quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (II)

– Um livro de Andrei Martyanov

 Daniel Vaz de Carvalho

"Para Samuel Huntington (autor de "The clash of Civilisations"), a universalidade da cultura ocidental sofre de três problemas:   é falsa, é imoral e é perigosa. A imposição destes três parâmetros na Rússia mostra a falácia do pensamento doutrinário dos EUA em pensar que o mundo pode ser levado a um sistema global capitalista sob domínio do Ocidente".  -Andrei Martyanov[1]

1 - O erro de subestimar o adversário 

Um dos mais graves erros estratégicos consiste em menosprezar o adversário. Porém os EUA parecem preferir ilusões agradáveis a verdades duras.

A economia russa é grosseiramente subavaliada em comparação com a grotesca sobre-avaliação da economia dos EUA, muita da qual não tem nada que ver com o que realmente define o poder de uma nação. (40)

A Rússia é sistematicamente comparada desfavoravelmente, por exemplo, à Alemanha, mas a Alemanha não tem indústria espacial nem é capaz de projetar um avião militar de tecnologia avançada, tal como relativamente à indústria microeletrónica em que nenhum país pode comparar-se consistentemente com a Rússia, à exceção dos EUA e da China, ou produzir aviões SU-35 ou SU-57 invisíveis aos radares, nem construir estações espaciais ou dispor da única alternativa global ao GPS, o sistema Glonass. (39)

As sanções ocidentais à Rússia revelaram-se um fracasso, bem como a tentativa do seu desmembramento a partir da guerra da Chechénia [2] . A Rússia, país remanescente da supostamente derrotada União Soviética, esteve sujeita a "especialistas" ocidentais que consideraram a destruição da capacidade de combate das Forças Armadas russas uma "reforma" viável". (135)

Em 2017, V. Putin em resposta a um jornalista alemão afirmou:   o nosso maior erro foi acreditarmos demasiado em vocês. Interpretaram-no como uma fraqueza e exploraram isso. (137)

A única maneira de a Rússia poder ter um diálogo racional com os EUA e por consequência na Europa, foi voltar a ser um superpoder. Ao mesmo tempo era inevitável uma aproximação à China. (159) Foi isso que aconteceu.

2 - As capacidades militares atuais 

Atualmente, a capacidade industrial, científica e tecnológica russa é de primeira classe a nível mundial. (185)

Após a apresentação de V. Putin em março deste ano, a impressão é que em termos de mísseis existe atualmente um abismo entre os EUA e a Rússia. A Rússia baseada na tecnologia soviética que herdou, desenvolveu mísseis capazes de trajetórias que desafiam quaisquer sistemas ABM. (219,220)

A conceção das armas russas foi feita para funcionar, pois disso depende a sobrevivência de um país, que teve de lutar constantemente contra inimigos externos. (181)

Já nos anos 70 a aviação soviética dispunha de misseis AS-6 capazes de Mach- 3. A marinha soviética havia desenvolvido sistemas avançados de misseis contra navios (ASM) não permitindo que um inimigo projetasse o seu poder naval sobre o país.

As munições guiadas de alta precisão (PGM) foram desenvolvidas pela União Soviética. O seu nível atual ficou patente na Chechénia e na Síria, mas tal escapou aos "especialistas". (167)

Atualmente a Rússia dispõe de misseis de cruzeiro com alcance superior a 5 500 km. A marinha russa pode disparar misseis 3M14 com alcance superior a mais de 2 500 km de qualquer parte do Mediterrâneo oriental ou do mar Cáspio. O segredo está no grau de precisão com que foram disparados de fora das fronteiras Sírias. E neste campo os EUA não têm a liderança. (174)

O desenvolvimento das capacidade em "electronic counter-counter mesures" (ECCM) ficou cabalmente demonstrado na passagem de um SU-24 junto ao USS Donald Cook, em abril de 2016, paralisando os seus sistemas eletrónicos (tema da capa do livro).

O avanço russo no processamento de sinais eletrónicos, pode ser também evidenciado pelo facto de ter conseguido manipular o GPS e apoderar-se do controlo das nuvens de drones que atacavam duas bases russas na Síria. (192)

Na tecnologia submarina foi desenvolvido um sistema de propulsão não nuclear extremamente silencioso, de "ar independente", com vantagens sobre os nucleares. (186),

Os novos submarinos SSK dispararam 6 Kalibur 3M14 com intervalos de 6 segundos entre cada um sobre alvos na Síria em 5 de outubro de 2017. O êxito foi o facto de se pensar tal não ser possível em submarinos daquela classe. (185)

A Rússia dispõe de uma Força Aérea moderna e complexa, mas também sistemas avançados de defesa aérea tornando a FA do adversário muito menos eficaz. Mísseis X-32 podem ser disparados dos bombardeiros TU-22 M3 com um alcance de 1 000 km e velocidade Mach 4.2. (175)

Esta situação impõe sérias limitações ao poder naval tornando determinados espaços fechados a qualquer adversário. O aparecimento do 3M22 Zirkon (ASM Mach 8, alcance 1 000 km) mudou completamente o equilíbrio do poder naval. São tecnologias para as quais a marinha dos EUA não está preparada e o seu SM-6 não pode ser considerado um bom sistema antimissil. (187)

Com o projeto 885 Severodviinsk de submarinos a energia nuclear armados com modernos misseis de longo alcance é muito difícil conceber como podem os EUA defender-se de um ataque massivo de misseis. (189)

Os modernos S-400 e os revolucionários S-500 de defesa aérea fecham o espaço aéreo russo e de seus aliados a quaisquer ataques aéreos ou mesmo balísticos. (205)

3 - Experiência em guerras

Os cinco dias em que as tropas da Geórgia treinadas, armadas e apoiadas por "conselheiros" dos EUA, foram derrotadas por tropas russas fronteiriças em igualdade de efetivos, mostraram a sua capacidade de combate em ações combinadas das diversas armas. Na Ucrânia as formações do Donbass produziram resultados que destroçaram completamente as conceções militares de há 20 anos. Apesar de numericamente superiores as forças de Kiev sofreram sucessivas derrotas que culminaram com dois cercos catastróficos em Ilovaisk e Debaltsevo. (167, 168)

As capacidades eletrónicas utilizadas pela Rússia para apoiar as forças do Donbass foram descritas pelo gen. Ben Hodges como "de fazer chorar": "o nosso maior problema é que nunca lutámos num ambiente de comunicações degradado e não sabemos como o fazer". Ou seja lutar num ambiente de completa cegueira eletrónica e redes de computador suprimidas. (168, 170).

Em 2015, pequenos navios lança misseis no mar Cáspio lançaram sobre posições do ISIS, misseis PGM 3M14 e bombardeiros estratégicos lançaram misseis X101, tornando evidente um mundo multipolar e a dura realidade da perda de supremacia militar dos EUA, (169)

Com um pequeno contingente na Síria, a Rússia foi capaz de ditar as condições no terreno e na área de operações. Estes factos fizeram aumentar a histeria anti-russa desde que o resultado da guerra se tornou evidente. (176) Recordemos que em 2013 ministros ocidentais davam seis meses para a "mudança de regime" na Síria.

Os EUA não podem comemorar marchas de vitória depois de terem destruído o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia. Os EUA não têm nada mais para comemorar senão morte e destruição e veteranos que regressam a casa com traumas psicológicos e envenenamento por radiações, que são ignoradas pelo seu governo. (142)

A maioria dos conflitos em que os EUA se envolveram desde a Guerra da Correia levaram a sangrentos resultados ou foram perdidos. (170) Afinal, uma nação tão orgulhosa dos seus sucesso militares nunca ganhou nenhuma guerra nos últimos 70 anos se excetuarmos o "tiro aos perus" da 1ª Guerra do Golfo. (203) Podemos acrescentar, a "gloriosa" (vergonhosa) invasão da pequena Granada para derrubar um governo progressista.

4 - Fragilidades geoestratégicas dos EUA

A marinha dos EUA não tem sistema de defesa contra o ataque de uma salva de misseis hipersónicos. Isto deve-se a que os EUA continuam aplicar rígidas e ultrapassadas doutrinas agressivas. (148)

Os EUA não têm meios contra o SU-35C russo, ou o novo SU-57, planeado para 2019. O radar do SU-35C pode detetar aviões ditos invisíveis ao radar a 100 km, dispondo de uma inultrapassável capacidade de manobra. A nova tecnologia radiofotónica torna os aviões "invisíveis" (onde os EUA gastaram milhares de milhões de dólares) obsoletos. (179)

Um ataque vindo do Polo Sul é uma contingência que os EUA têm agora que encarar (220) Além dos Mach 8 já revolucionários, dos Mach 10 + altamente manobráveis com alcance de 2 000 km transportados por MiG 31, estão em produção os Avangard "deslizantes" capazes de Mach 20 (transportados até próximo dos alvos por RS-28 Sarmat   heavy ICBM ). A NATO não tem atualmente nenhum sistema de defesa ou em perspetiva para intercetar um único míssil com estas características. Uma salva de cinco ou seis pode destruir qualquer grupo de batalha naval – tudo sem usar munições nucleares. (220,222)

Os porta-aviões, principal força de ataque naval dos EUA, além de proibitivamente caros, são alvos vulneráveis levantando sérias dúvidas acerca do conceito estratégico naval centrado nestes meios. (145,146) A destruição de um porta-aviões teria um impacto psicológico correspondente aos milhares de efetivos e custo astronómico do navio e da aviação transportada. (142)

Os porta-aviões constituem excelentes alvos para os atuais ASM supersónicos que podem ser lançados imersos. São uma realidade para a qual a marinha dos EUA não está preparada. Um porta-aviões pode ficar destruído com uma salva de misseis ou ficar com a pista incapacitada por um ataque de drones. (43)

Os EUA têm necessidade de atualizar os seu dispositivos militares. O mais novo submarino (classe Ohio) tem 20 anos. A classe Colômbia entrará em produção em 2021 com um custo estimado de 97 mil milhões de dólares, cerca de 8,1 mil milhões cada, mais que o custo total do programa dissuasor russo de 8 submarinos. (41,42)

Um simples submarino da classe Virgínia custa 2,5 mil milhões de dólares, um custo astronómico quando comparado com os SSK russos, mais indetetáveis particularmente no litoral do que qualquer submarino dos EUA. (188)

A defesa do país simplesmente não faz parte da História dos EUA, dado nunca terem tido uma credível ameaça continental que os invadisse e procedesse à aniquilação da população civil (ao contrário da Rússia). Cerca de 70% do orçamento militar dos EUA é para combater no estrangeiro.

As armas dos EUA são itens comerciais, a sua idiossincrasia militar usa o termo "sofisticado" em vez de "eficaz". O F-35 é muito "sofisticado" mas é "eficaz"? Na realidade a tecnologia militar dos EUA está atrasada não apenas em relação à Rússia mas também em relação a alguns meios aéreos do Reino Unido e França. (179)

Somas astronómicas foram entregues ao Pentágono e seus fornecedores, porém nenhuma tecnologia militar de classe mundial foi produzida pelo elogiado complexo militar-industrial. Podem continuar a "investir" prosseguindo na pesquisa de exóticas armas espaciais financiadas pela gigantesca dívida (21,6 milhões de milhões de dólares) mas isso não vai alterar o resultado. (191)

Ao contrário da Rússia que dispõe de um sistema profundamente escalonado de defesa aérea e antimissil, o litoral dos EUA está praticamente sem defesa. Os Patriot e o sistema AEGIS não são garantia contra um ataque convencional ou mesmo nuclear de retaliação em caso de conflito em grande escala.

Em geral, a tecnologia militar convencional dos EUA, já não falando em conceitos operacionais desligados da realidade, é boa na sua maior parte para lutar contra adversários fracos e subdesenvolvidos. (191) Mas se os EUA não têm uma indiscutível superioridade convencional sobre pelo menos dois dos maiores poderes militares - a Rússia e num menor grau a China - qual é então a real extensão do seu domínio?

Os perigos da insanidade

A expansão da NATO para as fronteiras da Rússia, apesar das garantias dadas em 1990, tornou evidente que o objetivo do Ocidente era ver a Rússia removida de qualquer papel geopolítico significativo. (154) Dado que para os EUA a existência de um nação com paridade militar é algo inaceitável. (192) Neste sentido Hillary Clinton comparou Putin a Hitler. (96)

Os EUA permanecem no geral e militarmente uma primeira força geopolítica, porém crescentemente têm de confrontar-se com o facto da curta era de proclamada superioridade na guerra moderna terminou. (188)

A sua visão do mundo é baseada no poder militar. Mas esta visão está completamente desligada do entendimento das consequências da guerra e dos recursos necessários. (157) Contudo, não podemos pôr de parte a hipótese de um cenário suicida dos EUA, tentando comprometer a China e a Rússia numa guerra que se convenceriam ser um cenário convencional. (172) O perigo reside na iliteracia militar dos neoconservadores e a sua total alienação da realidade estratégica. (175)

A sua postura militar acabou por contribuir para a bancarrota moral e económica da nação. Através de uma série de mal concebidas e largamente falseadas aventuras militares, os EUA expressaram dramaticamente os limites da sua capacidade. Excetuando uma guerra nuclear os EUA não podem derrotar a Rússia ou a China nas suas vizinhanças geográficas. Além de que devido à evolução da tecnologia militar, deixou de ser impossível levar os cenários de guerra para os próprio território dos EUA. (207)

Se os EUA tivessem superioridade militar convencional não recorreriam à opção nuclear, com o abandono do tratado IRNF (Intermediate Range Nuclear Forces), encetando uma perigosíssima corrida às armas.

Uma escalada militar descontrolada pode levar a um muito perigoso ponto de partida nuclear para os EUA salvarem a sua própria reputação, cada vez mais reduzida. Isto poderia acontecer em caso de guerra com o Irão, se um porta-aviões dos EUA fosse atingido ou os EUA tivessem de enfrentar outra humilhação como na Síria, ou mesmo em relação à Ucrânia ou à Coreia do Norte. (211)

A mais importante tarefa atual é portanto evitar por todos os meios qualquer possibilidade desta autoproclamada ilusão de "nação excecional", levar o mundo à destruição global pela frustração com que a sua própria fraqueza fosse subitamente exposta. (213) 

Ver também: 
  The Pentagon Realised What It Has Done – the Chinese Put the US Army on Its Knees

[1] Losing American Supremacy. The Myopia of American Strategic Planning , Ed. Clarity Press, 2018, 308 p., ISBN 0998694754.   Entre parêntesis os números das páginas a que se referem transcrições e comentários ao texto de AM.
[2] Sobre este tema ver "Do fim da URSS à atual russofobia – Notas de Dimitri Rogozin, um embaixador russo junto da NATO",resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_1.html   e   resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_2.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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