sábado, 26 de maio de 2018

RESCALDOS DOS FANTASMAS DO REI LEOPOLDO…


Martinho Júnior | Luanda
  
Se o segundo Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, a 4 de Abril de 2002, abriu as portas da paz em África (nos Grandes Lagos, nos Congos e em Angola), apesar das adversidades consumadas com o capitalismo neoliberal enquanto esteira de longo raio-de-acção do império da hegemonia unipolar, capaz de dar a volta até pelos “lobbies” disseminados pela China-Hong Kong e Macau, a partir da Conferência do Fundo Azul sobre a Bacia do Congo, em Brazzaville e a 29 de Abril de 2018, o terceiro Presidente angolano, João Lourenço, na busca incessante da consolidação da paz em África, abriu “o século de caça a todos fantasmas”, velhos e novos, do Rei Leopoldo…

Há contudo um crescendo de riscos e desafios que se adivinham no horizonte!...

Serão mesmo caçados todos os “fantasmas”?

EM SAUDAÇÃO AO 25 DE MAIO, DIA DE ÁFRICA

1- As potências coloniais só com uma perspectiva adaptada à revolução industrial, tiveram capacidade de penetração, reconhecimento e interpretação físico-geográfica e antropológica do “opaco” continente africano, em função de sociedades de geografia que se encarregaram dos primeiros estudos bem no miolo interior do continente, entre as bacias do Congo, do Zambeze e do Nilo, assim como nos Grandes Lagos, envolvendo-se pouco a pouco nos enredos coloniais “terreno adentro”.

Essas sociedades de geografia são contemporâneas à fundação dos primeiros “think tanks” elitistas e percursores da globalização, por que desde logo acompanharam a expressão do império colonial britânico.

É evidente que essa expressão acompanhou as linhas e os conteúdos dum domínio colonial ávido de recursos naturais, antropocêntrico e disposto a oprimir em nome da “civilização ocidental”, pois a Europa não possuía as matérias-primas, nas quantidades que interessava à revolução industrial e os povos africanos eram um manancial, por outro lado, de mão-de-obra barata, embrutecida, ou até mesmo escrava.

Antes deles, cerca de um século antes, funantes cristão-novos, moçárabes e árabes, haviam já cruzado nos mesmos lugares e até unido interesses, negócios e comércio, mas obviamente sem o suporte, nem a projecção que só a revolução industrial poderia catapultar e dinamizar na direcção do “climax” que foi a Conferência de Berlim, pelo que só há relativamente pouco tempo suas trajectórias têm sido melhor investigadas e conhecidas!...

Mesmo entre as potências coloniais havia contradições que estiveram na base aliás da IIª Guerra Mundial: uma coisa foi as que absorveram a revolução industrial, que está aliás na base da formação da aristocracia financeira mundial (por exemplo a Grã-Bretanha ou a França, elas próprias decorrentes das guerras napoleónicas), outra coisa eram potências periféricas da revolução industrial, como Portugal, até por que os impactos na utilização das máquinas, nessas periferias ocorreram de forma limitada e localizada, impedindo-as de maiores avanços tecnológicos, o que se reflectiu nos termos do exercício do seu poder extracontinental, bem como na capacidade de seus instrumentos de poder e recursos.

As periferias foram mantidas fora das grandes articulações das casas bancárias que estão na base da aristocracia financeira mundial e por isso, uma potência colonial como Portugal impedida de implantar colónias no miolo do continente africano e até de ter acesso fulcral (apenas periférico) à bacia do Congo!

A manobra de exploração com o suporte das sociedades de geografia motivadas pela revolução industrial e suas poderosas casas bancárias, levou desde logo em linha de conta as pérolas hidrográficas africanas (Congo, Zambeze, Grandes Lagos e Nilo) o que é um sinal evidente que a “civilização ocidental” valorizava a água interior e o espaço vital do continente africano, como a chave para a conquista colonial do continente e para dividir de modo a que os africanos tivessem que lidar sempre com dificuldades de toda a ordem, mesmo que alguma vez se conseguissem libertar do jugo colonial.

Essa é a raiz de, quando abordam a questão da água interior do continente e do espaço vital, os componentes da “civilização ocidental”, a fim de esbater essa prioridade no reconhecimento de África, frequentemente alegarem que as disputas sobre a água em África, ocorrerão nas “guerras do futuro”, quando isso teve tão grandes implicações no desvendar dos segredos e na ocupação do interior do continente-berço da humanidade, nos vinte anos finais do seculo XIX.

2- O Rei Leopoldo II da Bélgica, mercenário nessas disputas, financiou a Associação Internacional Africana (que vigorou de 1877 a 1908).

Essa associação tinha propósitos científicos e filantrópicos, (a ciência tornou-se indispensável para a revolução industrial e a filantropia era já um processo cínico que acompanhava o domínio, a opressão e burilava o verniz da conveniência para o exercício dos próprios poderes coloniais), algo que esteve na raiz da colónia do Rei Leopoldo, acabando precisamente por se revelar nos propósitos contrários, conforme foi documentado no livro “O Fantasma do Rei Leopoldo”.

A hipocrisia da filantropia naquelas condições, é um “mercenário-fantasma” que sobreviveu até à vida do Rei Leopoldo II, persiste até hoje e continuará em vigor em muitas das “transversais” do futuro, com uma África a dilacerar-se num enorme campo de alienações também neles!

A ambiguidade ocidental da “filantropia” segundo conceitos coloniais, imperialistas, ou elitistas, vem de longe… e os serviços dos anglo-saxónicos no reconhecimento avançado do interior do continente africano impôs-se “naturalmente” em nome das cabeças coroadas da Europa, que assim contribuíam para o florescimento da aristocracia financeira mundial e das oligarquias burguesas europeias.

Hoje são todos esses conceitos que se misturam com o “direito a intervir” em função de “direitos humanos” adequados à“representatividade democrática” e aos fins do império da hegemonia unipolar, conforme às correntes ingerências, manipulações e jogos de hipocrisia, desde o desmantelamento da Jugoslávia nos Balcãs, imediatamente a seguir ao final da chamada “Guerra Fria”, a que se juntaram as “experiências” das “revoluções coloridas”, das “primaveras árabes”, do caos, do terrorismo e da desagregação que também atingiram África…

 3- Henry Morton Stanley, natural do País de Gales, jornalista nos Estados Unidos e explorador ao serviço das potências coloniais (Rei Leopoldo II e a Coroa Imperial Britânica) que assinaram a divisão de África na Conferência de Berlim (1884/1885), serviu a Associação Internacional Africana do Rei Leopoldo II, até ela se extinguir, mas também participou entre 1886 a 1889, na expedição de Resgate do Emin Pasha no Nilo (sul do Sudão), conjuntamente com os britânicos Dr. Thomas Heazle ParkeRobert H. NelsonWilliam G. Stairs e Arthur J. M. Jephson.

Já nessa altura o papel de plataforma vassala da Bélgica ao dispor da aristocracia financeira mundial se tornava cada vez mais evidente, a “inteligência” do Rei Leopoldo a isso obrigava e a bacia do Congo tornava-se o seu campo dilecto de manobra.

À Bélgica, próxima das vastas regiões industriais do Rhur na Alemanha, a aristocracia financeira mundial reservou um papel distinto a Portugal, embora periférico: seria um óptimo capataz no saque mineiro do Katanga e do Congo, emparceirado com as iniciativas que, provenientes da África do Sul, foram desde logo assumidas pela “British South Africa Company” na então Federação das Rodésias e Niassalândia.

O Rei Leopoldo IIº tornou-se assim num capataz de eleição, por que sem ele seria muito mais difícil o mapa vermelho britânico, “do Cabo ao Cairo”!...

4- O outro explorador que respondia à investigação científica do interior, foi o escocês missionário congregacionalista e explorador David Livingstone, que se colocou ao serviço da Sociedade Missionária de Londres.

Ele penetrou na bacia do Zambeze, percorreu os Grandes Lagos, incluindo as conexões deles com a bacia do Congo e viveu sob a obsessão de encontrar as nascentes do Nilo.

A água interior foi sua obsessão, nem que para isso tivesse de pregar!

Marcante foi o encontro que teve com Henry Morton Stanley a 10 de Novembro de 1871 (quase 20 anos antes da Conferência de Berlim), em Ujiji, na actual Tanzânia, junto ao LagoTanganika.

Uns poucos quilómetros a noroeste desse ponto, quase 100 anos depois, na madrugada de 24 de Abril de 1965 (fez agora 53 anos), atravessaria o Lago Tanganika a guerrilha do Che, para dentro do Congo…

David Livingstone foi dos primeiros europeus a fazer a travessia de Africa do Atlântico ao Índico, precisamente partindo de Luanda em 1884 e chegando a Quelimane em 1886.

A actividade de David Livingstone demonstra as implicações das igrejas com os expedientes coloniais e ao seu serviço, desde a época das explorações marítimas à do reconhecimento do interior, algo que marcaria sempre qualquer tipo de ingerência e manipulação em África, associando-se intimamente ao estado de letargia e inanição dos africanos, bem como ao analfabetismo e às imensas dificuldades de sobrevivência quando sob o jugo da opressão.

Neste caso teve influência directa na demarcação do mapa vermelho do Imperio Britânico em África, segundo o meridiano “do Cabo ao Cairo”, que levou em consideração os cursos do Zambeze e do Congo, a sul, a charneira dos Grandes Lagos e o longo percurso do Nilo a norte.

A coroa portuguesa, que em concorrência inferiorizada (desde as invasões napoleónicas) não conseguiu levar por diante “o mapa cor-de-rosa”, acabou por soçobrar e foi um motivo bom para a instauração da república em Portugal; a acção da débil burguesia portuguesa foi suficiente para acabar com um empecilho fora do contexto das mais poderosas monarquias europeias, que não conseguia resolver em África as suas aspirações, ao contrário do “êxito” do Rei Leopoldo II no Congo.

Apesar de David Livingstone ser pela abolição da escravatura, nem por isso, muito pelo contrário, deixou de ser um fervoroso adepto do Império Britânico em África, valendo suas explorações sobre os poderosos cursos de água interior do continente, outro exemplo de quanto o acesso à água e ao espaço vital foi tido em conta na preparação da Conferência de Berlim.

É evidente que a coroa britânica soube, melhor que os outros reinados europeus, criar um espírito elitista que chegou aos nossos dias e continua a ter substancial expressão na África do Sul, ainda que a Africa do Sul assuma a sua integração no universo da multipolaridade!

5- Mesmo as soluções de paz que têm ultimamente trazido antes de mais o seu “prioritário” proveito, depois das guerras em cadeia conforme à “guerra dos diamantes de sangue de Savimbi”, soluções relativas aos Parques Naturais Transfronteiriços e ao turismo vocacionado para a atenção das elites extracontinentais (e dos principais compradores de diamantes, os “sightholders” conforme passaram a ser, pelo cartel, atraídos a Gaberone), estão vocacionadas para soluções elitistas “irrevogáveis”, mesmo que sobre as kimberlites cobiçadas se tenham desenrolado batalhas tão decisivas como a de Cuito Cuanavale!

Esse elitismo até a memória das batalhas proletárias de libertação nacional contra o “apartheid” é capaz de integrar nos seus projectos carimbando-os como “seus” e moldando a seu bel-prazer as ideologias dos estados da região, entre eles Angola… ainda com os olhos postos nas futuras explorações das kimberlites a norte do Botswana, que aguardam o escalonamento geoestratégico do seu estro, dos seus interesses e sempre dos seus lucros, nomeadamente as que se encontram disponíveis num Cuando Cubango que passou a albergar os maiores Parques Naturais Transfronteiriços de Angola, conforme o KAZA-TFCA!...

Até na área dos Parques Nacionais Transfronteiriços se distingue contudo o valor dos investimentos (correspondendo aos processos elitistas) com base na concepção do Kavango and Zambezi Trans Frontier Conservation Area:

O Botswana (neste momento a base principal da actuação das explorações em kimberlite da De Beers à escala global), tem uma área que corresponde a 30% do total das áreas somadas de todos os Parques Naturais Transfronteiriços existentes no Botswana, na Namíbia, no Zimbabwe, na Zâmbia e em Angola, muito embora as matrizes principais da água interior desses Parques, sejam a Zâmbia e Angola (o último dos países componentes a aderir ao “programa” dessa paz elitista).

A visita a Angola de elementos do Batalhão Búfalo e outras unidades das South Africa Defence Forces, que serviram o “apartheid” na África Austral, na esteira desse tipo de sucessos, exige que a paz seja respeitada não em função de possíveis investimentos externos elitista que divergem duma sintonia com a personalidade e o carácter histórico dessa paz ética, moral e cívica tão sacrificada quão duramente alcançada, que acabou primeiro com o “apartheid” (início da década de 90 do século XX), obrigando depois o cartel a abandonar os “diamantes de sangue”(início do século XXI)!

Não é pelo simples facto de existir o Processo Kimberley, ou de Angola estar aberta a investimentos externos, que nos devemos deixar iludir por aquilo que diz muito mais respeito a um capitalismo contemporâneo, do que à essência da paz, pois o mercenarismo, a partir do caminho aberto pelos “fantasmas do Rei Leopoldo” e tornados disponíveis aos sistemas do cartel dos diamantes, não traduz as motivações justas em prol do renascimento africano que se impõe!

Em Angola há comunidades que estiveram nos alicerces do poder de estado angolano que devem ser tratadas com a dignidade histórica dessa paz, antes de qualquer abertura dessa natureza e antes de tudo o mais, algo que tem sido protelado anos após ano e adiado “sine die”, desde quando foi possível essa paz em 2002!

Por isso há que desfazer equívocos e ambiguidades, pois não são os diamantes que são eternos: são os lucros do cartel, eivados agora de capitalismo neoliberal e seus servidores que se querem “eternizar” e por isso haverá sempre fantasmas do Rei Leopoldo para África um dia voltar a ser obrigada a, enfim, continuar a caçar, em especial se África não cuidar do seu próprio renascimento e de sua própria cultura de inteligência, nos termos duma sustentabilidade que hoje em dia é a única viabilidade saudável para toda a humanidade e para com o respeito devido à Mãe Terra!

Martinho Júnior - Luanda, 23 de Maio de 2018

Imagens:
Conferência de Berlim;
O Rei Leopoldo IIº da Bélgica, o rei dos fantasmas mercenários que ainda hoje pululam “transversalmente” por África;
O alvo principal para o exercício de domínio de outros sobre África: a bacia do Congo;
Henry Morton Stanley, uma actuação ao serviço dos impérios que, a partir do seu tempo, geraram a hegemonia unipolar que integra o elitismo do cartel dos diamantes;
David Livingstone, outro pioneiro que contribuiu também na abertura desse caminho e particularmente ao serviço daqueles que pretendiam estender seu poder do Cabo ao Cairo e hoje alicerçam os expedientes elitistas, na guerra como na paz, do cartel de diamantes.

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