialmente com outros países em desenvolvimento. Uma China revigorada tornou-se o segundo maior parceiro comercial da América Latina (e o maior mercado de exportação do Brasil, Chile e Peru), aproximando-se, embora ainda um pouco atrás, dos EUA.

Os governos americanos do pós-milênio, no entanto, permanecem atentos ao seu 'quintal', mantendo um envolvimento esporádico, se ideologicamente coerente, nas questões da América Latina. Buscando condições favoráveis para as exportações e os investimentos dos EUA, Washington continuou a pressionar por liberalização comercial e financeira na América Latina, embora com menos sucesso do que na década de 1990 – existem hoje mais acordos de livre comércio bilaterais entre os EUA e os países latino-americanos, mas as negociações para estabelecer uma Área de livre Comércio das Américas foram abandonadas em 2005. A ajuda militar dos EUA para países da América Latina, principalmente a Colômbia, aumentou na primeira década do novo milênio e, embora o número de bases militares americanas na América Latina tenha diminuído (algumas bases foram fechadas, e houve tentativas fracassadas de estabelecer ou reabrir bases na Colômbia, no Equador, no Peru e no Panamá), o Comando Sul dos EUA abriu pequenas instalações militares – “quase-bases" – na maior parte dos países ao longo da costa do Pacífico, reforçou sua presença na base de Soto Cano, em Honduras, realizou atividades de vigilância com drones no México, e, em 2008, reativou a Quarta Frota da Marinha no Caribe e nas águas das Américas Central e do Sul, 58 anos após ter sido desativada.

Em 2002, em um retrocesso sinistro aos tempos da Guerra Fria, Otto Reich, secretário de Estado adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Elliott Abrams, diretor sênior no Conselho de Segurança Nacional (NSC), e a CIA foram implicados em uma tentativa de golpe na Venezuela. O presidente George W. Bush foi criticado por deixar a política para a América Latina nas mãos de Reich, um fervoroso anti-comunista, conhecido principalmente por seu papel no escândalo Irã-contras, cujos esforços para conter a “Maré rosa” foram muitas vezes obscuros, quando não desleais.

Em seu discurso na Cúpula das Américas, em abril de 2009, Barack Obama prometeu um "novo capítulo" nas relações interamericanas. Reconhecendo a história e buscando superá-la, Obama mudou o tom do engajamento dos EUA com a América Latina. Especialmente, deu passos significativos no sentido da normalização das relações com Cuba; isto já teve um efeito cascata, criando condições para os EUA e Cuba facilitarem as negociações para o acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC que, embora rejeitado por colombianos no referendo de 2 de outubro, ainda representa um progresso em direção ao fim do mais longo conflito interno no mundo.

Apesar da importância simbólica e material dos movimentos de Obama em direção à América Latina, seu governo também é responsável por manobras de desestabilização na região. Em 2008, pouco antes da eleição de Obama, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a reativação da Quarta Frota indicava a cobiça do governo dos EUA sobre as reservas do pré-sal do Brasil. Sua suspeita pareceu se confirmar quando, em 2013, Edward Snowden vazou documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA) mostrando a Petrobras, empresa estatal de petróleo do Brasil, havia sido espionada. Documentos divulgados por Snowden posteriormente revelaram que a NSA vinha monitorando a correspondência eletrônica da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, e de seus assessores, bem como a do presidente do México Enrique Peña Nieto.

A Casa Branca com Obama tem ditado os rumos da política externa mais do que ocorria sob seus antecessores pós-Guerra Fria. Durante seu período como secretária de Estado, Hillary Clinton divergiu do presidente em muitas questões estratégicas de política externa, tendo sido um dos poucos membros do gabinete a desafiá-lo durante as reuniões do Conselho Nacional de Segurança. Ao contrário de Obama, Hillary foi a favor de armar os rebeldes sírios, se opôs ao anúncio do prazo de 18 meses para a retirada as tropas do Afeganistão, após a tensão de 2009, opôs-se ao apelo pelo congelamento dos assentamentos israelenses, e apoiou uma transição democrática lenta no Egito que mantivesse Hosni Mubarak no poder. Em todas as decisões, a vontade de Obama prevaleceu. Na América Latina, no entanto, Hillary Clinton teve bastante autonomia. (A abertura das relações com Cuba – um dos carros-chefe de Obama – foi orquestrada, sobretudo, por canais diplomáticos não-oficiais, mas foi durante o segundo mandato de Obama, depois de Clinton deixar o cargo, que as negociações se intensificaram).

Em junho de 2009, Clinton enfrentou seu primeiro grande teste na América Latina, quando o presidente hondurenho Manuel Zelaya foi deposto do cargo, após ser arrancado de sua residência, no meio da noite, ainda de pijama, por soldados cumprindo ordens da Suprema Corte de Honduras. As Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA) pediram a volta imediata de Zelaya como presidente. Obama declarou que "o golpe não foi legal" e, em um telegrama diplomático, divulgado mais tarde pelo WikiLeaks, o embaixador dos EUA em Honduras Hugo Llorens também se referiu a um "golpe de Estado ilegal e inconstitucional". Mas a posição de Obama foi abalada quando sua tentativa de nomear um novo representante sênior para as Américas foi bloqueada por senadores republicanos que apoiaram o governo interino de Honduras de Roberto Micheletti. 
Ignorando a declaração anterior de Obama, Clinton afirmou em seguida que o governo dos EUA se abstinha de chamar a deposição de Zelaya de golpe, e deu início a uma tentativa de, escanteando a OEA, trabalhar ao lado do presidente da Costa Rica Óscar Arias para evitar o retorno de Zelaya, através de nova eleições. Na primeira edição de sua autobiografia, Hard Choices, Clinton escreve: "Nós pensamos num plano estratégico para restaurar a ordem em Honduras e garantir que eleições livres e justas pudessem ser realizadas de forma rápida e legítima, o que tornaria a questão Zelaya irrelevante”. Esta passagem foi removida a partir na segunda edição. O governo dos EUA continuou a fornecer ajuda militar e para o desenvolvimento de Honduras, incluindo 28 milhões de dólares através do programa Honduras Convive, lançado pelo Departamento de Iniciativas de Transição para sufocar qualquer reação de hondurenhos que se recusassem a aceitar a nova realidade política. A violência política aumentou q partir de de junho de 2009: em Janeiro de 2010, 34 membros da oposição (ao governo interino e, em seguida, ao governo de Porfirio Lobo, que foi eleito e reconhecido por Obama em novembro de 2009) haviam desaparecido ou sido assassinados, e mais de 300 pessoas haviam sido mortas pelas forças de segurança hondurenhas.

Nos últimos anos, as taxas de homicídio nos países do Triângulo do Norte da América Central (Honduras, El Salvador e Guatemala) estão entre as mais altas do mundo. Gangues territoriais, envolvidas em extorsão e tráfico de drogas, são muitas vezes responsáveis por assassinatos, estupros e torturas que levaram à emigração em massa, mas esses países têm longas, ainda que distintas, histórias de violência: a repressão estatal, apoiada e somada a intervenções estrangeiras, antecedidas por séculos de domínio colonial, com seu legado de patriarcado e discriminação racial. Durante sua campanha, Hillary Clinton disse que o Plano Colômbia – a iniciativa militar e diplomática lançada por seu marido para combater narcotraficantes e guerrilheiros colombianos – representa um modelo apropriado para as atividades dos EUA na América Central. Unidades militares colombianas, treinadas e financiadas por meio do Plano Colômbia, recompensam financeiramente os soldados por cada guerrilheiro que matam, e sabe-se que agiram em conluio com grupos paramilitares. Um relatório das organizações Fellowship on Reconciliation (FOR) com o US Office on Colombia (USOC) apresenta uma correlação entre o aumento em ajuda dos EUA para unidades militares através do Plano Colômbia, e o aumento no número de execuções extrajudiciais cometidas. A Anistia Internacional, por sua vez, descreveu o Plano Colômbia como "um fracasso em todos os aspectos". A proposta de Clinton para a adoção de uma estratégia similar para a América Central evidencia a perspectiva de uma militarização acelerada da segurança pública em sociedades já marcadas por extrema violência – e por genocídio, no caso da Guatemala – infligida pelas forças militares, sem necessariamente tratar as causas mais profundas da intranquilidade social e da criminalidade.

Através de sua supervisão e expansão da Iniciativa Mérida – um acordo de cooperação de segurança entre o México e os EUA, ostensivamente destinado a combater o crime organizado e o tráfico de drogas – Hillary já havia demonstrado sua predileção por abordagens militaristas na aplicação da lei na América Latina. Ao lado de um apoio modesto destinado à reforma judicial e à prevenção ao uso de drogas, a iniciativa concentra-se principalmente em prover recursos e treinamento para fortalecer a interdição militar ao narcotráfico mexicano. O programa tem sido amplamente criticado por não restringir o tráfico nem o consumo de drogas, por se integrar à corrupção do Estado mexicano e à repressão do governo contra a dissidência, e por militarizar a segurança do cidadão, apesar das evidências de aumento no abuso de direitos humanos.

A segurança ao sul da fronteira é especialmente importante para os EUA desde 1994, quando o NAFTA entrou em vigor e o México se tornou uma parte inseparável da economia norte-americana. Através da Iniciativa Mérida, os governos norte-americanos têm procurado securizar e proteger as rotas de comércio do México para os EUA. Mas, ironicamente, o NAFTA tem contribuído, de forma não negligenciável, para a expansão do comércio de drogas violento no México: o aumento do tráfego na fronteira EUA-México criou mais oportunidades para o contrabando de mercadorias ilícitas e o escoamento de produtos agrícolas subsidiados dos Estados Unidos (principalmente milho) para o México vem destruindo modos de vida rurais, empurrando pequenos agricultores para a produção de drogas. Fiel ao legado de seu marido, para quem a assinatura do NAFTA representou um feito glorioso, Hillary Clinton inicialmente apoiou o acordo de comércio. Mas declarou-se crítica a ele durante a sua candidatura às primárias presidenciais em 2008. Ela também mudou posição sobre outros acordos comerciais. Tendo se referido ao TPP como "o modelo dos acordos comerciais", em 2012, passou a criticá-lo durante as primárias contra Bernie Sanders, buscando o apoio da esquerda do Partido Democrata. E mudou de posição ainda sobre o acordo bilateral de comércio entre EUA e Colômbia, opondo-se a ele durante sua campanha de 2008 para, em seguida, pressionar o Congresso a apoiá-lo em 2011. Os críticos sugerem que, neste caso, Clinton pode ter sido influenciado por interesses privados, apontando para 800 mil dólares recebidos por Bill Clinton da colombiana Gold Services por quatro conferências durante as quais ele declarou apoio ao acordo comercial. Desde a entrada em vigor, o acordo – que exigiu mais concessões de parte da Colômbia do que dos EUA em termos do valor comercial sujeito a eliminação imediata de tarifas – trouxe uma redução na renda e na área cultivada pelos pequenos agricultores colombianos, incapazes de competir com as importações agrícolas americanas.

Se é pragmática, ou até cínica, Hillary Clinton é também uma firme defensora da globalização neoliberal, e em geral apoia acordos de livre comércio nas Américas. Ela também tem feito pressão pela privatização de serviços públicos na América Latina, criando oportunidades de investimento para as empresas americanas. Documentos divulgados pelo Wikileaks mostraram que, enquanto Clinton era secretária de Estado, sua equipe procurou, a portas fechadas, dar ajuda às reformas de energia no México, que incluíam a privatização parcial da PEMEX, a companhia nacional de petróleo que, sob a propriedade estatal desde 1938, é a principal fonte de receita para as despesas sociais no México. E, em 2012, agindo em nome do Departamento de Estado, a embaixadora dos EUA em El Salvador, Mari Carmen Aponte, ameaçou suspender a ajuda ao desenvolvimento dada ao governo de El Salvador, se este não aprovasse uma lei de parcerias público-privadas. (A venda de bens do Estado salvadorenho a empresas privadas, desde o início da década de 1990, fez disparar o custo de vida para as pessoas com menores salários: a privatização do setor elétrico de El Salvador, em 1996, levou a um aumento de 47,2% na tarifa para pequenos consumidores).

Nos últimos anos, as coisas mudaram na América Latina. A maioria das economias latino-americanas estão vacilantes, expondo uma dependência excessiva das exportações de matérias-primas e, em particular, da continuidade do crescimento e do consumo da China. A direita ganha força e chega ao poder em vários países (o caso mais recente, no Brasil, após o controverso impeachment da presidenta Dilma Rousseff), com a intenção declarada de reaquecer as relações comerciais com antigos aliados, principalmente com os EUA.

Seria improvável que um eventual governo Trump, guiado pelo credo “Americanismo, não globalismo", tirasse proveito dessas mudanças e ampliasse a abertura para a América Latina. Por outro lado, dada a volatilidade de Trump, sua propensão a mentir, e, para sermos bem claros, sua total falta de planos, quem pode dizer o que ele realmente faria no poder? ("Queremos ser imprevisíveis", ele diz, estabelecendo um princípio central de sua estratégia de negociação, que, convenientemente, e caracteristicamente, transforma seu vício em virtude). Graças ao seu desempenho desastroso no primeiro debate com Clinton, e a um escândalo de abuso sexual, pelo qual ele não se desculpou e respondeu contra-atacando, parece cada vez mais provável que a humanidade será poupada do pavor de descobrir.

Hillary Clinton muda de opinião como quem muda de roupa, ela joga o jogo, mas acaba sendo previsível, e até chata, para o papel de presidente polido. Nós mais do que sabemos o que esperar. Ela é uma internacionalista liberal e uma intervencionista durona. Ela acredita firmemente que os EUA devem desempenhar um papel abrangente de influência sobre os temas internacionais. Certamente vai tentar capitalizar a virada conservadora da América Latina voltando sua atenção para a região, ainda que continue lá embaixo em sua lista de prioridades estratégicas. Ao contrário de Trump, Hillary tem um histórico na América Latina. Essa é, para muitos latino-americanos, a preocupação.

Opera Mundi - *texto originalmente publicado em Carta Maior – Foto: Efe

61 PROMESSAS POR CUMPRIR



 Afonso Camões – Jornal de Notícias, opinião

Do outro lado da ilha cubana que o presidente Marcelo visita dentro de dois dias, há uma baía e um pedaço de terra arrendados há 103 anos, onde os americanos instalaram uma base naval e, desde 2001, também uma prisão de alta segurança. Ali, sobre Guantánamo, assim se chama também a cantada província de Cuba, paira a nuvem que ensombra o legado de um outro, o presidente cessante dos Estados Unidos, Barak Obama.

A criação daquela cadeia, por iniciativa do seu antecessor republicano George W. Bush e ao arrepio das Convenções de Genebra, constitui uma das mais negras violações americanas da legalidade internacional. Trata-se da instauração consciente e voluntária de um limbo legal para deter, debaixo de custódia militar e em muitos casos sob tortura, "prisioneiros terroristas" a quem chamam de "combatentes inimigos", muitos deles sem culpa formada, sem julgamento e sem nenhumas garantias de defesa, nem pelos tratados internacionais nem sequer pela lei americana. Chegaram a ser 780, entre os 13 e os 80 anos.

Imaginado pelos fiéis de Bush como lugar para onde "vais e não voltas", a prisão de Guantánamo devia servir para deter indefinidamente militantes talibãs e membros da al-Qaeda, sem lhes oferecer as garantias dos tribunais americanos. Ao contrário, Obama sempre defendera em campanha que a manutenção daquele presídio é agora um perigo para a segurança: serve de bandeira na propaganda para recrutar terroristas e dificulta as relações com os seus aliados, para além do custo económico desmesurado.

Em janeiro de 2009, mal tomara posse, Obama assinou o decreto que proibia os abusos durante os interrogatórios e ordenava o encerramento da cadeia de Guantánamo, o mais tardar no prazo de um ano. Nunca conseguiu, porém, executá-lo. Chocou com a oposição do Congresso de maioria republicana, da mesma forma como, já em 2009, tinha sido travado pela então maioria democrata. Nada de mais impopular que levar tais presos para território americano, ali onde congressistas e senadores têm os seus votantes. Como se não bastasse, o candidato republicano à presidência, Donald Trump, é partidário não só de manter a prisão aberta, mas também internar lá cidadãos norte-americanos.

Prestes a terminar os seus dois mandatos e comparado com os seus antecessores, Obama colhe uma das mais altas taxas de popularidade de sempre. Quando ele levava apenas nove meses de mandato e ganhou o Nobel da Paz ainda havia em Guantánamo 242 presos. Hoje, os 61 que lá continuam detidos são a sua promessa por cumprir.

*Diretor

Marcelo vai a Cuba e pode encontrar-se com Fidel



O Presidente da República realiza entre quarta e quinta-feira uma visita de Estado inédita a Cuba, onde se reunirá com o chefe de Estado cubano, Raúl Castro, e poderá também encontrar-se com o líder histórico Fidel Castro.

"Com certeza fará bem em conhecer aquele belo país", comentou o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, na quinta-feira, depois de ter sido recebido pelo Presidente da República, no Palácio de Belém.

Marcelo Rebelo de Sousa viaja para Havana na terça-feira em voos comerciais, com escala em Paris, e tem chegada à capital cubana prevista para as 20:25 (01:25 de quarta-feira na hora de Lisboa), mas o programa só começa no dia seguinte.

O chefe de Estado português foi convidado por Raúl Castro para visitar Cuba e aproveita a deslocação à Cimeira Ibero-Americana que vai decorrer entre sexta-feira e sábado, dias 28 e 29 de outubro, em Cartagena das Índias, na Colômbia, para responder agora a esse convite.

De acordo com o programa divulgado, além da componente institucional, esta visita tem também uma vertente cultural e dá especial atenção às relações económicas, incluindo o encerramento de um Fórum Empresarial Bilateral Portugal-Cuba, organizado pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).

Neste momento, Cuba atravessa um processo de gradual abertura económica e recentemente retomou relações diplomáticas com os Estados Unidos, que no entanto mantêm o embargo económico e financeiro iniciado há mais de meio século.

Na quarta-feira, dia 26, Marcelo Rebelo de Sousa tem uma agenda intensa, mas com um espaço a seguir ao almoço, altura em que poderá decorrer o encontro com Fidel Castro, que não consta do programa oficial porque será reservado e depende do estado de saúde do antigo Presidente e primeiro-ministro de Cuba.

Neste dia, a meio da tarde, Marcelo Rebelo de Sousa depõe uma coroa de flores no monumento nacional dedicado ao mártir da independência de Cuba em relação a Espanha José Martí.

Depois, é recebido com honras militares pelo Presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros de Cuba, Raúl Castro, com quem se reúne, seguindo-se um jantar oficial, no Palácio da Revolução.

Antes, o Presidente da República começa a manhã com um passeio a pé pelo centro histórico de Havana, acompanhado pelo historiador Eusebio Leal, responsável pela reabilitação desta área da capital cubana.

A seguir, visita uma creche da organização não-governamental católica Padre Usera, onde deverá estar o arcebispo de Havana, Juan García Rodríguez, e inaugura uma biblioteca de língua portuguesa com o nome do escritor português Eça de Queirós, que foi cônsul nas antigas Antilhas Espanholas, entre 1872 e 1874.

Ao almoço, o Presidente da República encerra o fórum empresarial organizado pela AICEP, que antecede a 34.ª Feira Internacional de Havana (FIHAV), que pela primeira vez terá um pavilhão dedicado em exclusivo a Portugal.

Na quinta-feira, o programa do chefe de Estado inicia-se com uma visita ao Centro de Neurociências de Cuba e prossegue com uma intervenção numa conferência sobre "Portugal e a América Latina", na Universidade de Havana.

Antes de viajar para a Colômbia, Marcelo Rebelo de Sousa está presente numa receção a emigrantes portugueses e de outros países lusófonos e visita uma exposição de filigrana portuguesa.

Depois da Cimeira Ibero-Americana de Cartagena, O Presidente da República participará com o primeiro-ministro, António Costa, na Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em Brasília, entre 31 de outubro e 01 de novembro.

O antigo Presidente da República Jorge Sampaio esteve em Cuba em 1999, juntamente com o então primeiro-ministro António Guterres, mas não em visita de Estado, por ocasião de uma Cimeira Ibero-Americana.

Jornal de Notícias – Foto: Lusa

A LIBERDADE INCOMODA



Isabel Moreira – Expresso, opinião

Vem este título a propósito da proposta de lei do governo sobre o tabaco (vou designá-la assim para simplificar). A proposta desceu à especialidade sem votação, o que é bom. Tal como está, é inaceitável.

Tenho ouvido alguns comentários no sentido de que esta questão do fumo, do vapor, da restrição de direitos de fumadores e de utilizadores de cigarros eletrónicos e de outros cigarros sem combustão não tem “grande importância”.

Penso que essa indiferença resulta de a nossa cultura democrática ser pobre no que toca à interiorização de direitos individuais. Parece que estamos satisfeitos com a democracia formal, com o sufrágio, mas não perdemos grande tempo a refletir sobre diplomas que tocam fundo no modelo de sociedade em que vivemos. Não perdemos grande tempo a discutir se é normal que o Estado condene comportamentos, não porque eles prejudiquem terceiros, mas pelo seu “simbolismo”. Por exemplo, quando no diploma do governo se proíbe que se fume um cigarro numa varanda de determinados edifícios (terá de ser na rua a x metros desses edifícios, como os órgãos de soberania, imagine-se) a mensagem que ali se está a passar não diz respeito apenas aos fumadores. Pelo contrário, diz respeito à cidade como um todo.

Queremos viver num Estado perseguidor de comportamentos lícitos (sim, fumar é lícito) ao ponto de estigmatizar uma categoria de cidadãos na esperança “moral” de que esses “maus exemplos” desistam de fazer “más escolhas para a sua própria saúde”?

Seria o mesmo que estigmatizar por via da fiscalidade todos os que não comem uma alimentação “ideal” até que esses se vergassem ao mito de um pano de vida traçado pelo estado e não pelos próprios.

De resto, já se deram conta de que todos os dias homens e mulheres estão parados em paragens de autocarros a levarem com doses maciças de poluição? O que fazer? Proibir que se fume a cinco metros de determinados edifícios. A sério?

O diploma do governo imprime um modelo de sociedade sob o pretexto de estar a proteger a saúde pública. Esse modelo de sociedade passa por delinear um “modelo de cidadão” com um “padrão comportamental”. Nada que a história desconheça.

A prova deste ímpeto moral do legislador e da fraude na alegada defesa da saúde pública está no tratamento que o diploma dá aos cigarros eletrónicos (CE), aos cigarros sem combustão, sem fumo, sem tabaco, apenas com vapor, com ou sem nicotina, dispositivos que têm salvado milhões de vidas pelo mundo fora. No diploma, os cigarros eletrónicos, que são 95% menos prejudiciais para a saúde do que os cigarros normais e que não prejudicam terceiros, são incentivados (como no RU ou na Suécia) ou perseguidos, como no puritanismo americano?

São diabolizados e perseguidos: é o critério da exemplaridade como critério de restrição da liberdade geral da ação.

Este diploma assume que não são conhecidos os efeitos que podem advir de novos produtos como os cigarros eletrónicos, sem combustão, sem fumo, sem tabaco, ou de outros com tabaco, mas sem combustão e usa “à partida” o princípio da precaução para equiparar fumar ao que não é fumar e aplicar uma lógica de restritiva contraproducente e desproporcionada aos nossos comportamentos livres e lícitos.

Os estudos proliferam. Não estamos em 2006. Estamos em 2016, por mais que determinados lóbis façam fazer por esquecer. Não tenho tempo para descrever a longa história nesta matéria da OMS ainda aquando da elaboração da diretiva europeia sobre o tabaco. Percebe-se uma coisa: aleija muita gente que as farmacêuticas não tenham o monopólio dos produtos que ajudam a deixar de fumar.

O princípio da precaução é um subprincípio do princípio da proporcionalidade e só deve ser utilizado quando há certeza absoluta (sob pena de não haver evolução na análise da utilização do bem y ou y) de que – no caso – há riscos para terceiros e, ainda assim, sob o chapéu do princípio da proporcionalidade. A seguir a lógica deste diploma, a comercialização de micro-ondas e de telemóveis teria sido proibida. Por precaução, certo?

A lógica deste diploma é esta: “a única forma segura de não fumar é não fumar”. Incluindo o que a lei inventou que passou a ser fumar. Na alínea s) do artigo 2º somos informados que cigarros eletrónicos que não têm combustão, não têm fumo, produzem apenas vapor, “afinal” integram o novo conceito de “fumar”. Porquê? Porque o governo do partido que despenalizou o consumo das drogas entre incentivar um produto que tem comprovadamente contribuído mundialmente para salvar milhares de vida diz isto ao povo: “ou abstencionismo ou tabaco!” Eis a proporcionalidade e toda uma política de “saúde pública”.

O apelo ao abstencionismo mantém-se no artigo 15. Está demonstrado que é melhor vapear CE do que fumar. Está demonstrado que os CE salvam vidas. Conclusão: proíbe-se a publicidade a produtos que salvam vidas. Excessivo e absurdo, não?

Sabem como é no Reino-Unido? Acabaram com os proibicionismos e têm frases sobre alternativas aos cigarros nos maços de tabaco em vez de imagens tipo bullying de terror que mais não geram do que habituação às mesmas.

Podem sempre dizer que é desagradável o cheiro do vapor que sai de um cigarro eletrónico. Lá está: a liberdade incomoda. E isso é bom. Sermos livres implica algum incómodo recíproco, incómodo esse que só pode ser reprimido se for verdadeiramente relevante. Não gosto do perfume de muita gente. Incomoda-me. E vivo com isso. É da liberdade.

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