Lula manterá a candidatura mesmo
se encarcerado
Derrotista e acima de tudo
precária, a frase acima percorre as bolhas da esquerda, depois que o TRF-4
manteve a condenação do ex-presidente. O que há de (muito) errado nela?
Antonio Martins | Outras Palavras
Um frisson de euforia tomou conta
dos “mercados” e da mídia desde a última quarta-feira (24/1), quando três
desembargadores do 4º Tribunal Regional Federal ampliaram a condenação de Lula
e dificultaram, por combinação prévia de sentença, sua defesa. A Bolsa de São
Paulo
subiu 5,31%. Os jornais decretam, pela enésima vez, a morte
política e a prisão próxima do ex-presidente – em especial depois que um juiz
substituto de Brasília,
denunciado várias vezes por favorecer as fraudes fiscais
de grandes grupos econômicos,
proibiu-o de viajar à Etiópia. Quem sabe agora,
aposta-se, a população aceite eleger um
candidato afinado com as contrarreformas.
A mesma onda parece engolfar
alguns sites alternativos. “A prisão de Lula é a porta para o endurecimento”;
além dele, “muitas lideranças poderão ser presas”,
previu o bravo Renato Rovai na revista
Fórum. Nas redes
sociais, as bolhas de opinião à esquerda – até há bem pouco exageradamente
otimistas – agora martelam o mesmo ponto de vista. Uma frase marca o tom
melancólico do debate: “Eles não deram o golpe para devolver o poder em
eleições democráticas”.
Os que a repetem cometem um erro
banal: confundir o desejo do adversário com o exame
concreto da correlação de forças existente. Os Estados Unidos não gastaram
trilhões de dólares na invasão do Iraque para entregar o poder e o petróleo a
um governo ligado ao Irã. Os militares pós-1964 não transformaram o Brasil na
oitava potência industrial do planeta para passar o bastão a Tancredo Neves, o
homem que os chamou de “
canalhas” no primeiro dia do golpe. E no entanto… O cenário
pós-TRF4 é complexo e contraditório. O derrotismo é sempre uma saída fácil,
porque dispensa o trabalhoso exame da conjuntura e a busca de saídas táticas. É
e esse esforço que se dedica este texto, a partir de três hipóteses essenciais:
1. O bloco conservador obteve uma
vitória importante, mas não rompeu o equilibrio de forças estabelecido em 2017
Foi uma vitória patife, que
demonstrou a brutalidade e arrogância da Casa Grande. Ao combinarem sentenças
idênticas, de doze anos e um mês, para Lula, os desembargadores do TRF
assumiram que fazem um julgamento político – não o exame de um suposto crime de
corrupção. A coincidência tríplice, impossível por acaso, foi tramada
previamente. A intenção, alcançada, era reduzir ao máximo as chances de recurso
do réu, para impedir que os eleitores possam escolhê-lo em outubro. Se
possível, para encarcerar sua mensagem, a partir de abril.
O êxtase dos mercados atesta o
caráter de classe da decisão. Mas não significa que a fatura tenha sido
liquidada – nem, portando, que esteja aberto caminho para uma onda de prisões
de líderes populares. Desde meados de 2017, o cenário político brasileiro tem
como característica central um impasse – e ele se mantém. Um bloco conservador
heterogêneo, formado pelo grande poder econômico, a casta política e a mídia,
reuniu força suficiente para impor uma Destituinte. Implica liquidar,
a toque de caixa e sem debate, tanto as conquistas sociais consagradas na
Constituição de 1988 quanto as que remontam ao período do getulismo.
Porém, este processo foi freado,
há cerca de nove meses. A oposição popular interrompeu parcialmente os
retrocessos. Por enquanto, ela não se traduz em grandes protestos. Protagonizou
alguns, como as greves “gerais” de abril e maio – que não tiveram sequência.
Manifesta-se, principalmente, numa espreita eleitoral muito temida
por todos os que se envolveram no golpe. Há uma grande contradição latente
aqui: a casta política, que sequestra a democracia, precisa do voto
popular. Por isso, os deputados temem concluir o desmonte (“reforma”) da
Previdência.
Aos poucos – muito menos rápido
do que gostaríamos – vai se formando uma oposição consciente às
contrarreformas. Maiorias substanciais já se opõem ao desmonte da
Previdência, da legislação trabalhista e à privatização das
estatais. O arco de alianças que promoveu o golpe tem, na maior parte das
situações, força para ignorar estas maiorias. Conseguiu fazê-lo em (mês),
quando impôs a contrarreforma trabalhista. Não repetiu a façanha em (mês),
quando fracassou na contrarreforma política, ao se dividir (uma ala,
capitaneada pela Rede Globo, opôs-se ao novo Fundo Eleitoral).
O arco pró-Golpe é
incapaz, de provocar uma ruptura institucional que leve ao cancelamento
das eleições ou a uma escalada repressiva ilimitada, que signifique prender em
massa as lideranças sociais. Aqui, as comparações com 1964 são descabidas, por
dois motivos cruciais. Não há uma força coesionadora que exerça um
papel nem de longe similar aos dos militares. E, ainda mais importante: não há
um projeto conservador defensável a oferecer à sociedade. O regime militar
sufocou a democracia e violou em massa os direitos humanos – mas promoveu um
processo notável de modernização capitalista, que urbanizou e industrializou o
país. Os golpistas de hoje defendem o trabalho rural não remunerado, permitiram
a disparada do preço do gás de cozinha (a ponto de provocar a volta da lenha) e
reintroduziram o
trabalho de gestantes e lactantes em locais insalubres…
Há duzentos anos, Napoleão Bonaparte já ensinava: nem que tivessem a força das
baionetas, poderiam sentar-se sobre elas.
A vitória da coalizão
conservadora em 24/1 colocou-a na ofensiva, mas não resolve o impasse
tático desenhado desde o ano passado. Uma nova batalha se aproxima.
Após
reduzir novamente suas próprias ambições, os golpistas
tentarão impor, em fevereiro, a contrarreforma da Previdência. Será, acima de
tudo, uma disputa simbólica. As medidas foram tão desidratadas que não
provocarão efeito sensível algum sobre o Orçamento, por décadas. Busca-se acima
de tudo produzir um sinal de força. O pior a fazer, às vésperas do combate, é
dar por perdida a guerra contra o golpe.
2. A disputa sobre o futuro do
país, após o colapso da Nova República, não está definida. Nela, Lula tem papel
decisivo
Por que Lula, normalmente tão
moderado e conciliador, tornou-se o grande alvo dos conservadores? Por que os
jornais da velha mídia destacam, em clara atitude de torcida (1 2 3), a
possibilidade de pulverização das candidaturas de esquerda? Para encontrar a
resposta, é preciso examinar o papel crucial que as eleições de 2018 assumiram.
Em maio de 2016, a Nova República
desabou, depois de trinta anos. O pacto de governabilidade com presidentes
moderados e oposição civilizada se desfez. Mas o que virá em seu lugar? No
momento, há duas alternativas possíveis. A primeira implica reverter o golpe,
restabelecer a democracia e abrir caminho para o choque democrático de projetos
– agora, enfim, mais explícito, menos amortecido. Interessa a todas as
formações políticas à esquerda (do PT ao Ocupa Política, formado em
dezembro, numa reunião em Belo Horizonte). Serve, mais que isso, a um vasto
leque de movimentos sociais que não desconsideram a política institucional –
embora queiram ir muito além dela.
A opção é um cenário de
normalização do golpe, de vitória do Estado ultraliberal, de anulação da
política enquanto possibilidade real de transformar a sociedade. Neste
horizonte, os retrocessos pós-2016 consolidam-se. A Emenda Constitucional 95
mantém bloqueada a chance de políticas públicas criativas e robustas; degrada o
SUS e os tímidos avanços na Educação pública – como as novas Universidades e
escolas técnicas. A renda trilionária do petróleo é entregue às transnacionais.
As contrarreformas Trabalhista e da Previdência rebaixam de forma duradoura as
condições de vida (e de luta, principalmente) dos assalariados. Uma
contrarreforma Tributária, já em tramitação,
retira
recursos essenciais da Seguridade. Firma-se a ideia de que não há
nem direitos sociais, nem comum – apenas um mercado em que
sobrevivem os “mais aptos”. O Estado brasileiro regride à condição pré-1930: a
de mero garantidor da lei, da ordem, da segurança pública e da “Justiça”.
O que menos interessa ao bloco
conservador é deixar explícito o choque entre os dois cenários. O
ultraliberalismo não resiste à democracia. Se puder enxergar o que está em
jogo, a vasta maioria da população fará sua escolha. É esta a razão da
impressionante dianteira de Lula em todas as pesquisas de opinião, após quatro
anos sob bombardeio diário da mídia, do Judiciário, dos políticos tradicionais.
Retirá-lo do jogo, a esta altura, borraria os contornos da batalha. Guilherme
Boulos, por exemplo – um possível candidato do PSOL – está muito à esquerda de
Lula, mas não expressa, para a grande maioria do eleitorado, a possibilidade de
um outro país.
Mais: perseguido, Lula
compreendeu que sua única saída é desafiar os que o agridem. Ao fazê-lo, mantém
a disputa viva, ganha tempo, impede que a superioridade atual de forças do arco
conservador encerre o jogo. A intenção dos que deram o golpe é
consolidar, por décadas, seu projeto de retrocessos. Mas os dados ainda estão
rolando.
3. A fragmentação da esquerda não
se consumou
A estratégia peculiar de Lula
diante da decisão do TRF-4 está delineada, por ele mesmo, em dois discrusos
memoráveis: o que fez na Praça da República, em São Paulo, horas depois de
recondenado; e o que proferiu cerca de doze horas depois, ao aceitar a
indicação de sua pré-candidatura à Presidência. Três decisões destacam-se
em suas falas – todas coerentes com o propósito de não jogar a toalha.
Primeira: a candidatura será
mantida até o fim, em desafio à tentiva de tolhê-la por expediente judicial.
Esta atitude tira proveito de uma brecha, na ambígua Lei da Ficha Limpa. Não há
cassação automática de candidatos. Registrada uma postulação à Presidência, até
20 de agosto, é preciso que alguém requeira sua nulidade ao Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Cabem recursos, a esta própria corte e ao STF. Como o primeiro
turno das eleições ocorrerá em 6 de outubro, será quase impossível evitar que a
imagem de Lula, a temida jararaca,apareça para os eleitores nas urnas
eletrônicas.
Segunda: Lula retomará as
caravanas, já em fevereiro – e concorrerá mesmo em caso de vir a ser preso,
como deixou implícito na fala de 25/1. E para deixar claro o caráter opositor
de sua candidatura, lançará, em fevereiro, uma nova Carta aos Brasileiros
– desta vez “dirigida à sociedade, não aos mercados financeiros”. É
possível, especula-se que o documento inclua propostas de simbiolismo rebelede
– entre elas, a tributação das grandes fortunas e dos dividentos auferidos
pelos capitalistas, acompanhada pela insenção de Imposto de Renda para os que
ganham até R$ 5 mil. A prisão, se houver, ocorrerá a partir de abril. Ou seja:
resta tempo para criar uma situação em que o encarceramento será visto como uma
represália das elites a quem desafia a ordem pós-golpe e a agenda de
retrocessos.
Terceira: Não se busca uma
unidade forçada da esquerda. Desse modo, evitam-se polêmicas que seriam
desgastantes e constroi-se uma cena curiosa. Livre ou encarcerado – mas, em
qualquer caso, sob o tacão do Judiciário – Lula permanecerá, durante toda a
campanha como um símbolo; como uma possibilidade, talvez hipotética, de outro
futuro. Quanto mais reais forem os riscos de ser cassado, menos seus
adversários poderão atacá-lo impunemente. À sua sombra, outras candidaturas
terão espaço para crescer – Ciro, Manuela, Boulos, Ouriques? O espaço estará
aberto, a sorte lançada.
Precisamente neste espaço,
poderão crescer, também, ideias e projetos que transcendem a mera disputa
eleitoral. Destaca-se a de submeter os principais atos do golpe a Referendos
Revogatórios. Se conduzida a partir dos movimentos sociais e da sociedade
civil, ela permitirá ir além da resistência simbólica ao projeto de país
regredido; estimular a população a examinar concretamente os sentidos da agenda
de retrocessos em curso; em especial, a pensar alternativas.
Em sua intuição política
formidável, Lula parece ter identificado um caminho. Uma esquerda triste reluta
em enxergá-lo.