António Abreu | AbrilAbril |
opinião
O presidente da Ucrânia teria 8%
dos votos numa primeira volta das presidenciais, longe de lhe permitir aceder a
uma segunda volta. Prolongar a lei marcial será mais natural do que pôr-lhe fim.
Em 31 de Março do próximo ano
realizam-se eleições presidenciais na Ucrânia. Segundo uma sondagem do
Instituto Sociopolis divulgada no fim da semana passada, o actual presidente,
Piotr Poroshenko, não é desejado para continuar nessas funções por 81% da população.
Poroshenko teria 8% dos votos
numa primeira volta das presidenciais, o que estaria longe de lhe permitir
aceder a uma segunda volta. A referida sondagem deu como provável vencedora a
candidata Iulia Timoshenko.
Acusada em tempos, pelos seus
críticos, de ser pró-russa, Timoshenko respondeu que «tento apenas defender os
nossos interesses de forma a que encontremos um equilíbrio no nosso
relacionamento com a União Europeia (UE) e a Rússia»1.
Em 2010 foi uma das mais duras críticas do presidente Viktor Ianukovich,
acusando-o de estar a vender o país à Rússia em troca de estabilidade política2.
Timoshenko esteve presa dois anos e meio, entre 2011 e o início de 2014. Quando
foi libertada, no auge do golpe que afastou o presidente Ianukovich,
pronunciou-se por uma «Ucrânia membro da União Europeia e membro de pleno
direito da NATO»3.
Em 2002 fundou o Bloco Iulia
Timoshenko, que teve 7,2% dos votos nas eleições legislativas ucranianas desse
ano.
Iulia Timoshenko foi designada
primeira-ministra interina em 2005, na presidência de Viktor Iuchenko. Depois
de prolongadas negociações sobre a composição do gabinete, ela acabou por ser
confirmada como primeira-ministra pelo parlamento ucraniano (Verhovna Rada,
"Conselho Supremo") por uma maioria absoluta de 373 votos, muito
acima dos 226 votos necessários. Em 2007 foi novamente eleita como
primeira-ministra.
Nas eleições presidenciais de
2010, ficou em segundo lugar, perdendo para o candidato de oposição Viktor
Ianukovich.
Desde 2011 esteve presa, acusada
de abuso de poder, numa decisão que os meios ocidentais consideraram
controversa. Em 2014, depois do golpe de direita e extrema-direita que derrubou
Ianukovich, foi libertada.
Candidatos diabolizados por Kiev
Esta e outros candidatos
potenciais desde há um ano que têm vindo a ser diabolizados por Kiev com
expressões como as utilizadas por Aleksei Arestovich, em entrevista ao
Fakty.ua:
«À medida que se aproximam as
eleições presidenciais e para a Suprema Rada, a Rússia vai usar cada vez mais
recursos para obter o controle político e económico da Ucrânia». E «agora
muitos querem que [Piotr] Poroshenko saia. Posso dizer com certeza absoluta: os
outros candidatos, com exceção de Poroshenko, são da Rússia, infelizmente. Se
vencer alguém que não seja Poroshenko, vão ser lançadas ideias sobre a
responsabilidade do “regime de Poroshenko no início da guerra no Donbass, vão
começar a reconciliar a Rússia com a Ucrânia. E, no final, Putin vai obter uma
Ucrânia prontinha dentro de um ou dois anos. Com tal cenário, o nosso país ficaria
muito dependente da Rússia: obrigar-nos-iam a comprar gás, petróleo e armas
russas. E assim, a Ucrânia vai perder a sua independência». Por fim: «a
situação será horrível: o Kremlin vai desestabilizar activamente a situação, em
especial o Sul», concluiu Arestovich.
De facto, a extrema-direita e os
fascistas, no poder desde o golpe de estado de Maidan, em 2014, cometeram uma
série de sucessivas provocações e crimes, com as costas aquecidas pelos EUA e a
NATO. Desde os assassinatos de centenas de ucranianos de origem russa, muitos
deles enterrados em valas comuns – como revelaram os próprios autores desses
crimes – até ao assalto violento dos organismos do estado e de órgãos de
comunicação social; desde os muitos saneamentos acompanhados de agressões até à
política económica, que não lhe ficou atrás, através da compra reiterada de
armas aos EUA, o esfrangalhar da economia e o descurar do bem-estar da
população – a qual, nesta altura do ano, em muitos apartamentos da capital, já
não dispõe de aquecimento…
A «necessidade» de uma provocação
à Rússia por parte de Poroshenko
Neste quadro aventureiro,
Poroshenko precisava de provocar a Rússia, uma vez mais, mas em moldes que
pudessem angariar novos e mais amplos apoios no Ocidente. A segurança russa tem
longa experiência na prevenção destas provocações. Poroshenko está pronto para
sacrificar toda a sua frota e as respectivas tripulações. Mas a Rússia, no
quadro que ocorreu no passado dia 25, adquire o direito de responder. E o
Ocidente já sabe que as respostas da Rússia são de relâmpago e inesperadas
(assimétricas).
Os próprios EUA uma vez tentaram
entrar nas águas territoriais da URSS, perto de Sebastopol, na Crimeia, porto
onde aquela tinha parte essencial da sua marinha de guerra, invocando também,
em apoio das suas acções o «direito de passagem livre». Naquela época, isso
terminou com um barco de patrulha soviético a atacar um navio de combate
americano. Já havia precedentes e Poroshenko e os seus chefes militares não o
deveriam ignorar.
A acção de Kiev violou os artigos
19 e 21 da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, ao fazer entrar em águas
territoriais russas, sem permissão, três embarcações suas, e revelou
incapacidade de responder às exigências legais russas de não realizar manobras
perigosas.
Esta acção também não se
compagina com o tratado de 2003, que estabeleceu que a Rússia e a Ucrânia
tinham liberdade de direitos de navegação no estreito de Kerch, fornecendo
regras definidas, a serem aplicadas através duma banda marítima estreita.
Na realidade, a referida
convenção das Nações Unidas sobre a lei marítima estipula o direito de passagem
de navios de guerra pelas águas territoriais de outro Estado. É o chamado
«direito de livre passagem» e, para sua aplicação, basta uma simples
notificação. Esta mesma convenção estipula o direito de qualquer estado de
fechar as suas águas territoriais, temporariamente ou não, ou introduzir outras
restrições nesse regime.
Isso foi o que a Rússia fez no
Estreito de Kerch, accionando a segurança da navegação e da ponte de Kerch, que
um oficial ucraniano e outros oficiais subalternos ameaçaram por em causa com o
envio de cinco embarcações, saídas de Odessa, para aportarem em dois portos
ucranianos do Mar de Azov. Os russos dispararam, com seria normal nesta
situação, e detiveram a tripulação de três dos navios, tendo três dos seus
marinheiros ficado feridos e estando a ser tratados no hospital de Kersh. Dois
outros navios de guerra ucranianos regressaram à base de Odessa depois da
reação dos barcos-patrulha russos.
E foram as próprias autoridades
ucranianas que revelaram que seguiam a bordo vários oficiais dos seus serviços
secretos, que obviamente conduziam a provocação, bem como várias armas ligeiras
e metralhadoras.
Alguns dos detidos, referiram nos
interrogatórios – e gravaram depoimentos em vídeo, no mesmo sentido – que
tinham recebido ordens superiores para montarem a provocação. Os dirigentes
ucranianos tentaram, pois, obter uma posição política vantajosa com
derramamento de sangue dos seus marinheiros. Kiev deixou de ter compaixão pelo
seu povo há muito tempo…
Desde há alguns anos que a
passagem, durante o Verão, de navios ucranianos através do Estreito de Kerch,
observando todas as regras que agora Kiev critica, enfraquecem a posição
ucraniana nesta aventura. De facto, a própria Ucrânia reconheceu o direito da
Rússia de introduzir restrições à passagem de navios através do Estreito de
Kerch e obedeceu a essas regras ainda no Verão passado. E, por isso, que a
histeria de hoje não parece convincente.
Desta vez, violaram normas
internacionais e acordos entre os dois países sobre a entrada e saída de navios
entre o Mar de Azov e o Mar Negro.
Logo de seguida, Poroshenko
decretou a lei marcial (estado de excepção). Na Rada (assembleia legislativa) a
oposição conseguiu reduzir a vigência da lei de 60 para 30 dias e garantir, sem
condicionantes, a realização das eleições nas datas previstas.
Ainda assim, o compromisso
alcançado na Rada jogou a seu favor, mesmo que isso possa ser apresentado pela
oposição como um recuo. O mais importante é que a lei marcial foi introduzida,
embora parcialmente. Agora ele tem a oportunidade de a usar nos seus decretos
com as palavras «com base na lei marcial», e poderá exigir o que quiser.
Os efeitos e os riscos da lei
marcial
É preciso ter em conta que
falamos da Ucrânia, onde, como é sabido, desde a presidência de Yushchenko, as
leis apenas se cheiram para sentir o odor do seu espírito e não para cumprir o
que, na sua letra, estipulam.
Assim, depois da lei marcial e
tentando adivinhar as acções adicionais de Poroshenko e da oposição, é muito
provável que esta finja que não estará em vigor a lei marcial… Mas, como se
costuma dizer, se Poroshenko for derrotado nas urnas, «enquanto o pau vai e
vem, folgam as costas»…
Se o terror oculto da SBU
(serviços de segurança) e dos «esquadrões da morte» nazis já não parecem
suficientes para assustar a oposição, esta precisa mais do que nunca de actuar
em condições democráticas, para bem do seu povo e por relações normais com a
vizinha Rússia.
Na prática, esta medida dará
poderes ao Governo para limitar as manifestações públicas, interferir com o que
é divulgado pelos media, obrigar os cidadãos a realizar «tarefas socialmente
necessárias», como trabalharem em instalações de defesa.
A lei marcial, que nunca foi
declarada na Ucrânia depois na anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, nem
durante a guerra que ainda se prolonga no Leste do país com forças militares de
duas regiões (Donbass e Donetsk) que em referendo declararam a sua
independência de Kiev – e que mantêm poderes regionais próprios, eleitos,
forças de ordem e de defesa próprias, certamente com o apoio do governo russo –
poderá querer aplicar-se a elas, o que poderia elevar muito as consequências do
conflito, que já provocou mais de dez mil mortos desde o seu início, apesar de
silenciado na comunicação social ocidental.
Introduzir a lei marcial ou o
estado de emergência é sempre mais simples do que cancelá-lo. Os órgãos
governamentais acostumam-se a trabalhar em regime descontrolado e a burocracia
e os políticos começam a entender o encanto de uma ditadura, porque fazem parte
dessa ditadura. O trabalho da oposição é complicado, e vai perdendo a sua
influência. Assim, prolongar a lei marcial será mais natural, para Poroshenko,
do que pôr-lhe fim.
O que os EUA e a NATO querem da
Ucrânia
A Ucrânia divide uma fronteira
terrestre e marítima de quase 1500 milhas com a Federação Russa, a mais longa
fronteira ocidental com o país.
A NATO quer que a Ucrânia seja «o
eixo decisivo dos planos dos EUA» e dos seus aliados da aliança, para criar «um
cordão militar que separe a Rússia da Europa», componente de uma estratégia
sinistra que arrisca o confronto Oriente/Ocidente.
Vladimir Putin referiu, porém,
que «a aparição nas nossas fronteiras de um poderoso bloco militar [...] será
considerada pela Rússia como uma ameaça directa à segurança de nosso país»,
acrescentando: «os mísseis russos terão como alvo a Ucrânia se esta ingressar
na NATO ou permitirem que o escudo de defesa antimísseis de Washington seja
instalado no seu território».
Histeria anti-russa
A histeria anti-russa continuou
nos dias seguintes à provocação dos navios à entrada do Mar de Azov, com a
manifestação de arruaceiros nazis nos últimos dias, com elevada capacidade de
destruição, fazendo de um centro comercial o seu alvo. Os ocupantes usavam
máscaras negras e ostentavam a bandeira da organização juvenil militante
"Sokil" (Falcão), uma ramificação do partido de extrema-direita
Svoboda (Liberdade). O Svoboda opõe-se violentamente à influência russa e à
«decadência» do Ocidente liberal, e está ligado a grupos neonazis na Ucrânia.
Inicialmente conhecido como o partido nacional-social da Ucrânia, os políticos
do Svoboda descreveram o partido como «a última esperança da raça branca»,
citando com aprovação o Mein Kampf em reuniões de conselho e organizando
acampamentos de verão para crianças, treinando os jovens para jogar, escalar
montanhas e disparar sobre os russos.
No centro comercial, a polícia
escoltou alguns dos ultranacionalistas para fora do prédio, mas muitos ficaram
lá dentro, como relatou o Korrespondent.net. Lá dentro culparam empresários
russos pelo conflito do seu país com a Rússia, e gritaram: «exigimos acabar com
o financiamento do terrorismo e a morte de soldados ucranianos por dinheiro que
está a ser retirado da Ucrânia através deste centro comercial» e «fora com os
negócios russos na Ucrânia!».
Há dois dias, Poroshenko decidiu
proibir a entrada de homens russos, com idades entre os 16 e os 20 anos,
justificando a medida com a necessidade de evitar a criação de «exércitos
privados russos». Na prática vai impedir a reunificação na época natalícia de
famílias, pois muitos cidadãos têm as suas famílias na Ucrânia. O governo russo
já declarou que não iria responder na mesma moeda.
Para além deste episódio ficaram
para trás operações como a da falsificação do assassinato do jornalista russo
Arkady Babchenko, a pretexto de ser anti-Putin, que acabou por ser desmascarada
internacionalmente.
O caso da Igreja Ortodoxa
Ucraniana
Nesta situação há que estar
atento às consequências da lei marcial para a Igreja Cristã Ortodoxa Ucraniana.
É muito importante para
Poroshenko controlar uma estrutura que é autoritária e ramificada e que pode
ser usada como um mecanismo para arrebanhar votos. Poroshenko sabe muito bem
que nas aldeias as pessoas geralmente votam «de acordo com o que o Padre diz durante
o culto da igreja». Ele precisa que os padres preguem diariamente que
Poroshenko é a única escolha digna entre os crentes em Cristo.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana, do
Patriarcado de Moscovo, é a única estrutura religiosa totalmente ucraniana,
gozando de enorme autoridade e do apoio da população em praticamente todas as
regiões da Ucrânia. Esta estrutura, apesar de todas as tentativas de a fazer
permanecer fora da política, mobilizou-se abertamente em oposição a Poroshenko.
Eventuais conflitos com a Igreja Ortodoxa Ucraniana não convêm, por isso, ser
tornados públicos.
Na imagem: O estreito de Kerch
visto do espaço, após a construção da ponte que liga a Crimeia aos territórios
russos do Cáucaso. Créditos Anton Shkaplerov / Roscosmos
1.«Ukraine’s
dangerous games», Foreign Policy, 10 de Abril de 2009.
2.Entrevista
ao Daily Telegraph, em 19 de Outubro de 2010
3.«Nato
is the best choice for Ukraine». A britânica ITV reportou em 26 de
Abril de 2014 as declarações de Timoshenko à agência AP.
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