Em
19/9, Temer encontrou-se com Trump em Nova York. Três semanas antes, sem
alarde, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, abria, no TCU, processo
sigiloso para derrubar a cláusula que impede venda da Embraer à Boeing (foto)
Agora,
Temer finge defender a empresa. Mas há três meses trama, em surdina, fim do
único dispositivo que pode impedir sua desnacionalização. Vale e IRB podem ter
mesmo destino
Herbert
Claros da Silva, Renata Belzunces dos Santos e Marco Antonio
Gonsales de Oliveira 1 | em Outras Palavras
Há
três meses, o governo, via Ministério da Fazenda, encaminhou
uma consulta ao Tribunal de Contas da União para liquidar as golden
sharede três companhias estratégicas: Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros.
Agora, que a norte-americana Boeing fez uma oferta para comprar a Embraer, este
mesmo governo diz que nunca venderia a empresa, terceira maior do mundo em seu
setor.
Entenda
o que são as golden share: origem, objetivo e exemplos.
Golden
Share
Recentemente,
foi veiculada a informação de que o Ministério da Fazenda solicitou consulta ao
Tribunal de Contas da União para que o governo federal possa se desfazer das
ações especiais que possui em três companhias estratégicas: Embraer, Vale e
IRB-Brasil Resseguros. O Ministério da Fazenda emitiu a solicitação de consulta
em 19 de julho de 2017 e o TCU abriu processo no final de agosto para responder
o pedido2.
Todas
essas companhias foram privatizadas e em cada uma delas ficou assegurado ao
governo a propriedade de ações de classe especial(golden share). Este é outro
claro aceno do atual governo ao mercado financeiro internacional em busca de
credibilidade e provas de alinhamento ideológico. Depois do tsunami das
privatizações dos anos 90 – e outras mais pontuais no período governado pelo PT
–, a história se repete como tragédia, agora aprofundando a mercantilização dos
setores já privatizados e tentando privatizar o que ainda resta.
A golden
share é uma classe de ação especial que confere determinados privilégios e
prerrogativas aos seus detentores. São instrumentos da atividade criativa do
direito empresarial com o objetivo de satisfazer as necessidades políticas e
econômicas surgidas nos momentos de alteração da configuração entre Estado e
mercado, como verificou-se a partir da década de 70, principalmente na Europa,
com a grande transferência de empresas públicas às mãos das empresas privadas:
as conhecidas políticas públicas e econômicas de privatizações. A Inglaterra
foi a pioneira, a partir de 1979, quando Thatcher implementou o seu conhecido
programa de privatizações, através do qual se passou a abrir à iniciativa
privada setores que lhe eram vedados, adentrando o capital privado na prestação
de serviços antes considerados inseparáveis do Estado. A experiência britânica
é relevante, pois foi precisamente no contexto do programa de privatizações
mencionado que surgem as golden share (Pela, 2008).
Para
os setores contrários às privatizações, a transferência de empresas estratégicas
públicas ao setor privado poderia acarretar no enfraquecimento do Estado sobre
a administração desses recursos, além de comprometer outros setores
fundamentais para o país, como a segurança nacional e a perda de empresas de
tecnologias estratégicas. A criação da golden share teria sido uma
concessão aos setores críticos às privatizações, pois garante ao Estado poderes
que limitam a tomada de decisão das empresas privatizadas. Em suma, golden
share são títulos acionários que atribuem ao Estado prerrogativas
especiais, não proporcionais à sua participação no capital da sociedade,
destinadas a salvaguardar interesses nacionais.
Sob
essa mesma justificativa, o mecanismo das golden share foi usado por
diversas companhias no Reino Unido. Entre 1979 e 1983, as empresas British
Aerospace, fabricante de aeronaves civis e militares e de materiais bélicos; a
Cable & Wireless, prestadora de serviços de telecomunicação; Amersham
International, responsável pela fabricação de produtos radioativos para uso em
medicina e pesquisa, e a conhecida British Petroleum, cujas atividades se
concentravam no setor petrolífero.
O
mecanismo foi adotado, sob diversas denominações, também em países como a
França (action spécifique), Itália (poteri speciali), Alemanha (goldene Aktie e Spezialaktie),
Bélgica (action spécifique), Portugal (acções preferenciais) e Espanha (regime
administrativo de controle específico). No entanto, foi pouco acionado pelos
governos. No Brasil, o instrumento ficou conhecido como ação de classe
especial e foi implementado a partir dos anos 90, quando empresas estatais
como a Vale e a Embraer entraram no Programa Nacional de Desestatização (PND).
No caso da Embraer, a atividade se relaciona à defesa; na Vale, as reservas
minerais têm importância estratégica para o país (JOSÉ, 2004; PELA, 2008).
Um
dos casos mais emblemáticos no Brasil, envolvendo a possibilidade de
acionamento da ação de classe especial, foi a intenção de compra de 20% das
ações ordinárias emitidas pela Embraer, em outubro de 1999, por um consórcio
francês liderado pelas empresas Aérospatiale Matra, Dassault Aviation,
Thomson-CSF e Snecma. O acordo foi negociado sem o conhecimento do governo, mas
que através da Aeronáutica descobriu o plano dos grupos.
Segundo
artigo publicado em 21 de dezembro de 1999 pelo jornal Folha de São Paulo, a
aeronáutica desvendou o plano por meio de documentos confidenciais da
negociação. O grupo Bozano Simonsen havia se comprometido a convencer os
controladores da empresa a venderem mais ações para os franceses em um prazo de
cinco anos. Foi discutido se o negócio poderia ser qualificado como
transferência de controle acionário, ou seja, passar uma indústria de
importância estratégica para ser controlada por um grupo estrangeiro, com
ameaça à soberania e a defesa nacionais.
O
governo FHC consultou a Advocacia Geral da União, os ministros da Defesa,
Relações Exteriores e do Desenvolvimento e decidiu não recorrer às ações de
classe especial para intervir no negócio de US$ 209 milhões, entre a Embraer e
o grupo francês. Naquela ocasião, a golden share não foi usada, mas
tudo indica que teria sido caso as negociações não tivessem sido encerradas. É
o caso em que a mera existência do dispositivo impediu o prosseguimento da
negociação, depois de manifestada a posição contrária do governo.
Em
2009, quando a Embraer demitiu 20% dos seus trabalhadores, mais uma vez o
assunto das golden share veio à tona. No entanto, como demonstraremos
abaixo, esse não era o melhor caminho jurídico para impugnar a demissão em
massa, dado que as ações especiais que o governo detém da Embraer não lhes
garantiam tal atribuição.
A
mais recente e conturbada história envolvendo empresas e governo no campo das
ações de classe especial foi na União Europeia. Portugal utilizou o mecanismo
em 2010 para vetar a venda da participação da Portugal Telecom na Vivo por 7,15
bilhões de euros à espanhola Telefónica. A Corte Europeia de Justiça considerou
que o uso das ações de classe especial pelo governo português violou a
legislação da União Europeia sobre a livre movimentação de capitais. Essa foi a
mesma interpretação da Corte Europeia em outros casos em que a golden
share foi acionada pelos governos.
O
assunto das ações de classe especial no Brasil voltou à tona quando o governo
demonstrou intenção em liquidar de vez com esses papéis na Embraer, Vale e
IRB-Brasil Resseguros. Suas ações de classe especial guardam bastantes
semelhanças e algumas diferenças relacionadas ao tipo de negócio e à gestão. As
características comuns a todas companhias são: poder de veto à alteração de
denominação social, de objeto social, de modificação acionária e, por fim,
garante que qualquer modificação nela própria – na golden share –
pode ser vetada pela União (Quadro 1).
As
diferenças mais relevantes referem-se às prerrogativas administrativas e
especiais relacionadas ao setor de defesa. No IRB-Brasil Resseguros, a União
pode indicar um membro (e suplente) para composição do Conselho de
Administração. Por sua vez, esse membro exercerá a presidência do Conselho.
Também indicará membro (e suplente) para o Conselho Fiscal. Na Embraer, os
programas militares podem ser vetados, assim como o acesso à tecnologia
envolvida nesses programas. A companhia também poderá deixar de fornecer peças
de manutenção ou reposição para clientes, se for do interesse da União.
QUADRO
1
Comparação
das Prerrogativas da golden share
Prerrogativa
de Veto
|
Embraer
|
Vale
|
IRB
|
Alteração
de denominação social (nome)
|
X
|
X
|
X
|
Alteração
de mudança da sede social (local)
|
X
|
X
|
|
Mudança
no objeto social (finalidade da empresa)
|
X
|
X
|
X
|
Alteração
ou aplicação da logomarca
|
X
|
X
|
X
|
Fim
da sociedade (liquidação dos negócios )
|
X
|
||
Qualquer
modificação dos direitos atribuídos às espécies e classes das ações de
emissão da sociedade previstos no Estatuto Social
|
X
|
X
|
X
|
Alienação
ou encerramento de atividades pré-definidas no Estatuto Social
|
X
|
||
Modificação
na natureza dela própria (Golden Share)
|
X
|
X
|
X
|
Transferência
de Controle Acionário
|
X
|
X
|
|
Transformação,
fusão ou cisão
|
X
|
||
Criação
e/ou alteração de programas militares que envolvam o país
|
X
|
||
Capacitação
para terceiros em tecnologia para programas militares
|
X
|
||
Interrupção
de peças de reposição e manutenção
|
X
|
||
Prerrogativas
Administrativas
|
|||
Indicar
membro para o Conselho de Administração *
|
X
|
||
Indicar
membro para o Conselho Fiscal
|
X
|
Fonte:
Estatutos Sociais das Companhias, disponíveis nos respectivos sites.
A
motivação da consulta, segundo o ministro da Fazenda, é estabelecer como a
União poderá se desfazer dessa ação. O motivo alegado seria o fato de que
a golden share desvalorizaria os ativos3. Em uma primeira aproximação,
parece que o ministro Henrique Meireles está na defesa do mercado em um momento
em que são desconhecidas manifestações do próprio mercado contra a golden
share.
Em
uma tentativa de compreender os motivos que levam o governo a tomar essa
iniciativa, identificamos duas possibilidades: a questão fiscal e o valor de
mercado das empresas.
Arrecadação
fiscal: em meio ao pacote de privatizações em curso e forte ajuste recessivo, o
governo poderia estar buscando arrecadar com a “venda” dessas ações. A consulta
ao TCU teria como objetivo precificar esses papéis que hoje não têm preço, pois
não são comercializáveis. Por quanto dinheiro valeria a pena abrir mão das
prerrogativas da golden share? Quem pagaria? O fato é que o fim dessas ações
também significa o fim das suas prerrogativas, que não poderiam ser exercidas
por mais ninguém. Nenhum agente privado pode exercer as prerrogativas
destinadas apenas à União. Quanto vale algo que deixa de existir assim que é
comprado?
Valorização
das ações da empresa: a hipótese é que o fim da golden share aumentaria
o valor de mercado dessas empresas, ao diminuir as possibilidades de
intervenção do governo. Mas essa classe de ação especial é apenas um dentre
vários outros instrumentos que o governo tem à disposição para interferir nos
negócios dessas empresas, e isso não é diferente em qualquer outro lugar do
mundo. Segundo levantamento do professor Marcos Barbieri (IE-UNICAMP), todos os
governos têm políticas de interferência no setor aeronáutico, com ou sem golden
share. Dessa maneira, seu fim não tornaria a Embraer, por exemplo, mais
capitalista do que a Boeing, que não tem golden share. Também não tornaria
a Vale mais capitalista do que as suas concorrentes mundiais.
Essas
companhias são gigantes em seus setores. A Vale é uma das maiores mineradoras
do mundo, a Embraer também é terceira maior empresa aeronáutica (aviação
comercial) no ranking mundial e o IRB-Brasil praticamente monopoliza os
resseguros no país. A soma de suas receitas em 2016 atinge R$ 115.275,3 bilhões
(equivalente a 1,8% do PIB no mesmo ano); o lucro foi de R$ 18.896,3 bilhões em
2016 e cerca de 100 mil trabalhadores são empregados pelas três gigantes. São
cifras astronômicas, de fazer brilhar os olhos do mercado.
QUADRO
2
Resultados
das Companhias – 2016 – em R$ milhões
<Empresa
|
<Receita
Líquida
|
<Lucro
Líquido
|
<Trabalhadores
|
Embraer
|
16.480,3
|
585,4
|
18.506
|
Vale
|
94.633,0
|
17.461,0
|
73.062
|
IRB
|
4.162,0
|
849,9
|
n/d
|
Total
|
115.275,3
|
18.896,3
|
91.568
|
Fonte:
Embraer, Vale e IRB. Demonstrações Financeiras.
Essas
companhias são representativas da totalidade ou quase totalidade dos setores em
que atuam, foram privatizadas a preços questionáveis e vêm sendo geridas para e
pró-mercado. A relação entre Estado e mercado nunca deixou de existir e vai
continuar existindo. Não é conhecido argumento de que empréstimos subsidiados
pelo BNDES, desonerações e outros diminuam o valor de mercado dessas empresas.
O questionamento da gerência do Estado na economia privada é seletivo,
portanto, quando soa o discurso da livre iniciativa, ele vem cheio de
hipocrisia, pois esse mesmo mercado nunca se furta a pedir socorro e a aceitar
“ajuda” quando convém.
A
possibilidade do fim da golden share é um aprofundamento da
privatização, pois liberaria os poucos itens estratégicos que poderiam sofrer
veto do governo. O desejo de eliminar a golden share levanta a
suspeita de que pode estar em movimento novos interesses por esses ativos,
dessa vez por grandes empresas internacionais que tornariam a Vale, a Embraer e
a IRB-Seguros meras filiais de seus negócios.
Neste
cenário, é melhor que a golden share seja mantida como um resquício
de soberania a ser utilizada em casos extremos. Estamos certos que essa não é
uma preocupação do governo Michel Temer, assim como também é necessário ter a
clareza de que a sua manutenção não altera em nada o curso de destruição dessas
empresas enquanto instrumentos de exercício de interesse do povo brasileiro e
de seus trabalhadores. Ruim com golden share, pior sem elas.
Essas
empresas deveriam passar por um amplo debate nacional em que fossem discutidos
desde o preço de suas privatizações até sua contribuição para o país, caso
tenha existido. A reestatização deve ser recolocada no cardápio de
possibilidades para o futuro, se assim for entendido como benéfico para o país,
e não apenas para os acionistas. Os rumos dessas empresas são importantes
demais para serem deixados ao sabor do mercado, o mesmo que colocou o mundo em
crise diversas vezes ao longo do século XX e, mais recentemente, em 2008,
quando provou suas fragilidades e foi salvo pelos recursos dos contribuintes.
Referências
Bibliográficas
PELA,
J. K. Origem e desenvolvimento das golden shares. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, 2008.
JOSÉ,
R. D. Golden-Shares: as empresas participadas e os privilégios do Estado
enquanto accionista minoritário, Coimbra Editora, 2004.
1# Sobre os autores: Herbert Claros é
vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região e
ex-membro do Conselho de Administração da Embraer (2015 e 2016), (herbert@sindmetalsjc.org.br) Marco
Antonio G. de Oliveira é doutor em Administração de Empresas pela PUC-SP e
professor da Universidade São Judas Tadeu, (professormarcogonsales@gmail.com)Renata
Belzunces dos Santos é economista e cientista social, técnica do DIEESE e
doutoranda no Prolam-USP (rebelsa@gmail.com)
2# O Tribunal de Contas da União abriu
processo sobre o tema em 30/08/2017, sob o número 025.285/2017-3, de relatoria
de José Múcio Monteiro. O acesso é restrito, de forma que não pode ser
consultado pelo público em geral.
3# http://www.valor.com.br/empresas/5109590/governo-quer-fim-de-golden-share
*Marco
Antonio Gonsales de Oliveira - Doutor em Administração (PUC-SP) e professor da
Universidade São Judas Tadeu