Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
Foi em dezembro de 2015 que pela
primeira vez foram divulgadas imagens de interrogatórios judiciais. Eram do
processo dos Vistos Gold, então ainda em segredo de justiça, e dos
interrogatórios do ex ministro da administração interna de Passos, Miguel Macedo,
e do ex diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras Manuel Palos. Tanto
Palos como Macedo apresentaram queixa contra a divulgação efetuada no canal de
televisão do Correio da Manhã. A de Palos foi arquivada; a de Macedo continua
em investigação.
Foram poucas, à época, as reações ao sucedido. O que é estranho, não só por ser algo de
inédito -- a maioria não saberia ainda sequer que as inquirições podiam ser
gravados em vídeo - mas sobretudo porque, além de mais uma violação da lei
pelos media (facto para o qual nos fomos insensibilizando pela repetição
impune), se tratou de um salto qualitativo na transformação da justiça em
fornecedora de conteúdos voyeurísticos e comerciais e na anulação dos direitos
das pessoas que por qualquer razão são levadas perante ela. Seria doravante
assim em todos os casos mediáticos? Que tencionava a justiça fazer em relação a
tal? E, antes disso: aquelas pessoas sabiam que estavam a ser filmadas e
tinham-no autorizado?
Nada disso se perguntou, de nada
disso se falou. Até agora, quando primeiro a SIC e depois a CMTV decidiram
fazer um festival com emissões de interrogatórios de arguidos e inquirição de
testemunhas do processo Marquês, alegando "interesse público" para
cometer o crime de desobediência previsto no artigo 88º do CPP ("Não é
autorizada a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à
prática de qualquer acto processual (...) salvo se a autoridade judiciária
(...) por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão
ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se
opuser"). Vimos agora mais gente a pronunciar-se sobre as divulgações - a
favor e contra, incluindo-se, neste último caso, os comunicados condenatórios
da Ordem dos Advogados e do respetivo Conselho Distrital de Lisboa. Mas, até ao
momento em que escrevo este texto, não vi qualquer questionamento sobre a mera
existência daqueles vídeos e seu enquadramento legal e constitucional.
É de março de 2013 a alteração ao
Código de Processo Penal na qual se fala da gravação vídeo de inquirições. As
instalações lisboetas do Departamento Central de Investigação e Ação Penal
terão sido as primeiras a ganhar essa funcionalidade, que continua a não estar
disponível noutros departamentos judiciais e que nem sempre é usada no próprio
DCIAP. E que diz o CPP? No artigo 141º ("Primeiro interrogatório judicial
de arguido detido"), que "o interrogatório do arguido é efetuado, em
regra, através de registo áudio ou audiovisual", e no artigo 101º (Registo
e transcrição) que "nos casos legalmente previstos [o funcionário
judicial] pode proceder à gravação áudio ou audiovisual da tomada de
declarações e decisões verbalmente proferidas." Não vi no CPP qualquer
referência à obrigação, por parte das autoridades judiciárias, de esclarecerem
os inquiridos sobre o modo de registo das suas declarações; muito menos vi
qualquer alusão à possibilidade de estes, uma vez que a lei diz "áudio ou
vídeo", poderem optar por uma das hipóteses, ou seja, recusarem ser
filmados. Também não vislumbrei referência ao modo como as declarações das
testemunhas devem ser fixadas e se o regime dos arguidos se lhes aplica.
Não encontrando reflexões ou
pareceres publicados sobre o assunto, consultei, com garantia de
confidencialidade, vários juristas: advogados, procuradores, juízes,
constitucionalistas. Uma das conclusões que tirei é que é uma matéria pouco
refletida, até desconhecida. E chocou-me constatar que alguns dos consultados
não veem problema na filmagem compulsória, sem aviso, das pessoas presentes
ante a justiça (e seus advogados), não colocando a possibilidade de tal
prática, a existir, ser inconstitucional ou pelo menos merecer um exame no que
respeita à constitucionalidade. Houve até quem me dissesse que as autoridades
judiciárias não têm de referir a filmagem pois esta consta na lei. Ao
contrário, outros não têm dúvidas sobre a obrigatoriedade de a autoridades
alertarem arguidos e testemunhas para o registo vídeo; e entre esses há quem
considere que os inquiridos, com base na garantia constitucional do direito à
imagem, têm o direito de recusá-lo.
Um advogado chega mesmo a frisar
que, se a ideia das filmagens é poderem ser usadas em tribunal, reconhecendo a
lei aos arguidos até o direito ao silêncio não pode deixar de lhes reconhecer o
direito de influenciar o juiz com a sua postura e aspeto. Este jurista
considera até que para haver inteira lealdade processual os inquiridores também
deveriam ser filmados, já que pode haver reações de inquiridos a algo que não
estamos a ver e para as julgar é preciso ter acesso a todo o contexto.
Mas, estará quem me lê a
perguntar, as pessoas não veem a câmara? Falei com inquiridos no DCIAP e
advogados que os acompanharam: se entre os segundos houve quem me garantisse
saber que estava a ser filmado e que até tinha detetado a câmara, nos dois
grupos vários não sabiam, não foram avisados e não viram qualquer câmara.
Aliás, na minha qualidade de testemunha do processo Marquês posso certificar
que na sala onde fui inquirida nem eu nem o meu representante legal vimos
qualquer câmara, não tendo sido alertados para a sua existência ou para a
gravação vídeo. Enquanto que o microfone para o áudio estava em cima da mesa --
julgo até que me perguntaram se não me opunha à gravação -, a filmagem não foi
referida.
Há quem considere que ocultar a
câmara e não referir a filmagem visa garantir que os inquiridos não ficam
"inibidos": com uma câmara à frente as pessoas mudam de
comportamento. A prossecução dos interesses da justiça - e portanto do
"bem comum" -- justificaria assim filmar às escondidas. Custa a crer,
mas se não foi esse o objetivo na forma como as câmaras foram colocadas (e as
imagens divulgadas evidenciam a filmagem em ângulos estranhos), então qual?
O direito à imagem está
consagrado no artigo 26º da Constituição. É por esse motivo que em qualquer
sítio onde haja câmaras - centro comercial, elevador, local de trabalho - há
advertência, através de letreiros. No caso, não para que se possam opor, mas
para que possam adequar a sua postura ao facto. Se assim é num elevador, tem de
ser assim na casa da justiça -- a instituição, recorde-se, que existe para
assegurar os direitos e deveres plasmados nas leis; para nos defender, como
comunidade e indivíduos, de crimes e abusos. No quadro legal de um Estado de
Direito democrático, não há qualquer justificação para que a justiça filme
pessoas com câmara oculta. E, a partir do momento em que, como se constata,
essas imagens são divulgadas e a justiça nada faz para o impedir, limitando-se,
através da Procuradora Geral da República, a afirmar-se
"desagradada", como se não fosse sua responsabilidade fazer cumprir a
lei e a Constituição, deve ser óbvio que doravante qualquer arguido ou
testemunha pode recusar ser filmado, e que as filmagens efetuadas sem
autorização devem ser consideradas nulas. A participação em reality shows
costuma ser voluntária - e paga.
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