O que choca, no Brasil, é não
haver a menor preocupação em dourar a pílula, em amenizar a rapina dos bancos
sobre todos os demais setores sociais. Reflexão sobre “A Era do Capital
Improdutivo”, de Ladislau Dowbor
Paulo Kliass | Outras Palavras
Uma das maiores dificuldades para
se transformar uma realidade portadora de injustiça e desigualdade é o seu
processo de “naturalização” e sua aceitação de forma passiva por parte de
setores expressivos da sociedade. Fenômeno semelhante tem ocorrido ao longo das
últimas décadas com a tendência à financeirização em nossas terras.
É bem verdade que o movimento que
assegura a consolidação da hegemonia dos interesses do setor financeiro no
conjunto do sistema econômico não é exclusividade tupiniquim. A forma de
organização do capitalismo contemporâneo globalizado apresenta essa
característica por todos os continentes. As finanças dominam e impõem suas
condições diante dos demais setores de atividade da economia e subjuga todas as
classes sociais.
A evidência escandalosa do caso
brasileiro, no entanto, é algo que chama atenção exatamente por não haver a
menor preocupação em dourar a pílula ou minimizar o grau de espoliação
praticada contra o conjunto dos demais atores e setores sociais. A dominância
do financismo não se preocupa em pedir desculpas e nem busca argumentos mais
palatáveis para justificar sua própria ação predadora.
A face mais visível desse
movimento talvez seja a presença dos bancos e demais instituições de natureza
financeira em nosso meio. Há décadas que tais conglomerados registram ganhos
impressionantes em seus resultados operacionais. A cada exercício anual as
poucas instituições de porte mastodôntico disputam entre si a primazia das
cifras bilionárias. É o conhecido jogo para se posicionarem entre os primeiros
lugares depois de divulgarem seus números contábeis. A expressão “lucro
bancário” virou pleonasmo nesse campo minado dos oligopólios.
Ao longo de 2017, por exemplo, os
lucros das instituições bancárias em seu conjunto atingiram o patamar de R$ 110
bilhões. Além de causarem espanto pelo volume, os resultados também surpreendem
pela sua concentração. Os 5 maiores bancos atuantes no Brasil vem apresentando
– há muitos anos e de forma sistemática – lucros anuais superiores a R$ 70 bi
em valores atuais corrigidos pela inflação. Um descalabro! O sentimento de
exploração e impotência é reforçado quando se leva em consideração a conjuntura
do último triênio, marcado por recessão inédita no PIB, falências generalizadas
e desemprego monumental.
Dowbor e o capital improdutivo
Ora, diante de quadro tão
calamitoso, nada mais oportuno do que ampliar a discussão a respeito de tal
fenômeno. Assim, recebi com muito orgulho o convite para participar de mesas de debaterealizadas ao longo da programação do Fórum
Social Mundial 2018, sediado na cidade de Salvador, Bahia, durante os dias 13 e
17 de março.
Tratava-se de mais um momento
para a necessária divulgação da importante obra do professor Ladislau Dowbor,
intitulada A era do capital improdutivo. Apesar de abordar um tema
complexo, o autor realizou um grande esforço nesse livro para traduzir os
conceitos e o economês para uma linguagem mais acessível ao público não
especializado.
Para além da introdução e da
conclusão, a obra comporta 14 capítulos em que são analisados e esmiuçados os
diferentes aspectos da dominação exercida pela dimensão do financeiro em nosso
sistema econômico. Não por acaso, o título fala de um tempo em que a sociedade
e o modelo econômico passam a ser dominados por um setor do capital que não
realiza bens ou serviços de natureza agregadora de valor. Estamos no interior
do reinado do rentismo e da apropriação parasitária da riqueza produzida pela
maioria.
Por mais que a tendência à
centralização e à concentração do capital em torno de sua dimensão financeira
já estivesse apontada por clássicos como Rosa de Luxemburgo, Lenin e
Hilferding, a verdade é que a evolução da realidade do capitalismo ofereceu
trajetórias inusitadas e surpreendentes. A dominação do capital improdutivo é a
marca de nossa era. E o livro de Dowbor nos mostra como esse fenômeno se dá na
prática.
Há uma multiplicidade de faces
desse verdadeiro Cérbero, a famosa criatura monstruosa que tratava de zelar
pela porta do inferno. Isso vale para a ação oligopolizada dos bancos e demais
instituições financeiras que se especializam em se apropriar do sobrevalor
gerado pelos setores produtores de bens e serviços, além da renda extraída de
forma direta e indireta dos que sobrevivem do próprio trabalho. Mas o processo
de sofisticação do financismo evolui também para outras dimensões, superando a
conhecida fusão e confusão dos interesses do capital bancário e industrial em
torno do capital financeiro em sentido estrito.
Hipertrofia do financeiro
O fenômeno da financeirização vai
muito além da hipertrofia do sistema financeiro em relação aos demais setores.
Dowbor nos aponta o crescimento dos espaços e dos volumes de recursos
depositados e/ou em trânsito nos chamados “paraísos fiscais”. A acumulação de
capital e a multiplicação de patrimônio em tais locais são absolutamente
estéreis do ponto de vista da geração de riqueza produtiva e criadora de
empregos. O sigilo e a opacidade das informações de tais operações nos remetem
na direção de atividades ilegais ou irregulares que estariam na base da gênese
de tal tipo de acumulação primitiva.
O processo de sofisticação das
atividades associadas ao setor primário também abre as portas para a dominação
do financismo. A extração e produção de petróleo e do conjunto de minerais em
escala global passam por uma etapa de financeirização relevante. O mesmo ocorre
com a produção e comercialização dos principais produtos agrícolas em todos os
continentes, também sujeitos a regras e ciclos de comercialização que se
distanciam bastante das condições de plantio e colheita.
Estamos falando das chamadas
“commodities”, que passam a operar em mercados financeiros muitas vezes
desconectados da produção real. Essas mercadorias transformam-se em títulos
negociados nos mercados financeiros globais e que estão sujeitos a flutuações
em seus valores muitas vezes sem nenhuma correspondência com a dinâmica
agrícola ou mineral. São as chamadas bolhas especulativas em mercados
financeiros, fenômenos que criam e destroem riqueza sem nenhuma vinculação com
eventos associados à dinâmica da economia real.
Além disso, a complexificação do
sistema financeiro passa a ser objeto de desejo do próprio processo de
acumulação de capital. Sob o frágil argumento de que o mercado precisaria criar
mecanismos para se defender de riscos e incertezas quanto ao futuro, a partir
da década de 1990 foi dada a largada irresponsável para a explosão
descontrolada de espaços globais de transações financeiras sem nenhuma
regulamentação. Trata-se daquilo que vem sendo chamado genericamente de mercado
de derivativos ou mercado futuro.
Financismo descolado do real
As relações econômicas e
financeiras ganham a aura de uma certa institucionalidade sofisticada, mas tudo
não passa de mera especulação e da busca por ganhos com novos produtos
completamente desvinculados da economia produtiva. São títulos de natureza
financeira envolvendo previsão de valores e preços futuros de determinada
mercadoria ou índice. Nesse verdadeiro vale-tudo, patrimônios bilionários
incham ou são reduzidos em função de prospecção a respeito de comportamento de
índices de bolsas de valores, evolução de taxas de câmbio, preços futuros do
barril de petróleo, expectativas futuras de taxa de juros de algum Banco
Central de país selecionado ou mesmo apostas em resultados de disputas
eleitorais pelo mundo afora. Tudo pode ser precificado nos dias de hoje e as
apostas são feitas em um enorme cassino global.
Os efeitos econômicos e sociais
da entrada nessa nova era do capital improdutivo se fazem sentir a cada nova
crise financeira internacional. Graças ao extremo poder dos grandes
oligopólios, os dirigentes da elite do financismo global conseguem transferir o
ônus do ajuste para os países mais pobres e para as populações desprotegidas e
que sobrevivem do trabalho. Com a chantagem explícita do “too big to fail”,
pressionam os governos a priorizarem a ajuda direcionada às grandes corporações
financeiras, com o intuito de impedi-las de falirem.
Dowbor apresenta alguns dados que
refletem a gravidade da situação atual, uma vez que as consequências da crise
2008/9 parecem não ter contribuído para uma mudança no panorama sombrio. O
próprio Banco de Compensações Internacionais (BIS – uma espécie de banco
central dos bancos centrais) reconhece o descontrole do quadro. De acordo com
as estatísticas do organismo multilateral, haveria um estoque de 540 trilhões
de dólares de derivativos emitidos pelo mundo afora, circulando pelas praças
financeiras globais e sem nenhum controle ou garantia de pagamento para os
possuidores de tais títulos. Para se ter uma noção da ordem de grandeza, esse
valor representa 7,5 vezes a estimativa do PIB global (US$ 75 trilhões).
O descolamento da esfera do
financeiro em relação ao mundo real parece evidente. Em função dos riscos que
tal movimento apresenta para a economia global é necessário que se promova uma
profunda mudança de paradigma. Afinal, como dizia o poeta há quase 3 décadas
atrás, “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.
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