Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
A Cultura, essa coisa das artes
num país miseravelmente assimétrico. Tantas vezes encarada como o reflexo menor
do pão para a boca, como algo que se alimenta por autojustificação
contorcionista a fazer caminho directo dos olhos para o umbigo. Com a sua barriguinha
nova-rica e macrocéfala, o centralismo continua a olhar para a Cultura como o
parente pobre das dotações, sem cuidar da criação em diversidade, da autoria e
da interpretação porque do respeito só sabem da écharpe, sempre o seu pano de
fundo para o jugo saloio que intimamente acha que o território só permite a
coesão à medida da dimensão da metrópole onde mora ou que tem por vizinha. Até
na Cultura, para essas almas uma espécie de segunda vida para um bem de segunda
espécie, partimos o país em tranches ceifadas à distância. Sem proximidade ou
conhecimento da realidade, com a displicência e a arrogância do costume. Às
vezes com sensação de gozo. Pela incompetência, desinvestimento e incompreensão
que o poder político veta os seus agentes culturais se percebe a dimensão do
desprezo do país pelo seu futuro e identidade.
O reforço orçamental já anunciado
pelo Ministério da Cultura é insuficiente. É insustentável não recuperar os
valores de financiamento de 2009. Os critérios de avaliação de quem decide à distância
têm de mudar. A Cultura não pode continuar a ser uma arma de reforço da falta
de coesão territorial (vejam-se as enormes disparidades regionais nos apoios ao
Teatro, à Música ou às Artes Visuais, onde a Área Metropolitana de Lisboa
continua a receber assustadora e incompreensivelmente mais per capita).
Financiamento zero no Porto para o TEP, FIMP, FITEI, Seiva Trupe, entre tantos
outros. Em Évora, Coimbra, Setúbal... Tudo fora dos prazos e do tempo.
Figuremos mandrágoras na Ponte das Barcas. O debate no Rivoli em boa hora
convocado por Rui Moreira, fruto da insatisfação que grassa unanimemente no
país, abre uma porta de louvor à arte que nenhum artista pode trair ou deixar
amolecer. Mesmo que a arte seja já a seguir, é tempo agora de exigir o óbvio.
No livro de Woody Allen, título
destas linhas, somos confrontados com a Morte em personagem que, indo ao
encontro da sua próxima vítima, se depara com um jogador exímio em lhe ganhar
mais uns dias de vida. Quando a dotação orçamental à Cultura resultante do
Programa de Apoio Sustentado 2018-2021 da Direcção-Geral das Artes está
infectada pela crónica insuficiência de verbas e por critérios decisórios
absurdos - que só têm a enorme virtude de tornar evidente a sua brutal
incapacidade -, pergunto-me se caberá aos artistas portugueses negociar mais
umas verbas, cenouras maiores num simulacro de redistribuição ou partir, desde
já, para outro patamar de exigência e justiça que, de uma vez por todas, deixe
de negociar dias com a Morte.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
* Músico e jurista
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