Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Era uma vez o Entrudo. Este é um
texto para as pessoas que odeiam o Carnaval. Também para aqueles que o amam.
Não para aquelas pessoas que, como eu, lhe são indiferentes, olhando-o com
enfado ou com a cínica bondade de quem sabe transportar um feriado na bainha do
pierrot, colombina ou arlequim. Os três últimos dias foram passados em
desfiles, ribomba que há festa, festividades alegóricas, mistura de cores e
trapos capaz de fazer inveja à cena mais turística de um filme promocional a
tintas. O que é mais espantoso é assistir ao contraste de tanta gente a quente
e frio, como aquelas duas bolas de gelado do início da carta das sobremesas,
aqui servido com uma cobertura hipnótica de plumas, lantejoulas e penas. O
público confunde-se com mirones de gabardina a céu aberto.
Se há algo fascinante é ver nas
ruas espectadores de sobretudo e cachecol a animar sambadores com pele eriçada
em suores frios a curtir como demónios sem escola. E o empenho, o trabalho de
grupo meses a fio, as juntas e as colectividades, as comissões de serviço, as
noites sem dormir e a ocupação de tempos livres. Notável. Aquela notícia que
surge sempre como um lembrete de higienização contra o cinzentismo: o Carnaval,
para alguns, é a prova de que não podemos deixar morrer a criança que existe dentro
de nós. Um fora do espaço, outro fora do tempo. Olho para o verde-amarelo
Carnaval português e sinto-o tão moribundo como o teatro de revista.
A questão climatérica importa.
Até ao momento em que alguém me acorde para um sambódromo inundado de kispos
anorak, terei sempre no meu pensamento que somos nós e a nossa tendência para
importar coqueiros para o cume da serra da Estrela. Não aspiro pelo dia em que
o Rio de Janeiro se encha de máscaras venezianas ou pela madrugada em que o
Recife se engalane com um bloco de Galo em vestes romanas, momento em que o
"adeus à carne" trairá o seu estupendo e feérico Carnaval. Aspiro
pela tarde em que a nossa apropriação do Carnaval brasileiro não saia do Parque
Mayer, desafiando o frio de Fevereiro.
A animação é, por si só, um
sentimento maravilhoso. Como aquelas pessoas que, ao descrever o estado de
alguém em convalescença, se referem ao doente com uma condescendência
esperançosa: "nem bem, nem mal mas... animado". É um pouco como a
palavra "encantadora", uma mistura de simpatia e tédio. Na cidade
maravilhosa da Mealhada, a nossa "Las Vegas dos Leitões", a chuva
cancelou o Carnaval da tarde de domingo. Cheia de encantos mil.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
* Músico e jurista
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