Alfredo Maia | AbrilAbril |
opinião
O diabo está nos detalhes. Em
Lisboa ou na Síria. Quando os media e «especialistas» insistem em
designar como «rebeldes» e «opositores» grupos terroristas contra os quais, se
ocupassem a ínfima parte do seu território, qualquer estado civilizado moveria
céu e terra, os pormenores tornam-se «pormaiores». É do diabo.
Nos últimos dias, forças do
Exército Árabe Sírio alcançaram significativos avanços em Ghouta Oriental, nos
arreadores da capital, Damasco, reconquistando Douma e outras localidades
importantes e dividindo o enclave, que estava controlado sobretudo por grupos
terroristas, que muitos media e «especialistas» insistem em designar, de forma
simplista, como «rebeldes» e «opositores» ao que sistematicamente classificam
como «regime de Bashar al-Assad».
A utilização de conceitos
genéricos e imprecisos – sistemática nalguns meios de informação estrangeiros e
portugueses – para referir as forças «rebeldes» é um dos aspectos que mais
contribui para confundir o público, redundando num ardil, como se fosse
possível colocá-los todos no mesmo saco da «legitimidade» da oposição ao
Governo da República Árabe da Síria[FN]Vale a pena ler, sobre a
responsabilidade dos media, o artigo de Sharmine Narwani «Comment le discours médiatique a mis à mort
le peuple syrien», em Arrêt sur Info(03/03/2016).
Pode ser por desconhecimento;
pode ser por falta de tempo para completar, de forma informada, despachos de
agências noticiosas, tantas vezes redutores quanto à identificação das forças
em presença; como pode tratar-se de falta de espaço.
Mas é necessário que os media,
que servem aos leitores, aos ouvintes e aos espectadores o «produto final» da
informação sobre os acontecimentos, não deixem de fornecer-lhes elementos
essenciais que lhes permitam formular o seu próprio juízo sobre tais factos e o
respectivo contexto1.
É para isso que serve o Jornalismo.
Pouco ajudam à formação de uma
opinião pública realmente informada e apta alguns colunistas – frequentes ou
ocasionais – que, acobertados sob as vestes de uma suposta independência
científica, como «especialistas» ou «investigadores», se limitam a nutrir com
preconceitos a recorrente narrativa da diabolização do Governo sírio,
furtando-se ao especial rigor que lhes é exigível, por as intervenções no
espaço público que lhes são concedidas levarem a chancela da credibilidade
académica2.
Tão lestos a citar as cifras do
chamado Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), única e geralmente
pouco ou nada contrastada fonte de informação dos media ocidentais quanto aos
números de vítimas, muitos meios de informação omitem, com extrema frequência,
as referências específicas aos concretos grupos alvejados pelas forças sírias
feitas pelo próprio OSDH, sobejamente insuspeito de «ligações» ao «regime de
Assad».
No meio de uma das suas mais
recentes «notícias» sobre o desenrolar das operações militares em Ghouta
Oriental, o
OSDH precisa, com efeito, que os combates se travavam entre as forças
sírias e os grupos terroristas Jaïch al-Islam3 (o
Exército do Islão, em árabe) e Faylaq al-Rahmane (ou Legião do
Todo-Misericordioso).
Como as respectivas designações
indiciam, trata-se de grupos de inspiração confessional, conforme se pode ler
numa recente «descodificação» do jornal francês Le Figaro, mais
que insuspeito de qualquer simpatia por Bashar al-Assad ou o pelo Governo
sírio.
O primeiro é um grupo salafita,
uma corrente «rigorosa» do islão sunita com uma interpretação estritamente
literal do Corão com ligação à Frente al-Nusra, a filial síria da al-Qaeda,
sendo apoiada pela Arábia Saudita. O segundo, apoiado pela Turquia e pelo
Qatar, é outro grupo islamita salafita, próximo da Irmandade Muçulmana e com
ligações à Frente al-Nusra, que o Centro Russo para a Reconciliação Síria exigiu, no
domingo, sejam rompidas como condição para que possa partir de Ghouta.
Os seus propósitos estão muito
longe de perseguir os simples objectivos «democráticos» de destituir o Governo
da república laica que é a Síria, alvo de uma longa e tenaz ofensiva
internacional por parte das potências imperialistas, que armaram, treinaram e
financiaram uma complexa constelação de grupos armados, que se confundem – e
por vezes digladiam – por interesses e objectivos diversos, mas que convergem
num alvo comum a abater: Bashar al-Assad.
Outro elemento de primordial
importância, mas omitido com frequência nas notícias sobre a situação em Ghouta
Oriental, é o facto de este enclave, onde 400 mil habitantes servem de escudo
humano aos terroristas, ser uma área de lançamento de constantes ataques
«rebeldes» de contra zonas da capital da Síria, Damasco, designadamente com
recurso a obuses, causando significativas baixas, mas que os media ocidentais
pouco ou nada valorizam e tantas vezes omitem.
Na narrativa mediática dos
acontecimentos na região, o que sobressai são «os ataques» do «regime sírio»
sobre o enclave, um número elevado de vítimas civis (muito raramente há dados
sobre baixas militares) expresso em cifras, extraordinária e surpreendentemente
precisas, publicitadas dia-a-dia, quase hora-a-hora, pelo chamado OSDH, a fazer
corar de inveja os serviços de comunicação de qualquer país ocidental, apesar
do grau superlativo da devastação e da falta de recursos e meios básicos na
região que as imagens mostram4.
Em vésperas do sétimo aniversário
do início da «guerra civil», que os media ocidentais estão a assinalar com
estatísticas avassaladoras e adjectivos demolidores, valeria a pena olhar com
olhos de reflectir para pormenores essenciais que tantas vezes e tão convenientemente
omitem.
É bem provável que o balanço não
seja favorável a quem omite pormaioresafinal tão decisivos para se
compreender o que é realmente uma tragédia, mas que tem causas e explicações
que importa ter presente. É que a simplificação é uma das mais perigosas
armadilhas do Jornalismo e mina a credibilidade da informação.
Notas:
1.Veja-se
a notícia publicada ontem, 14/03/2018, no New York Times, cujo primeiro headline era: «Rebel snipers trap
civilians in Syrian enclave, U.N. officer says») e a versão final
editada: «Snipers Slam Shut an Escape Hatch From a Syrian Hell».
2.Por
exemplo, num recente artigo no Público (9 de Março), uma investigadora do Instituto Português de Relações
Internacionais (IPRI), da Universidade Nova de Lisboa, referiu-se sempre
aos «múltiplos movimentos de oposição» e aos «movimentos de resistência», sem
nunca os identificar ou caracterizar, ainda que sumariamente. A não ser para
responsabilizar «os regimes sírio e russo» pela imputação do classificativo
«terroristas» ao rótulo de «insurgentes» que a autora assume...
3.Neste
caso e no seguinte, usa-se a grafia francesa.
4.Em
contrapartida, é impossível encontrar nos media ocidentais referência
aos protestos dos habitantes de Ghouta Oriental contra os ocupantes jihadistas.
Veja-se, por exemplo, «Mass protests against militants take place in East Ghouta»,
em Al-Masdar News (15/03/2018) e o vídeo seguinte, com o mesmo tema.
Foto: Um homem empurra um carro
de mão por entre os prédios danificados. Cidade de Douma, Ghouta Oriental,
Damasco, Síria, 5 de Matrço de 2018. CréditosBassam Khabieh/REUTERS
Sem comentários:
Enviar um comentário