domingo, 14 de janeiro de 2018

FUNDOS ABUTRES: A PLUTOCRACIA CONTRA O POVO


O povo dos países pobres se mata trabalhando para financiar o desenvolvimento dos países ricos. O Sul financia o Norte, e especialmente, as classes dominam

Jean Ziegler* | Carta Maior

As pessoas nos países pobres se matam trabalhando para financiar o desenvolvimento dos países ricos. O Sul financia o Norte, e especialmente as classes dominantes dos países do Norte. O meio de dominação mais poderoso atualmente é a dívida. Warren Buffet, considerado pela revista estadunidense Forbes um dos homens mais ricos do mundo, declarou há alguns anos à CNN que “tudo bem, existe uma guerra de classes, mas é a minha classe a que a criou e a controla e a que ganhando”.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas começa com estas palavras: “nós, o povo das Nações Unidas”. Portanto, é da ONU a tarefa de proteger e garantir os interesses coletivos dos povos e o bem-estar universal – e mais precisamente dos Estados aliados que assinaram essa carta no dia 20 de junho de 1945, em San Francisco. Mas, atualmente, esses interesses estão sendo atacados impiedosamente pela classe dos plutocratas, a dos Warren Buffet. Tiraram dos Estados sua capacidade normativa e sua eficácia.

Meu mais recente combate, o que travei contra os fundos abutre nas Nações Unidas, ilustra esta realidade de forma paradigmática. Membro do Comitê Assessor do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2008, confesso não ser, nem por um instante, neutro em meu trabalho. Os direitos humanos são uma arma formidável nas mãos aqueles que querem mudar o mundo, aliviar os sofrimentos do outro, vencer os predadores. Progredir nesse combate requer formar alianças.

O povo dos países pobres se mata trabalhando para financiar o desenvolvimento dos países ricos. O Sul financia o Norte, e especialmente, as classes dominantes dos países do Norte. O meio de dominação mais poderoso atualmente é a dívida. Os fluxos de capitais Sul-Norte têm excedentes com relação aos fluxos Norte-Sul. Os chamados países “pobres” pagam anualmente às classes dirigentes dos países ricos muito mais dinheiro do que recebem delas, seja como investimentos, empréstimos, ajuda humanitária ou a chamada ajuda ao “desenvolvimento”. Os juros das dívidas mantêm as pessoas na escravidão e saqueia seus recursos.

Esta espoliação ainda por cima é agravada, durante estas últimas décadas, com a aparição dos fundos abutre, chamados assim pela forma como atuam, como aves de rapina. São fundos de investimentos especulativos, muitos deles registrados em paraísos fiscais e que são especializados na compra de dívidas que se vendem por baixo do seu valor nominal, com o fim de obter máximos benefícios. Estes fundos especulativos são propriedade de indivíduos extremamente endinheirados que se encontram entre os mais terríveis predadores do sistema capitalista. Conseguem dispor de botins de guerra de milhares de milhões de dólares. Comandam batalhões de advogados capazes de abrir procedimentos nos cinco continentes, durante dez ou quinze anos se for necessário.

Os fundos abutre matam. Vejamos um exemplo: em 2002, devido a uma sequia espantosa, a fome provocou a morte de dezenas de milhares de seres humanos em Malaui. Dos 11 milhões de habitantes desse país do sudeste da África, 7 milhões se encontravam gravemente subalimentados. O governo local era incapaz de ajudar as vítimas porque alguns meses antes teve que vender no mercado os estoques de reserva de milho (40 mil toneladas!) para pagar um fundo abutre. Esse fundo obteve de um tribunal britânico uma sentença contra o Estado de Malaui que o obrigava a pagar várias dezenas de milhões de dólares.

Martin Wolf, editorialista do Financial Times – e que não é realmente alguém que se pode chamar de revolucionário – escreveu o seguinte: “dar o nome de abutres a esses fundos é um insulto aos abutres, já que estes desempenham uma valiosa tarefa”. E ele tem razão, pois os abutres limpam os esqueletos dos animais mortos nas savanas, além de evitar, desse modo, a difusão de epidemias.

Sob o impulso da Argentina, uma das vítimas dos fundos abutre, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas pediu ao Comitê Assessor um informe que responde a esta dupla pergunta: “em que medida e de que maneira as atividades dos fundos abutre violam s direitos econômicos, sociais e culturais dos povos agredidos? Conhecidas as violações, que nova norma do direito internacional deveria ser criada para acabar com essas atividades?”.

Fui nomeado relator do comitê formado para responder a essa interrogação. Em minha vida, raras vezes trabalhei tanto como durante esses dois anos: 2014 e 2015. Entreguei meu informe no dia 15 de fevereiro de 2016, no qual dizia que as atividades dos fundos abutre violam por definição a regra da boa fé presente em praticamente todas as legislações do mundo. Como testemunho, o exemplo do código civil suíço: “todas as pessoas têm o dever de exercer seus direitos e de executar suas obrigações segundo as normas da boa fé. O abuso manifesto não está protegido pela lei”.

O Palácio das Nações em Genebra, e a ONU em geral, estão infestados de espiões. Todos os serviços secretos do mundo, sobretudo aqueles ligados às grandes potências, escutam as conversas melhor protegidas, copiam documentos, pagam funcionários e atuam sob a máscara da diplomacia credenciada. Nada mais normal, portanto, que ver os agentes dos serviços ocidentais informados da mais breve de minhas conversas e do desenvolvimento de todas as minhas sessões de trabalho.

A votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU estava prevista para a sessão de setembro de 2016. Na fortaleza da embaixada estadunidense de Pregny (cantão de Genebra), a algumas centenas de metros do Palácio das Nações, soou o alarme. Nossos inimigos eram perfeitamente conscientes de que se arriscavam a uma derrota. Conheciam minhas recomendações. Sabiam que, muito provavelmente, elas seriam aprovadas pelo Conselho.

Então, nossos inimigos mudaram de tática, abandonaram o terreno das Nações Unidas e apontaram a outra, ancestral, menos complicada e bem comprovada: a corrupção. As eleições na Argentina aconteceram em dezembro de 2015. O candidato designado pela coalizão de esquerda, que deveria prosseguir no combate contra os fundos abutre, era o favorito segundo todas as pesquisas, mas finalmente foi derrotado por um político local de direita, que gastou recursos astronômicos para ganhar. Assim que assumiu o cargo, o novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, declarou que pagaria sem atraso todas as demandas provenientes dos fundos abutre. E foi isso que ele fez!

A prosperidade dos fundos abutre ilustra de maneira caricaturesca o poder da plutocracia. A acumulação das maiores riquezas nas mãos de alguns poucos, e a consequente desigualdade derivada dessas operações, são possíveis graças à eliminação da normativa estatal, a abolição do controle aos bancos, a formação de monopólios privados, a proliferação de paraísos fiscais, etc. Essa desigualdade conduz inexoravelmente à destruição da relação de confiança entre os cidadãos e seus dirigentes. Quando os Estados se debilitam e os oligarcas sem fé nem lei governam o planeta, quando uma ordem criminal substitui o Estado de direito, quem ainda pode se aventurar à pretensão de proteger o bem público e o interesse geral?

Como escreveu o sociólogo alemão Jürgen Habermas: “no processo em que a política é jogada de lado e substituída pelo mercado, o Estado nacional perde progressivamente sua capacidade de arrecadar impostos, estimular o crescimento e garantir através dessas medidas as bases essenciais de sua legitimidade. Contudo, essa perda não é compensada por nenhum equivalente funcional. Diante do risco da fuga de capitais, os governos nacionais se comprometem a uma corrida louca rumo à desregulação, para a diminuição de custos, permitindo benefícios obscenos e diferenças inéditas entre os salários, o crescimento do desemprego e a marginação social de uma população pobre sempre em aumento. Na medida em que as condições sociais de uma ampla participação política são destruídas, as decisões democráticas, ainda adaptadas a um modo formalmente correto, perdem sua credibilidade”.

Habermas propõe, seguindo esse raciocínio, a questão da transferência da soberania: Existem instituições interestatais, capazes de tomar o lugar dos Estados debilitados e assumir a proteção do bem público? Habermas pensa sobretudo na Europa. Não estou de acordo com ele. Creio que é evidente a União Europeia (UE) não pode aspirar ao título de “democracia continental”.

Tal como está organizada atualmente – mesmo que as ambições de seus fundadores tenham sido outras – a UE é essencialmente um organismo de coordenação e de potenciação dos interesses das companhias transnacionais privadas. Numerosos sinais comprovam essa afirmação, começando pelo fato de que Comissão Europeia é presidida atualmente por Jean-Claude Junker, que assume seu papel de bom servidor do capital transnacional de forma até caricaturesca. Entre 2002 e 2010, o homem foi ao mesmo tempo primeiro-ministro e ministro da Fazenda de Luxemburgo, enquanto também exercia como presidente do Eurogrupo. Em suas funções, ele negociou 548 acordos fiscais secretos, os chamados tax rulings, com numerosas sociedades multinacionais bancárias, comerciais, industriais e de serviços. Esses tax rulings existem para favorecer a evasão fiscal.

Escrevo estas linhas enquanto centenas de milhares de refugiados fogem da carnificina das guerras da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Em 28 de julho de 1951 os Estados do mundo ratificaram a convenção relativa ao estatuto dos refugiados, chamada Convenção de Genebra, com a que se criou um novo direito humano universal: o direito de asilo. Quem quer que esteja sendo perseguido em seu país de origem por razões políticas, religiosas ou raciais tem o direito inalienável de atravessar as fronteiras e de apresentar um pedido de proteção e de asilo a um Estado estrangeiro. Porém, nos tempos atuais a União Europeia passou a ignorar esse direito. Se constroem muros para impedir que homens, mulheres e crianças fujam da tortura, da mutilação e da morte. Habermas está equivocado: a EU evidentemente não cumpre a função de guardiã interestatal do bem público.

O que acontece na ONU?

Para abordar essas questões, quero me colocar sob a autoridade de Antonio Gramsci e de seu “otimismo da vontade”. Certamente, a ONU não vai bem. Também é verdade que se deve conviver no dia-a-dia da entidade com personagens infernais, detestáveis ou malfeitores. E também há uma legião de taciturnos burocratas, parasitas com salários mais que generosos. Toda essa gente na sombra, timorata, eternamente indecisa. Entretanto, em seu seio também se encontram numerosas mulheres e homens respeitáveis, valentes e obstinados.

A ONU se mantém potencialmente como a única fonte viva da normalidade internacional. Em suas predicações, o religioso francês Henri Lacordaire gostava de citar essa evidencia, enunciada no contrato social de Jean-Jacques Rousseau: “entre o mais fraco e mais forte, é a liberdade que oprime e a lei a que liberta”. Sim, os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos sempre serão o horizonte de nossa história, a utopia que guia nossos passos.

Algumas palavras finais sobre os fundos abutre. O libertador cubano José Martí foi quem chegou à seguinte constatação: “a verdade, uma vez desperta, não volta a dormir jamais”. Paul Singer, que encabeça vários fundos abutre, certamente ganhou a batalha contra o povo argentino e contra muitos outros povos da África, da Ásia e do Caribe. Mas ele e seus semelhantes foram tirados das sombras, e colocados em evidência. Criou-se consciência. Um dia, outros levarão esse combate mais longe.

*Jean Ziegler é sociólogo suíço e membro do Comitê Assessor do Conselho de Direitos Humanos da ONU

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