quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Portugal | É o povo que é estúpido?


Paulo Baldaia | Jornal de Notícias | opinião

O maior erro que se pode cometer em política é pensar que o povo é estúpido, que confunde uma prestação de contas com um ajuste de contas (1), que vota com a vontade dos outros (2) ou que não percebe uma mentira com perna curta (3).

1. As memórias de Cavaco, que o próprio apresenta como uma prestação de contas sobre o segundo mandato presidencial, são um ajuste de contas com a história e com alguns personagens políticos que dividiram o palco com ele. Mas só alguns, outros são ignorados para que o povo esqueça o que possa o ex-presidente ter a ver com esses assuntos. O BES, por exemplo.

A entrevista da SIC começa muito bem com Clara de Sousa a citar o ex-presidente em janeiro de 2015: "Todas as audiências são reservadas, quem fala com o presidente da República tem de ter a absoluta certeza de que aquilo que lhe conta ele não vai dizer a mais ninguém". Cavaco disse o que disse para nada ter de dizer sobre as reuniões que teve com Ricardo Salgado. E no livro nada escreve sobre o BES e as declarações abonatórias que fez sobre o banco, embora refugiando-se na informação prestada pelo Banco de Portugal. Justifica este apagão na "prestação de contas", alegando que não exercia funções financeiras. Como se o facto de não exercer funções executivas o tivesse impedido de criticar decisões do ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar, ou do ex-primeiro-ministro Passos Coelho. E como os portugueses gostariam que Cavaco Silva tivesse prestado contas sobre o BES e os milhares de milhões de euros que já custou aos contribuintes. E sobre o BPN. E sobre o quase colapso do sistema financeiro que ainda hoje estamos a pagar.

Na TSF reconheceu o erro (pasme-se!) de não ter previsto que o BE e o PCP se curvariam tanto perante o pragmatismo contra a ideologia. O erro que ele não reconheceu foi o de que perdeu muito tempo com uma questão ideológica, que era dele, e não dos partidos que fizeram o acordo das esquerdas e que desde o primeiro minuto tinham abdicado dessa luta pelo pragmatismo de não dar novamente o palco à Direita. O que Cavaco quis foi espetar a faca no Bloco e no PCP, acusando-os de se venderem por um prato de lentilhas, apenas porque este Governo demorou mais tempo que todo o tempo que ocupou os pesadelos do então inquilino do Palácio de Belém.

2. Da Esquerda e da Direita mais moderada surgiram imensos democratas a rasgar as vestes pelo que o povo brasileiro se preparava para fazer e acabou mesmo por fazer. Bolsonaro será presidente do Brasil a partir do dia 1 de janeiro de 2019. Eu nunca conseguiria votar Bolsonaro, mas não é muito difícil entender a razão que levou milhões de brasileiros no Brasil a votar neste populista de Direita com tiques ditatoriais. Uma economia que não ata nem desata, uma corrupção que se tornou capaz de ser cada vez maior, a ponto de já não sobrar quase nenhum político que não estivesse sob suspeita, e a insegurança, que faz do Brasil um dos países onde é mais fácil morrer assassinado, são razões muito fortes para não querer nada que cheire a continuidade. Diz-se que por lá o debate esteve muito contaminado pelas "fake news", mas como se explica que o futuro presidente do Brasil tenha tido taxas de aprovação muito superiores a dois terços dos brasileiros que votaram em países como Portugal, Estados Unidos, Japão, Suíça e Holanda? Nestes países, a campanha que existiu foi toda, ou quase toda, contra Bolsonaro.

3. O ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, jurou a pés juntos que não sabia de encobrimento nenhum quando lhe perguntaram sobre um memorando que a PJ Militar foi entregar ao seu chefe de gabinete e que dava conta da encenação para recuperar as armas roubadas em Tancos. O primeiro-ministro, António Costa, foi na peugada e assinou por baixo. Azeredo Lopes podia ter respondido de imediato da mesma forma que o seu ex-chefe de gabinete: "recebi o memorando, mas no memorando nada indiciava um encobrimento". Tentou tapar o sol com uma peneira e agora todos queremos saber se também foi esse o caso do primeiro-ministro. Ok, Costa não sabia do encobrimento ou encenação, mas desde quando é que sabe que o ministro recebeu o memorando? Em alguma das vezes que nos disse que sabia o mesmo que nós, já sabia que Azeredo tinha recebido o famoso documento?

*Jornalista

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