quinta-feira, 22 de março de 2018

SORRIA, ESTÁ A SER MANIPULADO


Pedro Ivo Carvalho* | Jornal de Notícias | opinião

Provavelmente, já tropeçou, enquanto percorre o feed do Facebook, na imagem retocada de um familiar ou amigo subitamente transformado numa estrela de cinema. Já respondeu a um ou mais questionários inócuos sobre assuntos de lana-caprina. Já se sentiu tentado a descobrir a sua aparência daqui a 50 anos. Provavelmente, já interagiu com terceiros sobre tais conteúdos. Mas o que provavelmente desconhece é que essas "inocentes" aplicações são um poderoso instrumento para dissecar o seu perfil, usando as informações para os mais variados fins - comerciais e políticos.

A revelação de que a Cambridge Analytica, uma empresa de tratamento de dados do Reino Unido, terá usado de forma ilegal informação de mais de 50 milhões de contas do Facebook para manipular a opinião pública e ajudar a eleger Donald Trump na presidência dos Estados Unidos da América (além de poder ter tido um papel determinante no desfecho do Brexit) constitui, talvez, o maior ataque à credibilidade (à que ainda resta, pelo menos) da rede social que dá guarida ao melhor e pior do Mundo. A tal ponto que o movimento #deletefacebook rapidamente se propagou, com múltiplos apelos aos utilizadores para se desligarem. "Se tu não pagas pelo produto, tu és o produto".

A verdadeira extensão da descoberta ainda está por assimilar, mas há, para já, um ganho óbvio para a democracia: o poder político acordou finalmente para o problema. A tal ponto que o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, instou o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, a prestar contas aos eurodeputados. Ora, de que forma pode atuar esse poder político? Legislando, proibindo, impondo sanções milionárias? Pisando as fronteiras escorregadias do livre-arbítrio e da liberdade de expressão e informação? E como é que se "pune" uma rede que censura a imagem de uma estatueta com mais de 25 mil anos por causa de dois mamilos, mas é incapaz de travar a disseminação do discurso do ódio que esteve na base do genocídio de milhares de rohingyas em Myanmar?

À medida que se percebe que os 50 milhões de usuários cujas contas foram violadas podem, na realidade, ser centenas de milhões um pouco por todo o Mundo, ganham força as suspeitas da existência de um "mercado negro" de dados do Facebook usado sabe-se lá por quem. Se pensarmos bem, não há forma mais eficaz de manipulação: conduzir a vítima a entregar-nos, gratuita e voluntariamente, toda a informação que define a sua personalidade para depois a podermos reorientar na exata medida dos nossos propósitos e das suas fraquezas. Fazer um "like" na imagem de um gato fofinho não define o que somos. Mas pode ajudar a definir aquilo que os outros querem que sejamos. Porque o produto somos nós. O alvo somos nós. Agora, ninguém pode dizer que não foi avisado.

*Subdiretor do JN

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