sábado, 10 de março de 2018

Os militares estão voltando a dar as cartas na América Latina?


Após anos de confrontação na sociedade brasileira, corroída pela corrupção, que afeta também Michel Temer, não se descarta um golpe militar à moda antiga, que implementaria uma severa repressão contra partidos de esquerda, deixando apenas Nicarágua, Equador e Bolívia como os únicos países fora do eixo rearmado pelos EUA

Germán Gorraiz López – TeleSur | em Carta Maior

O Brexit e o triunfo de Trump ficarão marcados na história como o ponto que encerrou o “cenário teleológico” no qual a finalidade dos processos criativos era planejada por modelos finitos, que podiam moldar ou simular vários futuros alternativos e nos que primava a intenção, o propósito e a previsão, o que agora foi substituído pelo “cenário teleonômico”, marcado por doses extremas de volatilidade. Assim, assistiremos o final da hegemonia dos Estados Unidos e de seu papel de guardião, que dará lugar a uma nova doutrina multipolar, uma geopolítica baseada no reequilíbrio entre o trio Estados Unidos, China e Rússia (G3), o que, na América Latina, tende a significar uma nova onda involucionista, com o inequívoco objetivo de derrubar os governos insubmissos aos interesses norte-americanos e dar lugar a renovados regimes militares autocráticos, o que afetará países como Brasil, Venezuela, Equador, Nicarágua e Bolívia.

México, o Estado falido

Devido ao “caos construtivo” exportado pelos Estados Unidos, e plasmado na guerra contra os cartéis do narcotráfico – que se fortaleceu no país a partir de 2006 –, o México passou a ser um Estado falido, tendo como grande paradigma a Cidade de Juárez, a mais insegura do mundo, com uma média anual de mortes violentas superior ao total do Afeganistão em 2009. Para evitar o previsível auge dos movimentos revolucionários anti estadunidenses, acontecerá um processo de intensificação da instabilidade interna do México, até completar sua total balcanização e submissão aos ditados norte-americanos. Assim, a política anti imigração de Trump, aliada ao protecionismo econômico – com a redefinição do NAFTA, o tratado de livre comércio da América do Norte – e a implementação de taxas aduaneiras aos produtos mexicanos, levará a uma severa constrição das exportações de produtos mexicanos aos Estados Unidos, e também da entrada de remessas de dólares ao México, o que poderia aprofundar a crise econômica e social, desencadeando conflitos e distúrbios sociais, além de uma provável regressão das liberdades democráticas e um possível regresso a cenários que se pensavam já superados, como a intervenção do Exército nas instituições, como “garantia da ordem constitucional”.

Cuba e a Crise dos Mísseis

Na suposição de que Donald Trump mantenha intacto o anacrônico embargo sobre a ilha, poderia surgir o desapego afetivo do regime cubano a respeito dos Estados Unidos, e será aproveitado pelo hábil estrategista geopolítico Vladimir Putin para assinar um novo tratado de colaboração militar russo-cubana (rememorando o Pacto Secreto assinado em 1960, em Moscou entre Fidel Castro e Nikita Khrushchov) que incluiria a instalação de uma base de radares na abandonada base militar de Lourdes, para escutar comodamente os sussurros de Washington, além de outras bases dotadas com mísseis Iskander, podendo reviver a famosa Crise dos Mísseis de outubro de 1962, e a posterior assinatura do Acordo de Suspensão de Provas Nucleares, entre Khrushchov e Kennedy.

Nicarágua na mira do Pentágono

A China havia assumido o desafio de construir um novo canal na Nicarágua (Grande Canal Interoceânico) – similar ao canal do istmo de Kra, que tem projetado para a região entre Tailândia e Birmânia, buscando driblar o Estreito de Malaca, que se tornou uma via marítima saturada e afetada por ataques de piratas. Em 2010, foi inaugurado o gasoduto que une a China com o Turcomenistão, que rodeia a Rússia, para evitar que o país seja dependente da Rússia energeticamente, ao mesmo tempo em que diversifica suas compras. Com tudo isso, os Estados Unidos pretendem desestabilizar o governo de Daniel Ortega, dentro de sua estratégia geopolítica global de secar as fontes energéticas chinesas. Por outra parte, a instalação, em abril passado, de uma estação de satélites russa em Managua, para “controlar o narcotráfico e estudar os fenômenos naturais” havia provocado o nervosismo do Pentágono, que acusa a Rússia de “estar usando a Nicarágua para criar uma esfera de espionagem militar”, mediante o Sistema Global de Navegação por Satélites (Glonass), o equivalente ao GPS estadunidense. Em consequência, o Congresso norte-americano aprovou recentemente o projeto de lei conhecido como Nica Act (Nicaraguan Investment Conditional, ou “Condicional de Investimentos na Nicarágua”), que segue a estratégia kentiana de congelar os empréstimos internacionais de instituições satélites dos Estados Unidos (Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento) à Nicarágua com o objetivo claro de provocar sua inanição financeira e posterior asfixia econômica.

O futuro incerto da Venezuela

Na Venezuela, a decisão de Maduro de confiscar a planta da General Motors será vista pela Administração Trump como um atentado contra os interesses das multinacionais estadunidenses, cenário que será aproveitado pelo Secretário de Estado Rex Tillerson – que era CEO da Exxon Mobil quando esta foi nacionalizada por Hugo Chávez, em 2007 – para tentar um golpe contra o país sul-americano. A Exxon Mobil formaria parte de um grupo que é um verdadeiro poder entre as sombras, que toma as decisões na política exterior através de Tillerson. A revolução chavista já foi declarada “inimiga perigosa dos Estados Unidos”. Assim, após uma sistemática e intensa campanha desestabilizadora, que incluirá o desabastecimento seletivo de artigos de primeira necessidade, a amplificação nos meios do crescente clima insegurança e das sanções econômicas, poderíamos assistir a uma intervenção mais forte, para acabar de vez com o legado chavista na Venezuela.

Novo governo militar no Brasil?

O Brasil forma parte dos chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e embora se descarta que esses países formam una aliança política como a União Europeia ou a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, em sua sigla em inglês), tais países têm o potencial de formar um bloco econômico com um status maior que o do atual G8 – estima-se que em 2050 essas cinco nações juntas terão mais 40% da população mundial, e um PIB combinado de 34,9 trilhões de dólares). O Brasil tem um papel fundamental neste novo tabuleiro geopolítico desenhado pelos Estados Unidos para a América Latina, já que o considera um aliado potencial na cena global, ao qual poderia apoiar para sua aceitação como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, o que levaria a um aumento do peso específico do Brasil na geopolítica mundial, caso o país aceite cumprir a tarefa de ser o guardião dos neoconservadores na América do Sul.

Entretanto, Dilma Rousseff exigiu dos Estados Unidos explicações convincentes sobre as razões da Agência de Segurança Nacional (NSA) para violar as redes de computadores da petroleira estatal Petrobras, o que foi o estopim do “caos construtivo” criado para desestabilizar o país e levar à derrubada do mandato da presidenta. Após anos de confrontação na sociedade brasileira, corroída pela corrupção, que afeta também o atual presidente Michel Temer, não se descarta um golpe militar à moda antiga, que implementaria uma severa repressão contra os partidos de esquerda, deixando apenas Equador, Nicarágua e Bolívia como os únicos países fora do eixo rearmado pelos Estados Unidos, mas que terminariam sendo presas fáceis.

Assim, venceria novamente a máxima perseguida pela Doutrina Monroe: “a América para os americanos”.

BRASIL | O Areal da Baronesa: tradição, samba e resistência

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil
   
No limite entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus, o Areal da Baronesa - antigo território negro na capital gaúcha – popularizou-se devido à presença das casas de religião de matriz africana, ao seu carnaval de rua, ao futebol (Liga da Canela Preta) e às tradicionais rodas de samba.
  
A modernidade e os interesses econômicos atropelaram a tradição, removendo grande parte de seus moradores para regiões periféricas da cidade, a exemplo do bairro Restinga Velha. Outros resistiram e permaneceram na Avenida Luiz Guaranha, que, na realidade, é uma rua sem saída. Considerado um quilombo urbano, ali vivem em torno de 80 famílias. O nome Guaranha é uma referência a um italiano - caixeiro-viajante - que, até meados dos anos 80, alugava casebres reformados por ele. 

O Famoso Solar

A origem do nome Areal da Baronesa está ligada à chácara de Maria Emília de Menezes Pereira (1802-1888), herdada do seu esposo João Baptista da Silva Pereira (1797-1853), o Barão do Gravataí. Proprietário de um estaleiro, ele construiu, em 1826, um imponente solar, onde hoje se encontra o Instituto Pão dos Pobres. Naquele local, havia uma extensa área de terras, cuja espessa vegetação servia de esconderijo para os escravizados fugidos de seus donos. Ainda permanece no lugar o portão principal do antigo Solar como marca de um passado imperial.   

No ano de 1845, D. Pedro II e sua esposa Theresa Cristina se hospedaram no famoso solar. Graças à hospitalidade do proprietário, o imperador lhe conferiu o título de Barão do Gravataí.

A origem do nome


O nome Areal da Baronesa é devido à areia avermelhada que ali existia próximo ao Guaíba e à figura da baronesa do Gravataí, cujo título nobiliárquico foi dado por D. Pedro II, em 1853, após a morte do esposo. As ruas, nominadas com os respectivos títulos nobiliárquicos, cruzam-se numa esquina no bairro Cidade Baixa: Barão do Gravataí e Baronesa do Gravataí. Além do solar, segundo a tradição, havia uma residência de veraneio do casal, localizada na esquina da Avenida Luiz Guaranha com a Rua Baronesa do Gravataí. Esta aguarda, há algum tempo, que se efetive uma restauração por meio de órgãos competentes.

Após o incêndio do solar, em 1875, a baronesa enfrentou uma crise econômica que a levou lotear a imensa propriedade. Após a sua morte, em 1888, o lugar passou a ser ocupado por negros alforriados da senzala da chácara.

O Carnaval no Areal da Baronesa e o Primeiro Rei Momo Negro

Adão Alves de Oliveira (1925-2013), o seu Lelé, foi o primeiro Rei Momo Negro, coroado no Areal da Baronesa, reinando de 1949 a 1952. A partir dos anos 30, ali  surgiram blocos carnavalescos, como “Ases do Samba”, “Seresteiros do Luar”, “ Nós os Democratas”, “Viemos de Madureira”, “X do Problema”, a tribo carnavalesca “Os Caetés” e “Tô com a vela”. Este último, liderado pelo célebre Rei Momo Vicente Rao (1908-1972), foi um bloco de humor onde os homens se travestiam. Os blocos, com esta característica, foram extintos, em 1970, durante o regime militar.

O samba do Bar da Doca, que se localizava na Rua Barão do Gravataí, iniciava na sexta-feira às 21 horas e seguia até a madrugada da segunda-feira. Os amigos Ben Hur, Quinzinho, Vando e Setembrino, entre outros nomes, ficaram famosos nas rodas de samba que ali ocorriam.  

Com imensa torcida e 19 títulos, a Sociedade Recreativa Beneficente  Imperadores do Samba (1959) tem suas raízes no Areal da Baronesa. Nos anos 70, Bedeu e Leleco fundaram o Grupo Pau Brasil. Oriundos também da comunidade do Areal, esta dupla é precursora do samba-rock.  

De 1994 até 2003, a Academia de Samba Integração do Areal da Baronesa competiu no Carnaval de Porto Alegre. Totalizando em torno de 70 crianças, a bateria mirim Areal da Baronesa do Futuro, sob a coordenação de dona Cleusa Astigarraga, continua a tradição do eterno berço do samba.

O Quilombo do Areal da Baronesa é reconhecido por lei


O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicado no Diário Oficial da União, em julho de 2013, reconheceu o lugar como área remanescente de escravizados.

Em 11 de julho de 2015, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati entregou à comunidade do Areal da Baronesa a Lei nº 11.871, que dá titulação ao lugar como terras oriundas de quilombos.  Se o Rio de Janeiro teve a Praça Onze, como berço do samba e  as baianas da tia Ciata, Porto Alegre ainda tem o Areal da Baronesa como resistência da tradição africana.

*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Museu de Comunicação HJC


Imagens
1-  Bloco X do Problema / Revista do Globo 1949 / Acervo Musecom 
2- Grupo de sambistas / Ben Hur, Quinzinho, Vando e Setembrino / Acervo  João Décio R dos Santos.
3-  Primeiro Rei Momo Negro : seu Lelé 

Bibliografia
MATTOS, Jane Rocha de. “Que arraial que nada, aquilo lá é um areal”: O Areal da Baronesa: Imaginário e História (1879-1921). Mestrado em história. PPGH-PUCRS, Porto Alegre, 2000.
SANTOS, Irene (org.). Colonos e Quilombolas / Memória fotográfica das Colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura,  2010.
CORAG – A Territorialidade Negra no Rio Grande do Sul – A luta dos remanescentes de Quilombos no Estado. Porto Alegre / 2003.
PORTO ALEGRE, Achyles. História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1940.

Grupo de alunos duvida que Passos possa ensinar quem tem um grau académico superior ao seu


Abaixo-assinado aponta dúvidas relativamente à competência académica do ex-primeiro-ministro e protesta contra "salário obsceno do novo docente", equiparado ao de professor catedrático.

Um grupo de alunos do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) pôs em circulação um abaixo-assinado que se opõe à contratação de Pedro Passos Coelho pela instituição “na qualidade de professor convidado catedrático”. Segundo o documento, a que o PÚBLICO teve acesso, o vínculo entre o ex-primeiro-ministro e o ISCSP “representa a materialização de uma afronta à transparência e à meritocracia da instituição", na opinião dos alunos responsáveis pelo documento.

No texto — que faz questão de reconhecer a “vasta experiência prática” de Passos Coelho, em particular “na componente de Administração Pública”— os alunos sentem que Passos Coelho não tem as qualificações necessárias para assumir o cargo para o qual foi convidado: “A sua capacidade para leccionar aulas a discentes com um grau académico superior ao seu é altamente questionável”, aponta o texto, referindo-se ao facto de o ex-primeiro-ministro leccionar alunos de mestrado e doutoramento do curso de Administração Pública. "Nunca leccionou, nunca preparou uma tese na sua vida, nunca trabalhou em investigação e nunca teve um percurso académico minimamente relevante seja capaz de preparar alunos de mestrado e doutoramento", referem os estudantes, justificando desta forma a sua descrença nas capacidades de Passos Coelho.

Para além de apontarem ao ex-primeiro-ministro lacunas ao nível da sua formação académica, o abaixo-assinado refere também que, com a contratação de Passos Coelho, o corpo docente é “altamente lesado naquilo que é a sua integridade, honra, deontologia e igualdade de oportunidades”. O salário de Passos Coelho — que será remunerado ao nível de professor catedrático, em função da carga horária — está também debaixo de fogo: “o salário obsceno do novo docente (tendo em conta a sua formação académica) é uma ofensa grave à meritocracia inerente ao percurso académico normal de um docente universitário”, apontam os autores.

Os autores do abaixo-assinado pretendem afastar qualquer suspeição de motivação política, sublinhando no texto que o documento “não tem um teor político” e afirmando que, para além dos alunos do ISCSP, o caso tem sido interpretado pela generalidade da sociedade portuguesa.

Fonte ligada ao corpo estudantil da instituição disse ao PÚBLICO que “o abaixo-assinado proveio de um grupo de alunos que se revoltou com a situação”. O objectivo deste acto é, segundo o aluno, perceber a posição do corpo estudantil em relação à questão e motivar o debate no seio do ISCSP em torno da contratação de Passos Coelho. “Este abaixo-assinado não é nada contra Pedro Passos Coelho”, refere a mesma fonte, garantido a pluralidade de cores políticas envolvidas na concretização do documento. Pretende-se que o abaixo-assinado seja debatido e votado em Assembleia Geral de Alunos ainda durante o mês de Março, para que seja tomada uma “posição vinculativa” em relação ao que consta no texto.

Passos Coelho será, como foi noticiado pelo Jornal de Negócios no início do mês, docente em três universidades portuguesas — públicas e privadas. As áreas em que o antigo presidente do PSD irá leccionar são Administração Pública e Economia. No ISCSP, em particular, leccionará os alunos de mestrado e doutoramento de Administração Pública, sendo remunerado em função da carga horária como professor catedrático — que representa o topo de carreira de docente. O instituto é actualmente presidido pelo ex-deputado eleito nas listas do PSD Manuel Meirinho Martins.

Por: Miguel Dantas | Texto editado por Hugo Torres | Público

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PORTUGAL | Um cartel fechado em copas


O que se passa mesmo é que a mesa da nossa Assembleia da República se permite chumbar leis que foram aprovadas com os votos presentes em plenário (e vice-versa.

Rui Tavares | Público | opinião*

No passado dia 21 de janeiro ficámos a saber, através de um artigo de Miguel Marujo no Diário de Notícias, que na Assembleia da República há projetos de lei que são rejeitados quando há mais votos a favor e outros que são aprovados quando há mais votos contra. Na altura de contar os votos, a mesa da Assembleia decide contar também com os deputados que estão ausentes, e atribui automaticamente os votos destes à bancada parlamentar de que fazem parte. Em Portugal, na sede da nossa soberania, vota-se em corpo mas também em espírito — e, pois claro, como se o espírito pertencesse ao partido.

Esta bizarra situação, singular entre parlamentos dignos desse nome em qualquer parte do mundo, gerou comentários na imprensa e nas redes. Só houve quem ficasse calado onde era mais importante: na Assembleia da República. Nenhum esclarecimento, nenhuma vinda a terreiro para defender a honra do convento de São Bento, nenhuma informação adicional, nada. Um ou outro leitor ainda aventou a hipótese de as contas estarem erradas, por haver dois sistemas de verificação de presenças no parlamento (um eletrónico e outro manual), mas verificou-se não ser verdadeira essa explicação: o site independente hemiciclo.pt, que primeiro detetou esta prática portuguesa de inventar votos de gente que não votou, já faz a despistagem cruzando os dados de ambos os métodos de verificação. Mais revelador do que isso: se estivéssemos perante um problema de interpretação, certamente teríamos visto a Assembleia da República usar do seu direito de resposta para corrigir o erro, e ela não o fez.

Portanto, o que se passa mesmo é que a mesa da nossa Assembleia da República se permite chumbar leis que foram aprovadas com os votos presentes em plenário (e vice-versa). O que se passa mesmo é que os nossos deputados permitem que os seus votos sejam usados à revelia e por atacado no momento mais sagrado da deliberação num órgão de soberania. E quando descobertos a reação que a instituição e os seus membros têm é ficar silenciosos para ver se passam entre os pingos da chuva. Pelos vistos a Assembleia da República acha isto normal, mas não muito normal — porque nesse caso alguém teria a coragem de admitir que acha normal, e ninguém o faz. Tudo considerado, preferem ficar calados à espera que o problema desapareça.

Pois bem, não há ninguém com um mínimo de respeito pelo parlamentarismo que possa achar isto normal. E permito-me lembrar aqui um célebre constitucionalista português que se demitiu do Conselho de Estado em 2001, quando confrontado com a promulgação de uma lei que tinha sido considerada aprovada apesar de uma maioria de votos contra no parlamento (na última vez, portanto, em que uma situação destas ocorreu antes desta legislatura). Esse constitucionalista chamava-se Marcelo Rebelo de Sousa e é agora Presidente da República.

Ou seja, para piorar a situação, a Assembleia da República não se pronuncia sobre uma situação que a deixa fragilizada perante a possibilidade de um veto presidencial da próxima vez que isto acontecer — isto se o Presidente mantiver a mesma opinião sobre a incostitucionalidade deste método que já tinha em 2001 enquanto conselheiro de estado.

Tudo isto é normal quando os partidos começam a achar que o parlamentarismo começa e acaba com eles. E este não é caso único. A comprovar a tendência está, por exemplo, o facto de quatro partidos — PCP, BE, PS e PSD — terem decidido há dias rejeitar a proposta do PAN para que na discussão das alterações às leis de financiamento partidário (que voltaram ao parlamento após um veto presidencial) fossem ouvidos constitucionalistas, associações cívicas e partidos não-parlamentares.
Para quê, terão pensado estes partidos, ouvir quem quer que seja? Correu tudo tão bem da última vez quando as coisas se decidiram à porta fechada! Se houver algum problema, basta acusar quem se queixar de ser um populista anti-partidos.

*Publicado em 2 de Fevereiro de 2018

O novo arsenal nuclear russo restabelece a bipolaridade do mundo

Thierry Meyssan*

Quando os peritos se interrogavam sobre a possível evolução da ordem mundial em direcção a um sistema multipolar, mesmo simplesmente tripolar, os bruscos avanços da tecnologia militar russa impõem o regresso a uma organização bipolar. Passemos em revista os ensinamentos dos três últimos anos até às revelações do Presidente Putin, a 1 de Março de 2018.

No segundo trimestre de 2012, a Rússia e os seus aliados comprometeram-se à colocação de uma força de paz na Síria assim que o acordo de Genebra fosse concluído.

Mas tudo se passou de outro modo quando a França relançou a guerra, em Julho de 2012. Muito embora a Rússia tenha feito reconhecer a Organização do Tratado de Segurança Colectiva pela ONU afim de colocar soldados muçulmanos, principalmente do Cazaquistão, nada se alterou. Apesar dos apelos de Damasco por ajuda, Moscovo ficou muito tempo silenciosa. Só três anos mais tarde é que a Força Aérea russa chegou e bombardeou as instalações subterrâneas dos jiadistas.

Durante os três anos seguintes, diversos incidentes militares opuseram a Rússia aos Estados Unidos. O Pentágono queixou-se, por exemplo, da estranha agressividade dos bombardeiros russos que se aproximavam das costas dos EUA. Em Damasco, havia interrogações sobre o silêncio de Moscovo (Moscou-br) e questionava-se se havia esquecido os seus compromissos. Mas, nada disso se passava. A Rússia preparava em segredo um novo arsenal e só desembarcou quando achou que estava pronta.
Volta ao ponto de partida: o mundo é de novo bipolar. Os Estados Unidos, convencidos da sua superioridade, não deram conta da recuperação militar da Rússia.
Desde o início da sua intervenção, o seu exército instalou um sistema, não de empastelamento, mas de desconexão dos comandos da OTAN, num raio de 300 quilómetros à volta de Latakia. Em seguida, implantou o mesmo sistema no Mar Negro e em Kaliningrado. Além dos seus novos aviões, a Rússia usou mísseis de cruzeiro mais precisos que os dos EUA, disparados pela sua marinha a partir do Mar Cáspio. No mês passado, ela testou no campo de batalha, aviões multi-tarefas possuindo várias capacidades desconhecidas até agora.

Parece que, segundo os generais dos EUA no terreno, o exército russo dispõe agora de forças convencionais mais eficazes do que as dos Estados Unidos. No entanto, os seus homólogos do Pentágono ainda duvidam desse progresso, tão convencidos estão de ser eternamente superiores militarmente. Segundo eles, é simplesmente ridículo comparar os dois exércitos, tendo o seu um orçamento oito vezes superior. Todavia, jamais na ciência militar se comparou o desempenho de dois exércitos rivais com base apenas no montante dos seus orçamentos, o que Vladimir Putin sublinhou evocando a qualidade excepcional dos seus soldados em comparação com a dos Estados Unidos.

Seja como for, se os Russos são um pouco melhores em matéria convencional, eles não podem implantar-se em vários teatro de operação simultâneos e Washington conserva a sua superioridade nuclear.

A entrada na guerra, a 24 de Fevereiro de 2018, da infantaria russa na Ghuta de Damasco é, claro, a consequência de um acordo com os Estados Unidos que se comprometeram a não se imiscuir mais na Síria e, portanto, a não repetir o assédio que montaram contra o Exército Vermelho no Afeganistão. É também um sinal que o Pentágono agora teme que o exército russo lhe dê o troco, por todo lado, a nível mundial.

E é precisamente neste contexto que o Presidente Putin questiona a superioridade nuclear dos EUA. Durante o seu discurso no Parlamento, a 1 de Março de 2018, ele anunciou que o seu país possui um arsenal nuclear impressionante.

Todos estes programas eram já mais ou menos conhecidos há longa data, mas os especialistas só os imaginavam operacionais ao fim de um longo prazo. Ora, a maior parte já o estão. Deve-se perguntar como é que os Russos conseguiram pô-los operacionais sem conhecimento dos serviços de Inteligência dos EUA. Portanto, foi o que eles conseguiram fazer com o Su-57, que testaram em combate há três semanas atrás, enquanto a CIA não o imaginava pronto antes de 2025.

Vladimir Putin revelou o seu novo arsenal. O míssil balístico intercontinental (ICBM) Sarmat (com o nome de um povo russo antigo para quem mulheres e homens eram iguais). Este retoma a técnica da «cabeça orbital« que já assegurara a superioridade russa durante os anos 70, e que a União Soviética tinha abandonado ao assinar e ao ratificar os acordos SALT II. Ora, o Senado dos EUA jamais ratificou esse Tratado, tornando-o obsoleto. Este tipo de míssil, cuja cabeça é em primeiro lugar colocada em órbita, depois reentra na atmosfera e mergulha sobre o seu alvo, tem um raio de acção ilimitada. Os Tratados proibindo a nuclearização do espaço interditam a colocação de uma carga nuclear de maneira perene em órbita, mas não de a fazer entrar no espaço durante uma parte do seu trajecto. No estado actual do conhecimento, ele não pode ser interceptado durante este período. O Sarmat pode surgir na atmosfera e atacar seja quem for, seja em que lugar for.

O míssil Dagger (Kinzhal em russo) que deverá ser lançado a partir de um avião bombardeiro para atingir na atmosfera uma velocidade hipersónica, quer dizer cinco vezes superior à necessária para atingir o limite do som. Esta velocidade vertiginosa torna-o evidentemente impossível de interceptar. Ele foi testado com sucesso há três meses atrás.

A Rússia dispõe também de um motor a energia nuclear (quer dizer de uma central nuclear) que foi miniaturizado ao ponto de poder equipar um míssil de cruzeiro com carga nuclear. Tendo os mísseis de cruzeiro um trajecto imprevisível e este motor possuindo uma autonomia quase infinita, torna-os de momento imparáveis.

Este motor, colocado num drone submarino, permite-lhe transportar a uma velocidade várias vezes superior à de um submarino convencional, uma carga nuclear considerável. Além dos seus efeitos radioactivos, a carga transportada poderia desencadear um tsunami de 500 metros de altura ao largo de qualquer costa oceânica.

Finalmente, a Rússia tenta desenvolver um projéctil hipersónico, o Vanguarda, que não somente assumiria as características da passagem no espaço do Sarmat e a velocidade do Dagger, mas cuja trajectória poderia além disso ser ajustada no decurso do seu trajecto.

As novas armas nucleares russas foram concebidas para tornar inoperante o «escudo» anti-mísseis que o Pentágono desenvolve, com base após base, em todo o mundo desde há uns quarenta anos. Não se trata de um problema de força superior, mas de concepção técnica. O princípio do escudo não providencia nenhuma defesa possível face a eles.

Pior, o Presidente Putin anunciou igualmente a concretização de uma arma laser da qual manteve as características em segredo. Parece que ela é capaz de interceptar uma parte dos vectores de lançamento dos EUA.

De momento, os estados-maiores dos países membro da OTAN não creem numa palavra destas alegações, uma vez que essas armas parecem a seus olhos ciência-ficção.

Ora, a história ensinou-nos que a Rússia, o país do xadrez, não do póquer manhoso, jamais faz “bluff” a propósito do seu arsenal. Ela fez crer variadas vezes que armas em desenvolvimento estavam já operacionais, mas, oficialmente, jamais anunciou em «prontidão de combate» armas que ainda não o estavam. As mais de 200 novas armas empregues na Síria convencem-nos do avanço tecnológico dos seus cientistas.

Os imensos avanços da Rússia fizeram perder aos Estados Unidos o privilégio do golpe de surpresa. De agora em diante, em caso de guerra nuclear, os dois Grandes poderão atingir-se em igualdade de circunstâncias. Os EUA disporão de um número consideravelmente mais elevado de mísseis com cargas nucleares, e a Rússia estará à altura de interceptar um grande número deles. Tendo cada um a capacidade de devastar o planeta várias vezes, os dois encontram-se teoricamente de novo em igualdade neste tipo de confronto.

Da parte dos EUA, o complexo militar-industrial está em pane desde há uma vintena de anos. O projecto mais importante de aviónica da história, o F-35, devia substituir, ao mesmo tempo, os F-16, F-18 e F-22, mas a Lockheed Martin foi incapaz de conceber os softwares anunciados. O actual F-35 é, na realidade, totalmente incapaz de preencher as suas especificações e a Força Aérea dos EUA encara retomar a produção das aeronaves antigas.

É certo que o Presidente Donald Trump e a sua equipe decidiram atrair novos cérebros aos Estados Unidos para relançar a produção de armamento e forçar o lóbi militar-industrial a responder às necessidades do Pentágono, em vez de continuar a vender-lhe as mesmas velhas carcaças. Mas precisará, pelo menos, vinte anos para recuperar o atraso acumulado.

Os progressos técnicos da Rússia não só mudam a ordem mundial, restaurando, contra toda a expectativa, um sistema bipolar, como forçam também os estrategas a repensar a guerra.

A história ensinou-nos que poucos homens concretizam no imediato mudanças de paradigma militar. No século XV, quando os exércitos francês e inglês travaram a batalha de Azincourt, os cavaleiros franceses, com pesadas armaduras, foram esmagados pelos arqueiros e besteiros ingleses a pé, embora inferiores em número. No entanto, os generais persistiram em privilegiar o corpo a corpo em vez do combate à distância com flechas e balas de canhão. Viu-se ainda durante um século cavaleiros em armadura deixarem-se massacrar nos campos de batalha.

Por exemplo, nenhuma batalha de tanques teve lugar depois da derrota do Presidente Hussein, em 1991, durante a Operação Tempestade do Deserto. Ora, a quase totalidade dos exércitos não soube interpretar o que se passou. A vitória, em 2006 de pequenos grupos de Resistentes do Hezbolla contra os os carros blindados Merkava israelitas mostrou de maneira indubitável a vulnerabilidade deste tipo de armas. Raros foram os Estados que daí tiraram conclusões, salvo a Austrália e a Síria por exemplo. A própria Rússia persiste em produzir enormes fortalezas rolantes que não resistirão aos seus próprios RPG correctamente manejados.

O arsenal russo é imbatível, pelo menos se alguém o tentar enfrentar com métodos antigos. É, por exemplo, impensável interceptar projéteis hipersónicos. Mas, talvez se possa controlá-los antes que eles atinjam essa velocidade. As pesquisas militares irão, pois, orientar-se para o controle de comandos e comunicações inimigas. Azar, também neste domínio os Russos estão à frente.



* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

O que está em jogo num encontro entre Trump e Kim?


Cúpula entre os chefes de Estado americano e norte-coreano anunciada para maio desperta esperanças quanto à distensão da crise intercontinental. Confira seis perguntas e respostas sobre a reunião histórica.

Nesta quinta-feira (08/03), uma notícia surpreendeu o mundo: o governo da Coreia do Sul anunciou que o presidente americano, Donald Trump, e o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, concordaram em se encontrar.

Após mais de um ano de tensões com o presidente americano, Kim propôs uma reunião a Trump e lhe ofereceu interromper o programa nuclear e de mísseis de seu país para iniciar uma negociação. O encontro histórico foi anunciado para maio. Confira o que está em jogo:

Quão importante seria um encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un?

O encontro de mais alto escalão entre um representante dos Estados Unidos e um da Coreia do Norte transcorreu há quase duas décadas, quando, em 2000, a então secretária de Estado americana, Madeleine Albright, reuniu-se em Pyongyang com Kim Jong-il, então líder norte-coreano e pai de Kim Jong-un.

Por diversas vezes, ex-presidentes dos EUA visitaram o país asiático, a fim de mediar conflitos. Em 1994 Jimmy Carter conseguiu evitar a ameaça de uma escalada militar, e em 2010 ajudou na libertação de um cidadão americano preso.

Bill Clinton esteve em 2009 na Coreia do Norte, numa missão semelhante, conseguindo trazer duas jornalistas de volta para seu país. Durante essa viagem, houve também um encontro direto entre o ex-presidente e o então líder Kim Jong-il. As fotos dos dois políticos lado a lado rodaram mundo.

Para Trump, há muito em jogo num encontro com o líder norte-coreano: um avanço no conflito estagnado seria seu maior êxito de política externa, em mais de um ano de mandato.

Para Kim, não é de se subestimar o elemento de prestígio: justamente ele, o provocador nuclear basicamente isolado, seria o primeiro dirigente norte-coreano a obter um encontro com um chefe de Estado americano.

O que aconteceu antes do anúncio da cúpula?

O ano de 2017 foi dominado por uma guerra verbal entre os dirigentes americano e norte-coreano, acompanhada por uma série de provocações militares. Em seu discurso de Ano Novo, Kim anunciou, por um lado, que seu país era agora capaz de atingir todos os Estados Unidos com seus mísseis.

Por outro lado, porém, voltou a adotar um tom mais brando em relação a Seul, após longo período de silêncio. Ele mencionou o possível envio de uma delegação norte-coreana para os Jogos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang; e propôs um encontro preparatório entre representantes governamentais de ambos os lados.

A Coreia do Sul reagiu positivamente à oferta, e poucos dias mais tarde delegados do Norte e do Sul sentavam-se juntos para dialogar. O resultado foi uma ofensiva de charme sem precedentes durante os Jogos de Inverno, com desfile conjunto de ambas as Coreias sob uma bandeira neutra – tudo isso sob os olhos de Kim Jo-yong, irmã de Kim Jong-un.

Ela foi o primeiro membro da dinastia Kim a pisar em solo sul-coreano desde a divisão da península, sendo recebida diversas vezes pelo presidente Moon Jae-in.

Os temores de que a fase de distensão terminaria com o fim dos Jogos não se confirmaram. No início de março, uma delegação governamental sul-coreana, liderada pelo assessor de Segurança Nacional, partiu para Pyongyang em viagem oficial, pela primeira vez desde a posse de Kim Jong-un.

Logo em seguida, Seul divulgou que no fim de abril haverá um encontro entre Moon e Kim. O último encontro de cúpula entre as duas Coreias realizou-se em 2007, entre Kim Jong-il e o então presidente sul-coreano, Roh Moo-hyun.

O que exige e o que oferece a Coreia do Norte?

O assessor de Segurança Nacional da Coreia do Sul levou diversas mensagens a Trump. Segundo estas, Kim Jong-un estaria disposto a conversar sobre uma desnuclearização total de Península da Coreia, se a segurança de seu país for garantida.

Além disso, Kim assegurou que não haverá testes atômicos ou balísticos enquanto estiverem transcorrendo as conversas bilaterais entre seu país e os EUA. E declarou-se disposto a aceitar a manutenção dos exercícios militares regulares sul-coreano-americanos. Até então, Pyongyang impunha o fim dos treinos como pré-condição para o diálogo.

Como reagem China, Coreia do Sul e Japão?

Antes do anúncio do surpreendente encontro entre Kim e Trump, o ministro do Exterior da China, Wang Yi, se manifestara numa coletiva de imprensa à margem do Congresso Nacional do Povo, em Pequim, a favor de um intercâmbio entre os EUA e a Coreia do Norte.

O Ministério do Exterior chinês referiu-se a sinais positivos entre Washington e Pyongyang: "Estamos felizes de que a Coreia do Norte e os EUA tenham se decidido a dar esse passo", declarou o porta-voz do órgão, Geng Shuang.

Liang Yabin, politólogo da Escola Central do Partido em Pequim em contrapartida, considera os tons conciliadores ainda "superficiais": trata-se de uma "pausa" na crise, mas ainda não de uma "virada estratégica". Em artigo para um jornal da capital, ele argumenta: a Coreia do Norte ainda precisa de tempo até dominar o know-how para a miniaturização das ogivas de seus mísseis de longo alcance e para um reingresso seguro na atmosfera.
Trump, por sua vez, prossegue o especialista chinês, aplicaria uma estratégia calculista de política interna: em novembro realizam-se eleições para o Congresso nos EUA. Se ele conseguisse apresentar uma perspectiva de solução para a crise da Coreia, isso beneficiaria os candidatos de seu Partido Republicano.

Para o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, a conferência de cúpula anunciada é um "ponto de partida para uma península coreana livre de armas nucleares".

O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, saudou a mudança de curso da Coreia do Norte, a qual seria resultado tanto da cooperação entre os EUA e o Japão, quanto da pressão internacional sobre a liderança em Pyongyang.

Segundo noticiou o jornal japonês Asahi Shimbun, antes de sinalizar a disposição para o encontro, Trump teria combinado, em telefonema com Abe, continuar mantendo "pressão máxima" sobre a Coreia do Norte. O político japonês planeja um encontro com o americano ainda em abril.

Quão avançado está o programa nuclear e balístico norte-coreano?

A Coreia do Norte aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear em 1985, sob pressão da União Soviética. Sete anos mais tarde, Pyongyang e Seul declaravam a península coreana zona livre de armas atômicas. Pouco depois, porém, os norte-coreanos negaram aos inspetores da Organização Internacional de Energia Atômica (OIEA) o acesso a suas instalações nucleares.

Em 1994, no acordo básico de Genebra, o país declarou mais uma vez que renunciava a armas nucleares, mas em 2002 os EUA acusaram Pyongyang de continuar desenvolvendo-as. No ano seguinte, os norte-coreanos abandonaram o Tratado de Não Proliferação, e em 2005 admitiram oficialmente possuir armamentos nucleares.

De início, os especialistas se mostraram céticos, mas isso mudou com o primeiro teste nuclear, em 2006, desencadeando criticas por todo o mundo, até mesmo da China, aliada da Coreia do Norte. Seguiu-se uma espiral de sanções e novos testes.

Em 2012, o país alterou sua Constituição, autodeclarando-se potência nuclear. O último teste, até o momento, supostamente envolvendo uma bomba de hidrogênio, realizou-se em setembro de 2017.

Paralelamente ao programa de armas atômicas, a Coreia do Norte avançou na tecnologia de mísseis balísticos. De início dependente do apoio da União Soviética e da China, hoje o país é exportador de tecnologia balística. Ao longo dos anos, conseguiu desenvolver mísseis de alcance cada vez maior.

Pelo menos desde 2016 Pyongyang trabalha no desenvolvimento de mísseis intercontinentais com alcance de mais de 10 mil quilômetros, capazes de atingir o território dos Estados Unidos, com os quais realizou alguns testes.

No momento não há dados conclusivos sobre a confiabilidade e precisão dos mísseis intercontinentais norte-coreanos, nem sobre até que ponto o país está apto a instalar ogivas nucleares miniaturizadas nos sistemas portadores.

Que papel desempenham as sanções contra a Coreia do Norte?

Desde 2006 o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou 11 resoluções com novas sanções ou o endurecimento das existentes contra a Coreia do Norte. A última foi em dezembro de 2017, em resposta ao teste com um míssil intercontinental: a Resolução 2.397 restringe ainda mais os fornecimentos de petróleo vitais para o país, entre outros pontos.

Os Estados-membros da ONU estão autorizados a fiscalizar se navios em suas águas territoriais levam carregamentos de petróleo proibidos para a Coreia do Norte. Os "trabalhadores-hóspedes" norte-coreanos no exterior deverão ser enviados de volta a seu país, num prazo de 24 meses. Essa mão de obra emprestada é uma importante fonte de divisas para o regime.

Além disso, os EUA impuseram um grande número de sanções unilaterais. Na mais recente, em 23 de fevereiro, o Departamento de Estado aplicou medidas punitivas contra 55 navios, transportadoras navais e empresas comerciais norte-coreanas. Trump disse tratar-se das "sanções mais pesadas" já impostas. Os aliados China e Rússia criticam as medidas unilaterais, mas são obrigados a aplicar as impostas pela ONU.

Em novembro de 2017 o então ministro do Exterior da Alemanha, Sigmar Gabriel, declarou: "Precisamos aumentar ainda mais a pressão sobre a Coreia do Norte. Só assim se conseguirá uma solução pacífica e fazer o país compreender a necessidade de conversas. Como é sabido, as ofertas nesse sentido estão sobre a mesa."

Esther Felden, Rodion Ebbighausen, Hans Spross, Dang Yuan (av) | Deutsche Welle

Merkel defende que UE fique isenta de tarifas americanas


Chanceler federal da Alemanha pede diálogo com os EUA após Trump confirmar sobretaxas de importação do aço e do alumínio. Guerra comercial não beneficiaria ninguém, afirma.

A chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, criticou nesta sexta-feira (09/03) as sobretaxas de importação do aço e do alumínio adotadas pelos Estados Unidos e defendeu o diálogo para lidar com a questão, assim como uma isenção para a União Europeia (UE).

Após uma reunião com associações líderes da economia alemã, em Munique, Merkel afirmou que vê a imposição das tarifas com preocupação e ressaltou seu total apoio à Comissão Europeia para que se dirija à Organização Mundial de Comércio (OMC) e busque o diálogo com as autoridades americanas e com outros países, como a China.

"Precisamos agora, de preferência, primeiro dialogar. O melhor seria se pudéssemos ficar isentos", acrescentou a chanceler.

Ao ser questionada se temia uma guerra comercial, Merkel afirmou apenas que seu caminho não ajuda ninguém. "Estamos convencidos de que no fim é prejudicial para todos. Ninguém ganharia com uma corrida como esta. E, por isso, buscamos muito conscientes o diálogo", acrescentou.

A chanceler não quis comentar as medidas tarifárias cogitadas pela União Europeia (UE) para responder a Washington. Merkel destacou, porém, que a Alemanha, o lado da Europa, também pode reagir.

Ela lembrou ainda que há um regime de tarifas negociado no marco da OMC e que a Alemanha trabalhou sempre em favor de um tratado de livre-comércio com os EUA e da eliminação de barreiras. A chanceler garantiu que esse deve ser o objetivo.

O presidente dos EUA, Donald Trump, oficializou na quinta-feira as tarifas de 25% nas importações de aço e 10% nas de alumínio, materiais que são essenciais para os setores de construção e manufatura. A medida entra em vigor em 15 dias. México e Canadá foram, por enquanto, excluídos da medida.

O governo americano deixou aberta a possibilidade para países solicitarem isenções, mas não revelou os critérios para a concessão desse benefício. A Casa Branca, porém, disse que a isenção será concedida àqueles que conseguirem resolver a ameaça que suas exportações representam aos EUA. 

A decisão americana revoltou a comunidade internacional. Após o anúncio da taxação na semana passada, vários países disseram que não ficariam de braços cruzados e que estabeleceriam tarifas e barreiras comerciais a produtos dos Estados Unidos. O governo brasileiro afirmou que manterá a preferência pelo diálogo, mas não descartou ações para preservar os direitos e interesses nacionais.

CN/dpa/afp/efe | Deutsche Welle

ESPANHA | Como se gestou a grande greve feminista


Para que multidões ocupassem as ruas em dezenas de cidades, no 8 de Março, foi preciso onze meses de preparação, muita criatividade, acordos com os movimentos sociais e sindicatos. Veja o relato e as fotos

Marta Borraz* | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagens: Público (ver galeria completa)

No ano passado bateu o desejo. Depois de uma manifestação que transbordou suas expectativas e algumas paralisações parciais isoladas, pressentiram que a ideia podia ganhar mais força. Um ano depois, o movimento feminista espanhol convocou uma greve em nível nacional que conta com o respaldo dos sindicatos da CGT (Confederação Geral do Trabalho), da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) e da Confederação Intersindical, e à qual se somaram a UGT (União Geral de Trabalhadores) e a CCOO (Comissões Trabalhistas da Espanha) com paralisações do trabalho.

Pouco depois do 8M de 2017, umas tantas mulheres já começaram a reunir-se em Madri para preparar o 8M de 2018. Era o mês de abril e a primeira vez que o 8 de março começava a ser gestado com tanta antecedência.

“A manifestação em Madri e em outras cidades foi tão massiva que ficamos com vontade e com força para construí-la no ano seguinte”, explica a porta-voz Viviana Dipp Quitón. Não se entende a greve  sem um contexto internacional de explosão feminista, que colocou nas ruas as mulheres polonesas pelo aborto, as argentinhas com o #NiUnaMenos e as estadunidenses na Marcha das Mulheres.


Apesar do caldo de cultura, não houve margem de tempo suficiente para que na Espanha espalhasse uma convocatória de greve em 2017, e por isso se limitou em paralisações pontuais em algumas empresas, universidades e escolas. Mas o pavio já estava aceso. A primeira assembleia celebrada na capital para preparar o 8M de 2018 já tinha uma ideia clara: convocar uma greve feminista – trabalhista e estudantil, de cuidados e de consumo – a que se unisse o maior número de mulheres possível, de todos os setores.

“Não sabíamos muito bem o que ia acontecer, de modo que a primeira coisa que decidimos foi começar a caminhar pelos bairros”, diz Inês Gutiérrez, porta-voz do 8M. A intenção de descentralizar a proposta levou o movimento – que desde o princípio está aberto a qualquer mulher e atrás do qual não há nenhum coletivo – a realizar as assembleias todos os dias 8 de cada mês, junto a diferentes movimentos sociais da capital e a fazer um encontro nacional na cidade de Elche, em setembro, e convocar oficialmente uma assenbleia em Zaragoza, à qual assistiram umas 400 mulheres.

Com o passar dos meses foram se criando comissões, tanto em Madri como em nível nacional, até chegar a um grupo numeroso: comissão de organização, legal, sindical, de comunicação, estudantil, internacional etc. Cada vez mais mulheres foram se somando às assembleias, que viram-se obrigadas a buscar espaços mais amplos. “Foi bonito comprovar que não somos mais só umas poucas que saimos às ruas, mas ocorre algo que tem muito a ver com as redes sociais e o impulso de muitas mulheres jovens”, diz Dipp.

Desde o verão espanhol, o movimento feminista tinha uma coordenação nacional e a greve estava sendo convocada também em dezenas de cidades e municípios. Logo começou a crescer o manual, que é um documento vivo, mas está claro que se trata de um instrumento com enfoque global. “Ele não nos vale só para reivindicar o fim da desigualdade salarial, precisamos de um instrumento que consiga visibilizar tudo o que as mulheres fazemos, algo que o conceito tradicional de greve nunca incluiu”, relata Gutiérrez.

Não eram poucas as mulheres que nas primeiras reuniões expunham suas dúvidas sobre como explicar a manifestação, que não é uma greve trabalhista comum e que transcende esse instrumento usado pelos sindicatos. Foi quando começaram os primeiros debates sobre a necessidade das assembleias chegarem a um consenso: contar ou não contar com o guarda-chuva sindical. Houve um debate sobre rejeitar ou não esse tipo de estrutura, mas no final se acabou consensuando de que somos aliadas”, explica Henar Sastre, da comissão sindical do 8M.

O sujeito da mobilização

Depois de tomar consciência do marco legal com que se contava e quais eram suas possibilidades, o movimento feminista começou, em meados de dezembro, a dialogar com os sindicatos. Como pontesforam escolhidas as feministas das centrais sindicais, que tornaram-se uma peça chave para conseguir seu apoio. “Sua batalha foi muito importante porque empurraram a partir de dentro as estruturas sindicais, que muitas vezes são resistentes”, acrescenta Gutiérrez.

A ideia de transbordar o que tradicionalmente se concebeu como greve foi tomando forma, porque “o enfoque de sempre é muito masculinizado e vinculado ao campo do trabalho remunerado”, é sem dúvida “preciso ampliar esses instrumentos para visibilizar tanto o trabalho de cuidados que as mulheres costumamos fazer como a desigualdade que sofremos em todas as esferas”. Ao final, uma assembleia após a outra, o movimento foi desenhando esse novo instrumento, de alcance não só trabalhista como também político e social.


Quem é o sujeito da greve feminista? Contra quem fazemos greve? Foram algumas das perguntas que ficaram rondando as reuniões e que era necessário responder. Depois de vários meses de debate, o consenso acabou por reivindicar que as mulheres fazem greve para toda a sociedade, e que são as mulheres que estão sendo chamadas – a greve convocada pela CGT e a CNT é geral e as paralisações da UGT e da CCOO dirigem-se a todos, mas o movimento 8M está convocando as mulheres.

“Queremos que sejam elas a entrar em greve, porque a ideia é que todas parem por um dia para deixar claro o impacto do que fazemos, quando não estamos. É um dia sem mulheres também para que os homens se encarreguem de cuidar e fazer todas as tarefas que nós mulheres costumamos fazer”, insiste Gutiérrez. A convocação estendeu-se aos bairros para chegar a todas, também às mulheres eraue trabalham nos caixas de supermercados e não somente às que leem o Twitter. O objetivo é ampliar o poder de convocação e desafiar o simbólico para passar a uma greve real.

*Marta Borraz é jornalista, comprometida com os direitos humanos e o jornalismo com visão de gênero.


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