segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Ucrânia | “Cui bono”? Poroshenko e o incidente no mar de Azov


António Abreu | AbrilAbril | opinião

O presidente da Ucrânia teria 8% dos votos numa primeira volta das presidenciais, longe de lhe permitir aceder a uma segunda volta. Prolongar a lei marcial será mais natural do que pôr-lhe fim.

Em 31 de Março do próximo ano realizam-se eleições presidenciais na Ucrânia. Segundo uma sondagem do Instituto Sociopolis divulgada no fim da semana passada, o actual presidente, Piotr Poroshenko, não é desejado para continuar nessas funções por 81% da população.

Poroshenko teria 8% dos votos numa primeira volta das presidenciais, o que estaria longe de lhe permitir aceder a uma segunda volta. A referida sondagem deu como provável vencedora a candidata Iulia Timoshenko.

Acusada em tempos, pelos seus críticos, de ser pró-russa, Timoshenko respondeu que «tento apenas defender os nossos interesses de forma a que encontremos um equilíbrio no nosso relacionamento com a União Europeia (UE) e a Rússia»1. Em 2010 foi uma das mais duras críticas do presidente Viktor Ianukovich, acusando-o de estar a vender o país à Rússia em troca de estabilidade política2. Timoshenko esteve presa dois anos e meio, entre 2011 e o início de 2014. Quando foi libertada, no auge do golpe que afastou o presidente Ianukovich, pronunciou-se por uma «Ucrânia membro da União Europeia e membro de pleno direito da NATO»3.

Em 2002 fundou o Bloco Iulia Timoshenko, que teve 7,2% dos votos nas eleições legislativas ucranianas desse ano.

Iulia Timoshenko foi designada primeira-ministra interina em 2005, na presidência de Viktor Iuchenko. Depois de prolongadas negociações sobre a composição do gabinete, ela acabou por ser confirmada como primeira-ministra pelo parlamento ucraniano (Verhovna Rada, "Conselho Supremo") por uma maioria absoluta de 373 votos, muito acima dos 226 votos necessários. Em 2007 foi novamente eleita como primeira-ministra.

Nas eleições presidenciais de 2010, ficou em segundo lugar, perdendo para o candidato de oposição Viktor Ianukovich.

Desde 2011 esteve presa, acusada de abuso de poder, numa decisão que os meios ocidentais consideraram controversa. Em 2014, depois do golpe de direita e extrema-direita que derrubou Ianukovich, foi libertada.

Candidatos diabolizados por Kiev

Esta e outros candidatos potenciais desde há um ano que têm vindo a ser diabolizados por Kiev com expressões como as utilizadas por Aleksei Arestovich, em entrevista ao Fakty.ua:

«À medida que se aproximam as eleições presidenciais e para a Suprema Rada, a Rússia vai usar cada vez mais recursos para obter o controle político e económico da Ucrânia». E «agora muitos querem que [Piotr] Poroshenko saia. Posso dizer com certeza absoluta: os outros candidatos, com exceção de Poroshenko, são da Rússia, infelizmente. Se vencer alguém que não seja Poroshenko, vão ser lançadas ideias sobre a responsabilidade do “regime de Poroshenko no início da guerra no Donbass, vão começar a reconciliar a Rússia com a Ucrânia. E, no final, Putin vai obter uma Ucrânia prontinha dentro de um ou dois anos. Com tal cenário, o nosso país ficaria muito dependente da Rússia: obrigar-nos-iam a comprar gás, petróleo e armas russas. E assim, a Ucrânia vai perder a sua independência». Por fim: «a situação será horrível: o Kremlin vai desestabilizar activamente a situação, em especial o Sul», concluiu Arestovich.

De facto, a extrema-direita e os fascistas, no poder desde o golpe de estado de Maidan, em 2014, cometeram uma série de sucessivas provocações e crimes, com as costas aquecidas pelos EUA e a NATO. Desde os assassinatos de centenas de ucranianos de origem russa, muitos deles enterrados em valas comuns – como revelaram os próprios autores desses crimes – até ao assalto violento dos organismos do estado e de órgãos de comunicação social; desde os muitos saneamentos acompanhados de agressões até à política económica, que não lhe ficou atrás, através da compra reiterada de armas aos EUA, o esfrangalhar da economia e o descurar do bem-estar da população – a qual, nesta altura do ano, em muitos apartamentos da capital, já não dispõe de aquecimento…

A «necessidade» de uma provocação à Rússia por parte de Poroshenko

Neste quadro aventureiro, Poroshenko precisava de provocar a Rússia, uma vez mais, mas em moldes que pudessem angariar novos e mais amplos apoios no Ocidente. A segurança russa tem longa experiência na prevenção destas provocações. Poroshenko está pronto para sacrificar toda a sua frota e as respectivas tripulações. Mas a Rússia, no quadro que ocorreu no passado dia 25, adquire o direito de responder. E o Ocidente já sabe que as respostas da Rússia são de relâmpago e inesperadas (assimétricas).

Os próprios EUA uma vez tentaram entrar nas águas territoriais da URSS, perto de Sebastopol, na Crimeia, porto onde aquela tinha parte essencial da sua marinha de guerra, invocando também, em apoio das suas acções o «direito de passagem livre». Naquela época, isso terminou com um barco de patrulha soviético a atacar um navio de combate americano. Já havia precedentes e Poroshenko e os seus chefes militares não o deveriam ignorar.

A acção de Kiev violou os artigos 19 e 21 da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, ao fazer entrar em águas territoriais russas, sem permissão, três embarcações suas, e revelou incapacidade de responder às exigências legais russas de não realizar manobras perigosas.

Esta acção também não se compagina com o tratado de 2003, que estabeleceu que a Rússia e a Ucrânia tinham liberdade de direitos de navegação no estreito de Kerch, fornecendo regras definidas, a serem aplicadas através duma banda marítima estreita.

Na realidade, a referida convenção das Nações Unidas sobre a lei marítima estipula o direito de passagem de navios de guerra pelas águas territoriais de outro Estado. É o chamado «direito de livre passagem» e, para sua aplicação, basta uma simples notificação. Esta mesma convenção estipula o direito de qualquer estado de fechar as suas águas territoriais, temporariamente ou não, ou introduzir outras restrições nesse regime.

Isso foi o que a Rússia fez no Estreito de Kerch, accionando a segurança da navegação e da ponte de Kerch, que um oficial ucraniano e outros oficiais subalternos ameaçaram por em causa com o envio de cinco embarcações, saídas de Odessa, para aportarem em dois portos ucranianos do Mar de Azov. Os russos dispararam, com seria normal nesta situação, e detiveram a tripulação de três dos navios, tendo três dos seus marinheiros ficado feridos e estando a ser tratados no hospital de Kersh. Dois outros navios de guerra ucranianos regressaram à base de Odessa depois da reação dos barcos-patrulha russos.

E foram as próprias autoridades ucranianas que revelaram que seguiam a bordo vários oficiais dos seus serviços secretos, que obviamente conduziam a provocação, bem como várias armas ligeiras e metralhadoras.

Alguns dos detidos, referiram nos interrogatórios – e gravaram depoimentos em vídeo, no mesmo sentido – que tinham recebido ordens superiores para montarem a provocação. Os dirigentes ucranianos tentaram, pois, obter uma posição política vantajosa com derramamento de sangue dos seus marinheiros. Kiev deixou de ter compaixão pelo seu povo há muito tempo…

Desde há alguns anos que a passagem, durante o Verão, de navios ucranianos através do Estreito de Kerch, observando todas as regras que agora Kiev critica, enfraquecem a posição ucraniana nesta aventura. De facto, a própria Ucrânia reconheceu o direito da Rússia de introduzir restrições à passagem de navios através do Estreito de Kerch e obedeceu a essas regras ainda no Verão passado. E, por isso, que a histeria de hoje não parece convincente.

Desta vez, violaram normas internacionais e acordos entre os dois países sobre a entrada e saída de navios entre o Mar de Azov e o Mar Negro.

Logo de seguida, Poroshenko decretou a lei marcial (estado de excepção). Na Rada (assembleia legislativa) a oposição conseguiu reduzir a vigência da lei de 60 para 30 dias e garantir, sem condicionantes, a realização das eleições nas datas previstas.

Ainda assim, o compromisso alcançado na Rada jogou a seu favor, mesmo que isso possa ser apresentado pela oposição como um recuo. O mais importante é que a lei marcial foi introduzida, embora parcialmente. Agora ele tem a oportunidade de a usar nos seus decretos com as palavras «com base na lei marcial», e poderá exigir o que quiser.

Os efeitos e os riscos da lei marcial

É preciso ter em conta que falamos da Ucrânia, onde, como é sabido, desde a presidência de Yushchenko, as leis apenas se cheiram para sentir o odor do seu espírito e não para cumprir o que, na sua letra, estipulam.

Assim, depois da lei marcial e tentando adivinhar as acções adicionais de Poroshenko e da oposição, é muito provável que esta finja que não estará em vigor a lei marcial… Mas, como se costuma dizer, se Poroshenko for derrotado nas urnas, «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas»…

Se o terror oculto da SBU (serviços de segurança) e dos «esquadrões da morte» nazis já não parecem suficientes para assustar a oposição, esta precisa mais do que nunca de actuar em condições democráticas, para bem do seu povo e por relações normais com a vizinha Rússia.

Na prática, esta medida dará poderes ao Governo para limitar as manifestações públicas, interferir com o que é divulgado pelos media, obrigar os cidadãos a realizar «tarefas socialmente necessárias», como trabalharem em instalações de defesa.

A lei marcial, que nunca foi declarada na Ucrânia depois na anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, nem durante a guerra que ainda se prolonga no Leste do país com forças militares de duas regiões (Donbass e Donetsk) que em referendo declararam a sua independência de Kiev – e que mantêm poderes regionais próprios, eleitos, forças de ordem e de defesa próprias, certamente com o apoio do governo russo – poderá querer aplicar-se a elas, o que poderia elevar muito as consequências do conflito, que já provocou mais de dez mil mortos desde o seu início, apesar de silenciado na comunicação social ocidental.

Introduzir a lei marcial ou o estado de emergência é sempre mais simples do que cancelá-lo. Os órgãos governamentais acostumam-se a trabalhar em regime descontrolado e a burocracia e os políticos começam a entender o encanto de uma ditadura, porque fazem parte dessa ditadura. O trabalho da oposição é complicado, e vai perdendo a sua influência. Assim, prolongar a lei marcial será mais natural, para Poroshenko, do que pôr-lhe fim.

O que os EUA e a NATO querem da Ucrânia

A Ucrânia divide uma fronteira terrestre e marítima de quase 1500 milhas com a Federação Russa, a mais longa fronteira ocidental com o país.

A NATO quer que a Ucrânia seja «o eixo decisivo dos planos dos EUA» e dos seus aliados da aliança, para criar «um cordão militar que separe a Rússia da Europa», componente de uma estratégia sinistra que arrisca o confronto Oriente/Ocidente.

Vladimir Putin referiu, porém, que «a aparição nas nossas fronteiras de um poderoso bloco militar [...] será considerada pela Rússia como uma ameaça directa à segurança de nosso país», acrescentando: «os mísseis russos terão como alvo a Ucrânia se esta ingressar na NATO ou permitirem que o escudo de defesa antimísseis de Washington seja instalado no seu território».

Histeria anti-russa

A histeria anti-russa continuou nos dias seguintes à provocação dos navios à entrada do Mar de Azov, com a manifestação de arruaceiros nazis nos últimos dias, com elevada capacidade de destruição, fazendo de um centro comercial o seu alvo. Os ocupantes usavam máscaras negras e ostentavam a bandeira da organização juvenil militante "Sokil" (Falcão), uma ramificação do partido de extrema-direita Svoboda (Liberdade). O Svoboda opõe-se violentamente à influência russa e à «decadência» do Ocidente liberal, e está ligado a grupos neonazis na Ucrânia. Inicialmente conhecido como o partido nacional-social da Ucrânia, os políticos do Svoboda descreveram o partido como «a última esperança da raça branca», citando com aprovação o Mein Kampf em reuniões de conselho e organizando acampamentos de verão para crianças, treinando os jovens para jogar, escalar montanhas e disparar sobre os russos.

No centro comercial, a polícia escoltou alguns dos ultranacionalistas para fora do prédio, mas muitos ficaram lá dentro, como relatou o Korrespondent.net. Lá dentro culparam empresários russos pelo conflito do seu país com a Rússia, e gritaram: «exigimos acabar com o financiamento do terrorismo e a morte de soldados ucranianos por dinheiro que está a ser retirado da Ucrânia através deste centro comercial» e «fora com os negócios russos na Ucrânia!».

Há dois dias, Poroshenko decidiu proibir a entrada de homens russos, com idades entre os 16 e os 20 anos, justificando a medida com a necessidade de evitar a criação de «exércitos privados russos». Na prática vai impedir a reunificação na época natalícia de famílias, pois muitos cidadãos têm as suas famílias na Ucrânia. O governo russo já declarou que não iria responder na mesma moeda.

Para além deste episódio ficaram para trás operações como a da falsificação do assassinato do jornalista russo Arkady Babchenko, a pretexto de ser anti-Putin, que acabou por ser desmascarada internacionalmente.

O caso da Igreja Ortodoxa Ucraniana

Nesta situação há que estar atento às consequências da lei marcial para a Igreja Cristã Ortodoxa Ucraniana.

É muito importante para Poroshenko controlar uma estrutura que é autoritária e ramificada e que pode ser usada como um mecanismo para arrebanhar votos. Poroshenko sabe muito bem que nas aldeias as pessoas geralmente votam «de acordo com o que o Padre diz durante o culto da igreja». Ele precisa que os padres preguem diariamente que Poroshenko é a única escolha digna entre os crentes em Cristo.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana, do Patriarcado de Moscovo, é a única estrutura religiosa totalmente ucraniana, gozando de enorme autoridade e do apoio da população em praticamente todas as regiões da Ucrânia. Esta estrutura, apesar de todas as tentativas de a fazer permanecer fora da política, mobilizou-se abertamente em oposição a Poroshenko. Eventuais conflitos com a Igreja Ortodoxa Ucraniana não convêm, por isso, ser tornados públicos.

Na imagem: O estreito de Kerch visto do espaço, após a construção da ponte que liga a Crimeia aos territórios russos do Cáucaso. Créditos Anton Shkaplerov / Roscosmos

1.«Ukraine’s dangerous games», Foreign Policy, 10 de Abril de 2009.
2.Entrevista ao Daily Telegraph, em 19 de Outubro de 2010
3.«Nato is the best choice for Ukraine». A britânica ITV reportou em 26 de Abril de 2014 as declarações de Timoshenko à agência AP.

MÉXICO ROMPE COM O NEOLIBERALISMO


O discurso de Lopez Obrador no dia 1 de Dezembro marca uma ruptura com o neoliberalismo que devastou o México nas últimas décadas. Pronunciado na Praça do Zocalo, na presença de dezenas de milhares de pessoas e durante mais de duas horas, o novo presidente mexicano reafirmou as suas ideias quanto à regeneração do México, ao combate à corrupção e à governação junto com o povo e não contra ele. 

Das 100 medidas que preconizou, algumas são simbólicas (venda do avião presidencial, entrega do palácio à comunidade; ...), outras sociais (duplicação do salário-mínimo; redução dos altos salários e aumento dos baixos na função pública; publicação na Internet das folhas de pagamento com as remunerações de todos os funcionários do Estado, inclusive o presidente; ...) e outras ainda que podem ser caracterizadas como nacional-desenvolvimentistas (ferrovia Maia no sul do México a ligar o Pacífico ao Atlântico; aumento da produção de petróleo sem recorrer ao capital estrangeiro; incentivos fiscais para criar um "filtro" junto à fronteira com os EUA, numa faixa de 5 km, a fim de instalar ali indústrias que absorvam mão-de-obra e dissuadam os paisanos a transpô-la para o lado estado-unidense; proibição de sementes transgénicas; ...). 

O tom do seu discurso foi sincero e até emotivo, mas não falou em nacionalizações nem mencionou o socialismo. A sua tarefa será ciclópica num país devastado por 30 anos de neoliberalismo e corroido pelo narcotráfico. Se Lopez Obrador conseguir cumprir a metade das suas 100 medidas fará uma obra notabilíssima.

Resistir.info

México: Os projectos e os desafios da esquerda


Laila Porras [*]

Pela primeira vez na História recente, e depois de trinta anos de neoliberalismo, a esquerda [NR]chegou ao poder em 1 de Dezembro de 2018, depois de vencer as eleições presidenciais em Julho passado com 53% dos votos. O movimento político criado por Andrés Manuel López Obrador (AMLO), chamado MORENA (Movimiento de Regeneración Nacional), obteve uma vitória esmagadora, não só com a eleição presidencial, mas também com a maioria absoluta em ambas as câmaras, e com a vitória de cinco governadores, da qual (a vitória) mais importante é a da Cidade do México, ganha por uma mulher, Claudia Scheimbaum. Num país assolado pela violência e com metade da população a viver abaixo da linha da pobreza, com desigualdades insustentáveis, corrupção endémica e uma impunidade, que faz com que mais de 90% dos delitos não sejam assinalados, devido à falta de confiança nas instituições judiciais, a chegada da esquerda neste país, está repleta de esperança e de imensas expectativas. AMLO, como os mexicanos costumam chamar a este lutador de longa data (é necessário recordar que esta é a terceira vez que ele concorre às eleições, incluindo a de 2006, que foi muito contestada por suspeitas de fraude) elaborou durante anos, um programa governamental detalhado, designado como "a 4ª transformação" do país. No entanto, será confrontado com enormes desafios e com fortes pressões internas e externas.
Os grandes projectos

AMLO – grande conhecedor da História do seu país – inscreveu "a quarta transformação" na longa história da vida política do México. Trata-se, acima de tudo, de um projecto de fundar novamente a política do Estado mexicano através do saneamento e da reconstrução do tecido institucional [1] . Uma grande reforma da constituição actual está prevista com a proposta de novas leis e instituições para combater a corrupção e melhorar o sistema de justiça. Por exemplo, incriminar como delitos graves os casos de corrupção, criar uma nova guarda nacional, redigir uma "constituição moral", perdoar e amnistiar aqueles que cometeram crimes de fraude e corrupção no passado; libertar as pessoas que cometeram delitos menores e despenalizar certas drogas.

"A quarta transformação" é, igualmente, um projecto de modernização económica do país, com propostas de grandes obras de infraestrutura e transporte, tais como o desenvolvimento dos transportes ferroviários, especialmente no sudeste do país (a região mais atrasada), a criação de refinarias e um forte impulso à agricultura.

Mas é, também, um projecto de solidariedade social e de ajuda aos mais pobres: espera-se um forte apoio, principalmente, aos jovens e aos idosos através de vários programas de bolsas de estudo e pensões sociais, bem como a criação de universidades (uma centena!) e hospitais. Por outro lado, AMLO pretende reduzir significativamente as desigualdades: já reduziu para metade, o salário do presidente e já foi aprovada uma lei que proibe qualquer funcionário público de ganhar mais do que o presidente. É preciso saber que, no México, o país campeão das desigualdades, alguns juízes do Supremo Tribunal de Justiça ganham cerca de 25 mil euros por mês... Os deputados de Morena estão a estudar uma a proposta de lei para aumentar, de maneira radical, o salário mínimo para que fique acima do limiar de pobreza actual. É necessário saber que o salário mínimo perdeu mais de 70% do seu valor real desde a década de 1970 e que ele representa 20% do salário médio, ou seja, em termos relativos, essa relação é a menor, não apenas nos países da OCDE, mas também nos países da América Latina.

Uma das principais propostas "da quarta transformação" diz respeito à maneira de governar com o objectivo de estabelecer uma "democracia participativa". Deseja usar as modalidades de "referendo" e de "consultas populares" para os assuntos mais importantes e já realizou duas consultas públicas (uma sobre o cancelamento do projecto do novo aeroporto na Cidade do México, voltaremos a este assunto); e a segunda modalidade com 10 perguntas à população sobre propostas governamentais, incluindo um projecto de um comboio no sudeste do país; a modernização portuária; a reflorestação de parte do país; a construção de uma refinaria; a duplicação das pensões sociais para os idosos; a criação de um sistema de bolsas de estudo para milhões de jovens; um sistema de saúde gratuito para todos; bem como o acesso gratuito à internet em todo o país. Não é de surpreender que o resultado dessa consulta tenha dado origem a mais de 90% de respostas positivas. Os seus apoiantes vêem nessa prática uma revolução na maneira de governar para avançar em direcção a uma "verdadeira democracia participativa"; os seus adversários pensam que é uma política populista e denunciam uma "prática demagógica".

Os desafios e as pressões 

O presidente eleito tomará posse no sábado, 1 de Dezembro de 2018 (depois de cinco longos meses de espera), no entanto, ele tem estado tão activo que os comentadores consideram que o seu discurso, nesse dia, será a sua primeira avaliação de governo! Com efeito, vários assuntos foram abordados e discutidos, o mais controverso foi, provavelmente, o cancelamento do projecto do novo aeroporto da Cidade do México (NAICM), projecto que ele já havia criticado enquanto era candidato. A construção do novo aeroporto era um exemplo perfeito de absurdo ecológico e económico, beneficiando apenas um pequeno grupo de empresários da oligarquia, em detrimento da grande maioria dos mexicanos. Representantes das comunidades afectadas, geólogos e outros cientistas, bem como activistas ambientais, denunciaram a construção do NAICM e sublinharam que este projecto estava a provocar um ecocídio de dimensões extraordinárias. Andrés Manuel López Obrador decidiu realizar um referendo nacional, apesar das imensas críticas dos jornalistas próximos do poder e das organizações patronais. O "Não" ganhou, maioritariamente, essa consulta pública, o que não foi surpresa para ninguém, dado o nível de confronto social que o projecto gerou. Portanto, ele decidiu cancelar o projecto. No mesmo dia, o peso perdeu o seu valor, as agências de rating internacionais baixaram a categoria do país e foi observada uma fuga de capital. Seguiu-se uma avalanche de críticas da parte dos jornalistas e intelectuais próximos ao regime em funções, apelidando-o de retrógrado e até de "ditador".

AMLO está consciente de que o seu programa vai contra o estatuto económico e financeiro e também conhece muito bem, o poder económico dos seus adversários. O caso do aeroporto é o mais falado, mas já houve outras cenas de conflito com a burguesia financeira nacional e internacional. Por exemplo, um projecto de lei lançado pelo seu partido já está a ser discutido no Congresso, para regulamentar os serviços dos bancos para os clientes - é bem sabido que, no México, os mesmos serviços bancários são muito mais caros do que os oferecidos pelas mesmas filiais dos bancos, em Espanha, para dar um exemplo. No mesmo dia, logo após essa notícia, observou-se outra desvalorização do peso.

No entanto, não podemos esquecer que ele convenceu uma grande parte da comunidade empresarial a apoiá-lo no seu projecto, não apenas pequenos e médios empresários, mas também alguns líderes de grandes empresas como Alfonso Romo, empresário multimilionário no norte do país (Monterrey), que possui uma empresa 'holding' nos sectores das finanças, seguros e biotecnologia e, agora, é um conselheiro pessoal. Por esta razão, recusa-se criticar certos elementos do modelo económico neoliberal. Por exemplo, disse repetidamente, que nenhuma mudança seria feita no sistema tributário, que é amplamente favorável ao grande capital; continua a dizer que o equilíbrio das contas públicas é uma meta do governo e que nem o défice nem a dívida aumentarão no decurso do seu governo. Resta saber se essas declarações são mais uma estratégia para chegar e consolidar-se no poder com o apoio da classe média superior e conservadora, ou se está convencido de que os recursos económicos libertados pela luta contra a corrupção, bem como "a austeridade dentro do governo", serão suficientes para lançar este grande projecto nacional sem tocar em algumas fundações do modelo neoliberal. No entanto, é difícil acreditar que esta grande transformação do país, e especialmente a redução estrutural da desigualdade, seria possível sem mudar a estrutura da arrecadação de impostos - as receitas fiscais em percentagem do PIB estão agora entre as mais baixas da América Latina: 17% contra 32% no Brasil.

Outro grande desafio é o relacionamento com os Estados Unidos: de facto, AMLO enfrenta uma nova configuração política desde a chegada de Donald Trump, que pretende continuar a renegociação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA ing./ALENA fr.). É quase certo que, independentemente do poder de negociação dos países, a tendência será em direcção a mais protecionismo. Parte da classe empresarial que se beneficiou enormemente com o NAFTA (agora conhecido como T-MEC) será, certamente, afectada (incluindo as indústrias de alta tecnologia, como a indústria automóvel, a aeroespacial e a electrónica). Mas como o desenvolvimento proposto por AMLO é um desenvolvimento baseado no aumento do padrão de vida da população e numa distribuição da riqueza mais equitativa, na autosuficiência alimentar, no aumento significativo dos salários, este desenvolvimento é consequentemente baseado na expansão do mercado interno. A renegociação do acordo de livre comércio pode, portanto, ser vista como uma oportunidade para essa mudança de estratégia do modelo neoliberal baseado no crescimento do sector da exportação para um modelo baseado no crescimento do mercado interno; seria também uma oportunidade de alargar as relações com seus vizinhos do sul e com outros parceiros comerciais.

O segundo índice delicado nas relações com o seu vizinho do norte, é a gestão da crise migratória. De facto, milhares de pessoas da América Central decidiram juntar-se e caminhar em direcção aos Estados Unidos, através do México. "A caravana migrante" é composta por homens, mulheres e crianças que fogem à miséria e à violência nos seus países e procuram chegar aos Estados Unidos. Trump já enviou tropas para a fronteira e ameaçou o governo mexicano para parar a caravana ou fechar a fronteira. AMLO disse que os migrantes poderiam ficar no México e que encontrariam trabalho. É preciso dizer que o número de migrantes (cerca de dez mil) representa apenas uma pequena percentagem da população mexicana e, portanto, é verdade que os migrantes poderiam ser albergados no país. No entanto, uma parte significativa dessas pessoas não quer ficar no México por razões diferentes (os seus familiares já estão nos Estados Unidos, ou por desconfiarem do governo mexicano, etc). Por outro lado, um sector da sociedade mexicana manifesta a sua preocupação e descontentamento (chegando mesmo a posições radicais, racistas e xenófobas contra os migrantes) sobre a proposta de AMLO, dados os graves problemas de pobreza e de emprego, no país.

Além do mais, não devemos esquecer que 53% das pessoas votaram em AMLO e esperam uma verdadeira mudança de curso e seria arriscado decepcioná-las. A pressão social interna é muito forte: de uma parte, vindo dos mais pobres -Os povos indígenas, por exemplo, que estão cada vez mais conscientes dos seus direitos, cada vez mais bem organizados e que travam uma batalha constante contra o governo vigente – até 1 de Dezembro – (e portanto, contra o modelo neoliberal) pela preservação do seu habitat, pelos seus costumes e pelo acesso a uma vida melhor; por outro lado, podemos falar sobre questões que atravessam toda a sociedade, uma sociedade que está cansada da violência, da insegurança económica e social, da corrupção e da impunidade, e que aguarda de AMLO, uma resposta concreta e soluções reais e a curto prazo. Com efeito, houve mais de 200 mil mortes violentas e 30 mil pessoas desaparecidas, na última década. O caso paradigmático é provavelmente o de 43 alunos desaparecidos, em 2014, no estado de Guerrero (com forte suspeita de assassinato e envolvimento conjunto do governo local, polícia, forças armadas e de um monopólio de droga). Mas, infelizmente, não é um caso isolado, é um exemplo entre milhares de outros: femicídios, assassinatos de jornalistas e activistas sociais, etc., que representam a prova da decomposição política, institucional e social do país.

Uma fragilidade grave 

Andrés Manuel López Obrador representa, hoje, uma grande esperança, especialmente, em duas frentes: a nível nacional, mostrou, ao chegar ao poder pela via democrática, que as grandes mudanças políticas podem ser construídas de maneira não violenta. Por outro lado, na América Latina, uma perspectiva optimista foi aberta em 1 de Julho e o México é visto como um refúgio de ideias progressistas neste continente que mudou a cor política, numa década, com os governos reaccionários e da direita na Argentina, no Chile e no Brasil, para não citar senão as principais economias. Mas os desafios e pressões que AMLO enfrenta são imensos. Não nos esqueçamos das palavras de Maquiavel: "Não há empreendimento mais difícil, mais duvidoso ou mais perigoso do que o de querer introduzir novas leis". As lições do caso brasileiro, que passou no espaço de uma década, da esquerda progressista nos anos 2000, para um governo de extrema-direita, devem alertar o novo governo mexicano e dar-lhe algumas pistas de reflexão sobre essa fragilidade.

Conhecedor da "realpolitik", AMLO sabe muito bem que os seus inimigos desconfiam enormemente do seu novo governo e que eles têm um poder económico não desprezível, e tenta aliviar as tensões fazendo concessões como a criação de um Conselho de Empreendedores que o ajudariam a tomar decisões (comissão formada por uma parte da oligarquia); ou adiando decisões difíceis "por um período de três anos" como a proposta de mudança no sistema tributário ou a mudança nos objectivos do banco central (para incluir o pleno emprego e o crescimento e não, apenas, a estabilidade dos preços). Consciente da necessidade de uma aliança estratégica com os militares, reuniu todas as forças armadas e fez um discurso memorável para convidá-los a participar deste grande projecto de transformação nacional. É claro que este tipo de decisões é amplamente criticado por alguns intelectuais e jornalistas de esquerda e até mesmo por organizações internacionais de direitos humanos (Amnistia Internacional) que alertaram em particular sobre o fracasso das políticas destinadas a outorgar mais poder aos militares para liderar a luta contra o tráfico de estupefacientes (no México e noutros países).

Andrés Manuel López Obrador, no entanto, deixou perceber muito claramente aos poderes reais que, hoje, ele é o Presidente: no dia da declaração do cancelamento do projecto do aeroporto, ele afirmou que não era "um jarrão decorativo", e mestre na manipulação de símbolos, podia-se ver sobre a sua secretária um livro cujo título era: Quem comanda aqui? 

01/Dezembro/2018

[NR] Seria mais rigoroso dizer "social-democracia" ao invés da caracterização genérica de "esquerda" utilizada pela autora.

[1] As primeiras transformações referem-se aos três principais movimentos da História do México: o movimento de independência do país, entre 1810 e 1821, o movimento de "Reforma" em meados do século XIX, liderado por Benito Juárez, quando aconteceu a separação entre a Igreja e o Estado e, finalmente, o movimento de Revolução, no início do século XX, que extinguiu a ditadura de Porfirio Díaz.

[*] Economista, investigadora associada ao LADYSS-Université Paris Diderot, Paris 7.

Ver também: 

Foto Marco Pelaez / La Jornada

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