Martinho Júnior | Luanda
Se o segundo Presidente angolano,
José Eduardo dos Santos, a 4 de Abril de 2002, abriu as portas da paz em África
(nos Grandes Lagos, nos Congos e em Angola), apesar das adversidades consumadas
com o capitalismo neoliberal enquanto esteira de longo raio-de-acção do império
da hegemonia unipolar, capaz de dar a volta até pelos “lobbies” disseminados
pela China-Hong Kong e Macau, a partir da Conferência do Fundo Azul sobre a
Bacia do Congo, em Brazzaville e a 29 de Abril de 2018, o terceiro Presidente
angolano, João Lourenço, na busca incessante da consolidação da paz em África,
abriu “o século de caça a todos fantasmas”, velhos e novos, do Rei
Leopoldo…
Há contudo um crescendo de riscos
e desafios que se adivinham no horizonte!...
Serão mesmo caçados todos
os “fantasmas”?
EM SAUDAÇÃO AO 25 DE MAIO, DIA DE
ÁFRICA
1- As potências coloniais só com
uma perspectiva adaptada à revolução industrial, tiveram capacidade de
penetração, reconhecimento e interpretação físico-geográfica e antropológica
do “opaco” continente africano, em função de sociedades de geografia
que se encarregaram dos primeiros estudos bem no miolo interior do continente,
entre as bacias do Congo, do Zambeze e do Nilo, assim como nos Grandes Lagos,
envolvendo-se pouco a pouco nos enredos coloniais “terreno adentro”.
Essas sociedades de geografia são
contemporâneas à fundação dos primeiros “think tanks” elitistas e
percursores da globalização, por que desde logo acompanharam a expressão do
império colonial britânico.
É evidente que essa expressão
acompanhou as linhas e os conteúdos dum domínio colonial ávido de recursos
naturais, antropocêntrico e disposto a oprimir em nome da “civilização
ocidental”, pois a Europa não possuía as matérias-primas, nas quantidades que
interessava à revolução industrial e os povos africanos eram um manancial, por
outro lado, de mão-de-obra barata, embrutecida, ou até mesmo escrava.
Antes deles, cerca de um século
antes, funantes cristão-novos, moçárabes e árabes, haviam já cruzado nos mesmos
lugares e até unido interesses, negócios e comércio, mas obviamente sem o
suporte, nem a projecção que só a revolução industrial poderia catapultar e
dinamizar na direcção do “climax” que foi a Conferência de
Berlim, pelo que só há relativamente pouco tempo suas trajectórias têm sido
melhor investigadas e conhecidas!...
Mesmo entre as potências
coloniais havia contradições que estiveram na base aliás da IIª Guerra Mundial:
uma coisa foi as que absorveram a revolução industrial, que está aliás na base
da formação da aristocracia financeira mundial (por exemplo a Grã-Bretanha ou a
França, elas próprias decorrentes das guerras napoleónicas), outra coisa eram
potências periféricas da revolução industrial, como Portugal, até por que os
impactos na utilização das máquinas, nessas periferias ocorreram de forma
limitada e localizada, impedindo-as de maiores avanços tecnológicos, o que se
reflectiu nos termos do exercício do seu poder extracontinental, bem como na
capacidade de seus instrumentos de poder e recursos.
As periferias foram mantidas fora
das grandes articulações das casas bancárias que estão na base da aristocracia
financeira mundial e por isso, uma potência colonial como Portugal impedida de
implantar colónias no miolo do continente africano e até de ter acesso fulcral
(apenas periférico) à bacia do Congo!
A manobra de exploração com o
suporte das sociedades de geografia motivadas pela revolução industrial e suas
poderosas casas bancárias, levou desde logo em linha de conta as pérolas
hidrográficas africanas (Congo, Zambeze, Grandes Lagos e Nilo) o que é um sinal
evidente que a “civilização ocidental” valorizava a água interior e o
espaço vital do continente africano, como a chave para a conquista colonial do
continente e para dividir de modo a que os africanos tivessem que lidar sempre
com dificuldades de toda a ordem, mesmo que alguma vez se conseguissem libertar
do jugo colonial.
Essa é a raiz de, quando abordam
a questão da água interior do continente e do espaço vital, os componentes
da “civilização ocidental”, a fim de esbater essa prioridade no
reconhecimento de África, frequentemente alegarem que as disputas sobre a água
em África, ocorrerão nas “guerras do futuro”, quando isso teve tão grandes
implicações no desvendar dos segredos e na ocupação do interior do
continente-berço da humanidade, nos vinte anos finais do seculo XIX.
2- O Rei Leopoldo II da Bélgica,
mercenário nessas disputas, financiou a Associação Internacional Africana (que
vigorou de 1877 a 1908).
Essa associação tinha propósitos
científicos e filantrópicos, (a ciência tornou-se indispensável para a
revolução industrial e a filantropia era já um processo cínico que acompanhava
o domínio, a opressão e burilava o verniz da conveniência para o exercício dos
próprios poderes coloniais), algo que esteve na raiz da colónia do Rei
Leopoldo, acabando precisamente por se revelar nos propósitos contrários,
conforme foi documentado no livro “O Fantasma do Rei Leopoldo”.
A hipocrisia da filantropia
naquelas condições, é um “mercenário-fantasma” que sobreviveu até à
vida do Rei Leopoldo II, persiste até hoje e continuará em vigor em muitas
das “transversais” do futuro, com uma África a dilacerar-se num
enorme campo de alienações também neles!
A ambiguidade ocidental da “filantropia” segundo
conceitos coloniais, imperialistas, ou elitistas, vem de longe… e os serviços
dos anglo-saxónicos no reconhecimento avançado do interior do continente
africano impôs-se “naturalmente” em nome das cabeças coroadas da
Europa, que assim contribuíam para o florescimento da aristocracia financeira
mundial e das oligarquias burguesas europeias.
Hoje são todos esses conceitos
que se misturam com o “direito a intervir” em função de “direitos
humanos” adequados à“representatividade democrática” e aos fins do
império da hegemonia unipolar, conforme às correntes ingerências, manipulações
e jogos de hipocrisia, desde o desmantelamento da Jugoslávia nos Balcãs,
imediatamente a seguir ao final da chamada “Guerra Fria”, a que se
juntaram as “experiências” das “revoluções coloridas”, das “primaveras
árabes”, do caos, do terrorismo e da desagregação que também atingiram África…
3- Henry Morton Stanley, natural
do País de Gales, jornalista nos Estados Unidos e explorador ao serviço das
potências coloniais (Rei Leopoldo II e a Coroa Imperial Britânica) que
assinaram a divisão de África na Conferência de Berlim (1884/1885), serviu a
Associação Internacional Africana do Rei Leopoldo II, até ela se extinguir, mas
também participou entre 1886 a 1889, na expedição de Resgate do Emin Pasha no
Nilo (sul do Sudão), conjuntamente com os britânicos Dr. Thomas Heazle Parke, Robert H. Nelson, William G. Stairs e Arthur J. M. Jephson.
Já nessa altura o papel de
plataforma vassala da Bélgica ao dispor da aristocracia financeira mundial se
tornava cada vez mais evidente, a “inteligência” do Rei Leopoldo a
isso obrigava e a bacia do Congo tornava-se o seu campo dilecto de manobra.
À Bélgica, próxima das vastas
regiões industriais do Rhur na Alemanha, a aristocracia financeira mundial
reservou um papel distinto a Portugal, embora periférico: seria um óptimo
capataz no saque mineiro do Katanga e do Congo, emparceirado com as iniciativas
que, provenientes da África do Sul, foram desde logo assumidas pela “British
South Africa Company” na então Federação das Rodésias e Niassalândia.
O Rei Leopoldo IIº tornou-se
assim num capataz de eleição, por que sem ele seria muito mais difícil o mapa
vermelho britânico, “do Cabo ao Cairo”!...
4- O outro explorador que
respondia à investigação científica do interior, foi o escocês missionário
congregacionalista e explorador David Livingstone, que se colocou ao serviço da
Sociedade Missionária de Londres.
Ele penetrou na bacia do Zambeze,
percorreu os Grandes Lagos, incluindo as conexões deles com a bacia do Congo e
viveu sob a obsessão de encontrar as nascentes do Nilo.
A água interior foi sua obsessão,
nem que para isso tivesse de pregar!
Marcante foi o encontro que teve
com Henry Morton Stanley a 10 de Novembro de 1871 (quase 20 anos antes da
Conferência de Berlim), em Ujiji, na actual Tanzânia, junto ao LagoTanganika.
Uns poucos quilómetros a noroeste
desse ponto, quase 100 anos depois, na madrugada de 24 de Abril de 1965 (fez
agora 53 anos), atravessaria o Lago Tanganika a guerrilha do Che, para dentro
do Congo…
David Livingstone foi dos
primeiros europeus a fazer a travessia de Africa do Atlântico ao Índico,
precisamente partindo de Luanda em 1884 e chegando a Quelimane em 1886.
A actividade de David Livingstone
demonstra as implicações das igrejas com os expedientes coloniais e ao seu
serviço, desde a época das explorações marítimas à do reconhecimento do
interior, algo que marcaria sempre qualquer tipo de ingerência e manipulação em
África, associando-se intimamente ao estado de letargia e inanição dos
africanos, bem como ao analfabetismo e às imensas dificuldades de sobrevivência
quando sob o jugo da opressão.
Neste caso teve influência
directa na demarcação do mapa vermelho do Imperio Britânico em África, segundo
o meridiano “do Cabo ao Cairo”, que levou em consideração os cursos do
Zambeze e do Congo, a sul, a charneira dos Grandes Lagos e o longo percurso do
Nilo a norte.
A coroa portuguesa, que em
concorrência inferiorizada (desde as invasões napoleónicas) não conseguiu levar
por diante “o mapa cor-de-rosa”, acabou por soçobrar e foi um motivo bom
para a instauração da república em Portugal; a acção da débil burguesia
portuguesa foi suficiente para acabar com um empecilho fora do contexto das
mais poderosas monarquias europeias, que não conseguia resolver em África as
suas aspirações, ao contrário do “êxito” do Rei Leopoldo II no Congo.
Apesar de David Livingstone ser
pela abolição da escravatura, nem por isso, muito pelo contrário, deixou de ser
um fervoroso adepto do Império Britânico em África, valendo suas explorações
sobre os poderosos cursos de água interior do continente, outro exemplo de
quanto o acesso à água e ao espaço vital foi tido em conta na preparação da Conferência
de Berlim.
É evidente que a coroa britânica
soube, melhor que os outros reinados europeus, criar um espírito elitista que
chegou aos nossos dias e continua a ter substancial expressão na África do Sul,
ainda que a Africa do Sul assuma a sua integração no universo da multipolaridade!
5- Mesmo as soluções de paz que
têm ultimamente trazido antes de mais o seu “prioritário” proveito,
depois das guerras em cadeia conforme à “guerra dos diamantes de sangue de
Savimbi”, soluções relativas aos Parques Naturais Transfronteiriços e ao
turismo vocacionado para a atenção das elites extracontinentais (e dos
principais compradores de diamantes, os “sightholders” conforme
passaram a ser, pelo cartel, atraídos a Gaberone), estão vocacionadas para
soluções elitistas “irrevogáveis”, mesmo que sobre as kimberlites
cobiçadas se tenham desenrolado batalhas tão decisivas como a de Cuito
Cuanavale!
Esse elitismo até a memória das
batalhas proletárias de libertação nacional contra o “apartheid” é
capaz de integrar nos seus projectos carimbando-os como “seus” e
moldando a seu bel-prazer as ideologias dos estados da região, entre eles
Angola… ainda com os olhos postos nas futuras explorações das kimberlites a
norte do Botswana, que aguardam o escalonamento geoestratégico do seu estro,
dos seus interesses e sempre dos seus lucros, nomeadamente as que se encontram
disponíveis num Cuando Cubango que passou a albergar os maiores Parques
Naturais Transfronteiriços de Angola, conforme o KAZA-TFCA!...
Até na área dos Parques Nacionais
Transfronteiriços se distingue contudo o valor dos investimentos
(correspondendo aos processos elitistas) com base na concepção do Kavango and
Zambezi Trans Frontier Conservation Area:
O Botswana (neste momento a base
principal da actuação das explorações em kimberlite da De Beers à escala
global), tem uma área que corresponde a 30% do total das áreas somadas de todos
os Parques Naturais Transfronteiriços existentes no Botswana, na Namíbia, no
Zimbabwe, na Zâmbia e em Angola, muito embora as matrizes principais da água
interior desses Parques, sejam a Zâmbia e Angola (o último dos países
componentes a aderir ao “programa” dessa paz elitista).
A visita a Angola de elementos do
Batalhão Búfalo e outras unidades das South Africa Defence Forces, que serviram
o “apartheid” na África Austral, na esteira desse tipo de sucessos,
exige que a paz seja respeitada não em função de possíveis investimentos
externos elitista que divergem duma sintonia com a personalidade e o carácter
histórico dessa paz ética, moral e cívica tão sacrificada quão duramente
alcançada, que acabou primeiro com o “apartheid” (início da década de
90 do século XX), obrigando depois o cartel a abandonar os “diamantes de
sangue”(início do século XXI)!
Não é pelo simples facto de
existir o Processo Kimberley, ou de Angola estar aberta a investimentos
externos, que nos devemos deixar iludir por aquilo que diz muito mais respeito
a um capitalismo contemporâneo, do que à essência da paz, pois o mercenarismo,
a partir do caminho aberto pelos “fantasmas do Rei Leopoldo” e
tornados disponíveis aos sistemas do cartel dos diamantes, não traduz as
motivações justas em prol do renascimento africano que se impõe!
Em Angola há comunidades que
estiveram nos alicerces do poder de estado angolano que devem ser tratadas com
a dignidade histórica dessa paz, antes de qualquer abertura dessa natureza e
antes de tudo o mais, algo que tem sido protelado anos após ano e adiado “sine
die”, desde quando foi possível essa paz em 2002!
Por isso há que desfazer
equívocos e ambiguidades, pois não são os diamantes que são eternos: são os
lucros do cartel, eivados agora de capitalismo neoliberal e seus servidores que
se querem “eternizar” e por isso haverá sempre fantasmas do Rei
Leopoldo para África um dia voltar a ser obrigada a, enfim, continuar a caçar,
em especial se África não cuidar do seu próprio renascimento e de sua própria
cultura de inteligência, nos termos duma sustentabilidade que hoje em dia é a
única viabilidade saudável para toda a humanidade e para com o respeito devido
à Mãe Terra!
Martinho Júnior - Luanda, 23 de Maio de 2018
Imagens:
Conferência de Berlim;
O Rei Leopoldo IIº da Bélgica, o
rei dos fantasmas mercenários que ainda hoje pululam “transversalmente” por
África;
O alvo principal para o exercício
de domínio de outros sobre África: a bacia do Congo;
Henry Morton Stanley, uma
actuação ao serviço dos impérios que, a partir do seu tempo, geraram a
hegemonia unipolar que integra o elitismo do cartel dos diamantes;
David Livingstone, outro pioneiro
que contribuiu também na abertura desse caminho e particularmente ao serviço
daqueles que pretendiam estender seu poder do Cabo ao Cairo e hoje alicerçam os
expedientes elitistas, na guerra como na paz, do cartel de diamantes.
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