domingo, 29 de abril de 2018

LUANDA, "TREME-TREME"


Crónica dum momento que passa!

Martinho Júnior | Luanda 

1- Muitos dos que hoje atiram pedras ao Presidente cessante José Eduardo dos Santos, foram-no aplaudindo ao longo de dezenas de anos...

Ao longo dos últimos anos, por outro lado, quando havia que o defender face aos que se propunham a um caminho que desembocaria em mais uma “revolução colorida”, ou “primavera árabe” ao sabor dos desígnios do império da hegemonia unipolar, poucos o foram fazendo, apesar das relativas evidências das filosofias de Gene Sharp “no terreno”!

Foram os tempos em que a moeda neoliberal apresentava dum lado a face dos “revús” e do outro a dos “novos-ricos” impantes de suas ciências de apropriação e “mercado”, numa manipulação que ocupava todo o espaço sócio-político, impondo a falácia de suas próprias contradições…

2- Eu e meus camaradas da Segurança do Estado, fomos julgados e condenados em 1986 por causa dum "golpe de estado sem efusão de sangue" que nunca existiu (até hoje aguarda-se quem assuma a “chefia” desse surrealista acontecimento).

A única implicação dos oficiais operativos julgados e condenados, era a de defender a independência e a soberania da República Popular de Angola em todas as frentes que lhes foi possível, em tempo de guerra e com a intensidade dos que professavam “cabeça fria, mãos limpas e coração ardente” !

Naquela altura, alguém se pronunciou contra uma decisão não só injusta, mas histórica, que reverteria em profundas transformações no país, entre elas o fim do Partido do Trabalho, das FAPLA e a introdução ao ciclo neoliberal no seguimento do Acordo de Bicesse, que começaria em 1992 com a guerra dos diamantes de sangue e teria sequência na terapia neoliberal que se inaugurou a 26 de Fevereiro de 2002?...

Se houve alguém, força alguma, ou voz pública alguma teve, capaz de ao menos ir esclarecendo o povo angolano dos factos históricos que iam ocorrendo, em catadupa, uns atrás dos outros, num ambiente internacional em que a hegemonia devassava todas as transversalidades humanas!

Angola venceu o "apartheid", cumprindo com a orientação do Presidente António Agostinho Neto, de que “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul está a continuação da nossa luta”, mas começou a soçobrar em relação às implicações dos impactos neoliberais de que hoje as pessoas ganham alguma consciência apesar do consumismo, todavia foi mesmo assim que se alcançou uma paz que, para ser de justiça social, muita cultura de inteligência se terá de incrementar e levar por diante com mobilização humana, clarividência e capacidade!

"Dos fracos não reza a história", segundo diz um velho ditado...

Todavia, em relação aos fortes, há que garantir em consciência sua profunda identidade para com o seu povo, para com a humanidade e para com um respeito à Mãe Terra que tarda em surgir como um acto civilizacional imprescindível!

3- O fenómeno do aquecimento global, o fim de cada vez mais espécies vegetais e animais, assim como a degradação ambiental do planeta, hoje não são segredos para ninguém…

Todavia em Luanda continua-se a proceder como se esse fenómeno agravado com a superpopulação intempestiva da capital angolana provocada sobretudo pelas sucessivas guerras, (1/3 da população de Angola, ao nível de mais de 8 milhões de habitantes), fosse irrelevante, ou um fenómeno longínquo.

Há poucos dias o engenheiro Resende de Oliveira referiu-se a um desastre arquitectónico, mas a cidade, em sua enorme área cosmopolita, (sobre)vive já à beira dum desastre ambiental.

A “requalificação” da capital sob os impactos do capitalismo neoliberal, tem de facto sido um pretexto para se aprofundar o“apartheid social”: os endinheirados do país, saídos das provetas desse “modelo” de capitalismo ávido de lucros fáceis e especulativos, para “lavar” o seu malparado dinheiro, ou tirar partido das envolvências com “parceiros internacionais” fautores de desequilíbrios de toda a ordem (e desordem), vão investindo em património à beira-mar, embalados pela calma ondulação propiciada pela Corrente Fria de Benguela e pelas tão disputadas brisas oceânicas que sopram do sudoeste, contribuindo para expulsar os pobres, muitos deles refugiados das guerras passadas, dessas paradisíacas paragens…

Os pobres, calejados em inusitadas migrações, vão para o interior da planície, cada vez mais longe do litoral, instalando-se em recentes comunidades, mas em regiões cada vez mais tórridas, entre o casco urbano de Luanda e o forno do Dondo.

“Requalificado” o Morro da Fortaleza onde está o Museu Militar e a Bandeira Monumento, com a instalação dum Shopping que caracteriza o poder e a insensibilidade dum “umbigo grande” de última hora, é a vez de demolirem o edifício fronteiro conhecido por “Treme-Treme”, que no entender de muitos, não tem oportunidade para reabilitação, por que “estraga a imagem” do local.

Outros dizem apressadamente: o “Treme-treme” está superlotado e em risco de desabar… como se fosse o único em Luanda nessas condições (os outros “salvam-se” por que estão fora de áreas sujeitas a intensas cobiças).

Depois, sabem, está superlotado de indigentes e isso é uma afectação inconcebível para uma Marginal “espelho” do Dubai.

Demolindo-o, muito provavelmente erguer-se-á mais outra torre de vidro, ou o seu esqueleto (a avidez não chega para tudo e para muitos nem sequer acabou por dar efectivamente lucro, pois os fluxos de dinheiro acabaram), como a que está mesmo ao lado coroando a Marginal 4 de fevereiro, ainda por habitar.

Na baixa haverá mais espaço para os ratos, por que não há humanos que tenham finanças suficientes para alugar apartamentos em tais monstros de cimento e vidro, nem para pagar o exorbitante consumo de energia a que obrigam as suas estruturas, típicas desse anunciado Dubai.

Os desalojados em “requalificação” irão para o Zango 0, ou para o quilómetro 44, onde uma cidade sem parques nem zonas verdes, se espalha sob o intenso calor da planície que vai até ao Dondo, 200 km para o interior.

Decerto que muitos deles irão engrossar amiúde os fluxos humanos que hoje acorrem palúdicos e febris aos hospitais e clínicas, pois a prevenção em relação aos fenómenos do clima, ou não existe, ou é débil, desembocando num desastre com consequências que não se conseguem atenuar.

4- À situação propícia ao desastre ambiental, em resultado duma “requalificação” que nesses termos é um decifrável “apartheid social”, o capitalismo neoliberal trouxe a edificação sem precedentes de condomínios.

Esses condomínios, muitos deles de altos muros, levam os “felizes contemplados”, os novos condes e condessas da “ocasião que faz o ladrão”, a abstraírem-se do resto do casco urbano, como se estivessem embarcadiços, a navegar de ilha em ilha, fugindo à perversidade do calor e da pobreza circundante “como o diabo foge da cruz”!

Muitos desses condomínios foram sendo instalados também à beira-mar, a sul de Luanda, resultando de desalojamentos apropriados, disputando a panorâmica, o marulhar das águas, ou as brisas do sudoeste, algo que afinal também se compra e tem o seu elevado preço… em Luanda já nem o ar que se respira é grátis!

Foi com eles que começou o “apartheid social” e se tem propiciado aos “novos-ricos” a sua soberba e a sua arrogância para com o resto da sociedade e para com o povo (uma palavra que se foi tornando abolida do vocabulário socio-político angolano).

Agora as justificações vão servindo para tudo e o que é facto é que com “requalificações” do género, privilegiando uns poucos e sacrificando a esmagadora maioria,  “de boas intenções está este inferno cheio”!

É este o “dia-a-dia na cidade” e, alienada pelos desencontrados espelhos em que tão mal se reflete, a esmagadora maioria continua incapaz de, num quadro dum projecto nacional condigno, partir para uma sustentável qualidade de vida que todo o povo angolano merece!

De “apartheid social” em “apartheid social”, Luanda “treme-treme” sem soluções, esgotada, palúdica, dobrada pelos rins sob a afectação da febre tifóide, por vezes afectada de agudas diarreias, ou de doenças pulmonares sazonais, sem dúvida e sem remédio à beira dum desastre ambiental!

Martinho Júnior - Luanda, 29 de Abril de 2018

Foto do edifício “Treme-treme” na contagem acelerada para o seu próximo fim, proverbial enquanto mensagem bíblica: “foram muitos os chamados, mas são cada vez menos os escolhidos”…

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