Como Ricardo Salles adulterou um
mapa ambiental para beneficiar mineradoras
Tatiana Dias, Rosângela Lotfi | The
Intercept* - Brasil
Era uma segunda-feira normal de
trabalho na Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São Paulo quando Victor
Costa recebeu uma demanda pouco usual. Fernanda Lemes, coordenadora do Núcleo
do Plano de Manejo, pediu que ele “alterasse uns mapas”. Ele achou estranho.
Não era dessa forma que esse tipo de pedido costumava vir.
Então coordenador do setor de
Geoprocessamento e Cartografia da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e,
portanto, responsável por elaborar mapas para qualquer tipo de empreendimento e
licenciamento ambiental, ele perguntou o porquê da alteração. “Eu pedi para
formalizar por e-mail”, lembra. Mapas de zoneamento levam meses para serem
elaborados. São feitos por pesquisadores, discutidos em audiências públicas e
aprovados pelo conselho ambiental. “Começaram a me pressionar, falando que era
urgente, pedido do secretário.”
Lemes afirmou que a demanda havia
surgido em uma reunião do então secretário estadual do Meio Ambiente, Ricardo
Salles, com “pessoas da Fiesp”, a Federação das Indústrias de São Paulo.
Segundo ela, a justificativa foi que o zoneamento da região não estava adequado
para delimitar a extensão da Área de Proteção Ambiental.
O mapa em questão era o Plano de
Manejo da Várzea do Rio Tietê, que havia sido elaborado por pesquisadores da
USP sete anos antes. Salles e a Fiesp queriam rever o zoneamento de duas regiões
específicas às margens do rio – uma entre as cidades de São Paulo e Suzano e a
outra entre Barueri e Santana de Parnaíba, todas na grande São Paulo.
Em uma reunião no dia 11 de
novembro de 2016, o secretário e os representantes da Fiesp marcaram no mapa,
com anotações e post-its, as alterações que queriam fazer. O setor de
geoprocessamento recebeu os mapas com os desejos da indústria sinalizados.
As demandas incluíam a redução de
uma zona de conservação hidrodinâmica da planície fluvial, um tipo mais restritivo
que serve para preservar o curso do rio, com áreas para enchentes, por exemplo.
A região passaria a ser uma zona de reordenamento socioambiental e da paisagem,
mais permissiva, que permite construções. A intenção era liberar atividade de
mineração na região.
Desconfiado, Victor Costa pediu
que a demanda fosse formalizada por e-mail. Recebeu todo o histórico: as
alterações propostas diretamente pela Fiesp (mais especificamente, pela
analista ambiental dos industriais, Maria Cristina Murgel) e o pedido para que
elas fossem feitas rapidamente. “Queria te pedir para tratar este tema como
prioridade. O Secretário já me cobrou várias vezes a versão final dos
documentos”, pediu a assessora de Salles, Roberta Buendia, à Fernanda Lemes,
que foi a responsável por encaminhar a demanda ao setor de geoprocessamento.
Victor Costa respondeu por
e-mail. Disse que atenderia a demanda, mas questionou o processo. “Entendemos
que os mapas se referem a uma proposta de alteração do zoneamento já aprovado
pelo referido Conselho”, escreveu Costa em um e-mail com cópias para os
superiores e a Fiesp. “Temos a seguinte dúvida: os mapas aqui requisitados
serão objeto de uma nova deliberação do Conselho Gestor da Unidade?”,
questionou, perguntando se as alterações seriam submetidas à avaliação do órgão
formado por pesquisadores, sociedade civil, população e setor privado.
Não seriam. Ricardo Salles, à
pedido da Fiesp, quis encurtar o processo.
“Esse pedido veio para que eu
alterasse os mapas sem mostrar. Fraudar. Não colocar nome, data. Não mudar nada
na legenda. Apenas mudar as cores”, diz Victor. Depois de questionar a
alteração, o funcionário conta que começou a sofrer pressão e ameaças. O setor
de geoprocessamento fez as alterações possíveis e entregou o mapa dentro do
prazo – uma sexta-feira, 25 de novembro. Mas a equipe se negou a trocar, por
exemplo, o nome “Rio Tietê” para “canal de circunvalação”. Também marcaram
todas as alterações, explicitando que haviam sido feitas a pedido da Fiesp, e
incluíram os créditos de quem fez o mapa original e quem o alterou.
A diretoria da secretaria não
gostou. O Núcleo de Planos de Manejo disse que a discussão sobre a legalidade
caberia ao órgão e que não era necessário “colocar a fonte” dos dados. Ou seja:
a demanda era esconder que o mapa havia sido alterado.
Indignado com a pressão e por ter
sido envolvido na fraude, Victor Costa pediu demissão duas semanas depois e
denunciou o que viu ao Ministério Público de São Paulo. “Era a única forma de
impedir que o novo mapa fosse aprovado”, diz. Foi acusado por Ricardo Salles de
fazer parte de ONGs e de ser “eco-xiita”. Um de seus ex-colegas foi perseguido
em reuniões e o outro, mudado de área sem aviso prévio depois que voltou de
férias.
O MP denunciou Salles, a Fiesp e
outros responsáveis. O então secretário justificou, em depoimento aos
promotores, que havia “erros crassos” no material e que as alterações foram
discutidas em “várias reuniões” na secretaria. Disse que, para “dar celeridade
ao processo” e “desburocratizar”, fazia as convocações para as reuniões por
e-mail – e não apresentou provas. E disse que, em divergências, “alguém tinha
que tomar a decisão. E assim foi feito”. As alterações, para ele, “foram feitas
para dar segurança jurídica” e não colocar empresas, pessoas e o Estado “na
ilegalidade”.
Não colou. Salles foi condenado
por improbidade administrativa, com multa de dez vezes o seu salário na época,
e teve seus direitos políticos suspensos por três anos.
A condenação saiu no dia 18 de
dezembro de 2018. Duas semanas depois, ele assumiu o cargo de ministro do Meio
Ambiente na gestão de Jair Bolsonaro.
Desburocratização, a alma do
negócio
Para entender a ascensão na
carreira do advogado Ricardo de Aquino Salles ao mais alto escalão ambiental do
país, é preciso olhar para sua carreira prévia. Mais especificamente, para seu
trânsito fácil entre o setor privado e o governo, a começar pela gestão tucana
de Geraldo Alckmin, onde o fundador do movimento Endireita Brasil ocupou seu
primeiro cargo público.
Como político, Ricardo Salles foi
um fiasco. Ele concorreu a deputado federal pelo PFL em 2006, a deputado estadual
em 2010 pelo DEM, a vereador pelo PSDB em 2012 (renunciou à candidatura) e a
deputado federal em 2018 pelo Novo. Perdeu todas. O máximo que conseguiu foi a
posição de suplente em 2010 na Assembleia Legislativa de São Paulo. Como
advogado, defendeu construtoras e uma das herdeiras de Hebe Camargo. Também foi
diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, associação que representa os
interesses do agronegócio.
Em 2013, abandonou a advocacia e
começou a trabalhar como secretário particular de Geraldo Alckmin, então
governador de São Paulo. Nessa época, recebia um salário de R$ 12 mil e quase
foi preso por não pagar pensão alimentícia de R$ 3 mil aos filhos. No processo,
alegou que não tinha “condições financeiras” para pagar os R$ 28 mil que devia
à ex-mulher pelos meses de pensão atrasada.
No começo do ano seguinte, no
entanto, ele deixou o Palácio dos Bandeirantes e voltou para o setor privado –
para a Vila Olímpia, no escritório da incorporadora Bueno Netto. Ele seria
encarregado de cuidar do imbróglio judicial que a construtora tinha com um
empreendimento chamado Parque Global, que seria um conjunto de dezenas de
prédios na marginal Pinheiros, no Morumbi.
O terreno, que antes pertencia à
Light, companhia elétrica de São Paulo, havia sido abandonado por contaminação
por zinco e manganês. Foi preparado, comprado, autorizado pela prefeitura em
2010 e lançado em 2013 – mas a obra acabou embargada no ano seguinte pelo
Ministério Público por problemas ambientais e urbanísticos. Segundo o MP,
apenas parte do empreendimento havia sido autorizada pela prefeitura. O órgão
também exigiu que a construtora retirasse a terra poluída do local – o que,
segundo a Bueno Netto, inviabilizaria o empreendimento.
Defendida por Salles, a
construtora fez uma reclamação formal contra o Ministério Público, alegando
que já tinha cumprido os pré-requisitos para a obra. A justiça acabou
embargando o Parque Global, mesmo com a construtora conversando diretamente com o governo de Geraldo Alckmin.
O prejuízo chegou a R$ 500
milhões, entre gastos com publicidade, obtenção de licenças e manutenção do
espaço, fora os R$ 800 milhões da compra do terreno e a
obrigação de devolver o dinheiro de 300 clientes que compraram apartamentos na
planta.
Dos processos milionários
envolvendo antigas sociedades desfeitas para o empreendimento, a Bueno Netto foi condenada a pagar R$ 160 milhões aos antigos sócios,
mas só pagou R$ 10 milhões – foi o dinheiro encontrado na justiça no processo
de falência. Ainda no alvo do Ministério Público paulista, Ricardo Salles foi
investigado por atuar na Bueno Netto, segundo os procuradores, cometendo
fraudes para blindar o grupo que ele defendia. De acordo com o MP, mesmo
atuando para um grupo privado, ele se apresentava como sendo “ligado ao governo
do estado”.
O período na iniciativa privada
rendeu ótimos frutos a Ricardo Salles. O ex-devedor de pensão declarou, na
eleição de 2018, um patrimônio de R$ 8,8 milhões – um aumento de 4.000% desde
sua primeira tentativa de eleição, em 2006.
Ideologia? Só os outros têm
Salles se tornou secretário
estadual do Meio Ambiente pouco depois, em julho de 2016, na gestão de Alckmin.
Então membro do PP, ele era próximo à ala do PSDB que apoiava a candidatura de
João Doria à prefeitura de São Paulo, mas sua presença era incômoda para parte
do PSDB. Quando Salles chegou ao governo como moeda de troca do PP pelo apoio a
Doria, o tucano Alberto Goldman se disse “enojado”.
A adulteração nos mapas aconteceu
três meses depois de sua posse como secretário. E não foi sua única acusação.
Foi investigado por abrir uma chamada pública para vender 34 áreas do Instituto
Florestal – sem passar pelo rito legislativo. Depois, tentou negociar a sede do
Instituto Geológico para obter recursos para fusão com outros dois institutos –
sem que eles concordassem, ideia interrompida pela Procuradoria Geral do Estado. Em 14
de junho de 2017, o Ministério Público Estadual acusou o secretário de advocacia administrativa – ou seja, de
favorecer o interesse privado usando a administração pública. Neste caso, os
interesses da Bueno Netto, a incorporadora para a qual ele havia trabalhado.
Pouco antes de deixar a
secretaria, em um evento em Cajati, no Vale do Ribeira, em São Paulo, Salles se
indignou com um busto de Carlos Lamarca, guerrilheiro de esquerda morto em
1971. Pediu ao prefeito que funcionários retirassem o busto. A
estátua foi arrancada e levada por viatura da polícia ambiental até a capital
paulista, e o pedestal, demolido. A passagem dos guerrilheiros da Vanguarda
Popular Revolucionária, em 1969, era um atrativo histórico na pequena cidade.
O Ministério Público de São Paulo
acusou Salles de improbidade administrativa ambiental por ordenar a remoção “à
revelia do devido processo legal administrativo e apenas imbuído de patente
móvel ideológico incompatível com o exercício da nobre função pública que
ocupava”. Como secretário do Meio Ambiente, Salles não tinha poder para tomar a
decisão, de acordo com o MP, mas achou importante remover qualquer vestígio de
esquerda por onde passou. Uma posição curiosa para quem hoje diz rechaçar a “perseguição
ideológica”.
No dia 28 de agosto de 2017,
Salles pediu demissão. Segundo o G1, a decisão partiu do PP, descontente com o
desempenho do secretário. Salles disse que saiu com a “sensação de dever
cumprido” e que voltaria para o setor privado. Deixou o PP, foi para o Novo e,
pouco mais de um ano depois, voltou para o setor público no alto escalão de
Jair Bolsonaro.
A favor da ‘autodeclaração’ das
empresas
Com a tragédia de Brumadinho,
provocada pela mineradora Vale, o ministério do Meio Ambiente assumiu uma
inesperada posição central no início do governo Bolsonaro. O presidente chegou
a cogitar a fusão da pasta com o ministério da Agricultura – o que, na prática,
submeteria órgãos como o Ibama aos interesses agropecuários –, mas voltou atrás
após uma dura reação da sociedade civil. Acabou nomeando, então, o ex-colega do
PP, Ricardo Salles, agora filiado ao Novo.
Com uma campanha eleitoral em que
prometia “munição de fuzil” contra o MST, chamou a atenção de Bolsonaro. “Vocês
gostaram do ministro do Meio Ambiente agora, né?”, disse Bolsonaro a ruralistas
logo após a escolha, em um vídeo gravado no Clube Militar de Brasília.
Assim como seu chefe e seus
colegas, Salles chegou ao ministério motivado a extirpar a “ideologia” de
esquerda. Disse que “perseguição ideológica não é saudável para ninguém” e
que sua gestão seria responsável por “harmonizar” os interesses. Seguindo a
cartilha de seu chefe – que queria no ministério alguém “sem caráter xiita” e
proteger o meio ambiente sem “criar dificuldades para o nosso progresso” –,
Salles disse que no Brasil há um “descontrole na aplicação da lei e da
fiscalização”.
Depois de Brumadinho, o ministro classificou a atual lei ambiental como “complexa e
irracional”. “Recursos humanos que deveriam estar focados nas questões de médio
e alto risco estão sendo dispersos. Precisamos de legislação que funcione,
licenciamento que funcione”, disse.
A flexibilização e a
simplificação das leis ambientais é uma demanda de setores como a mineração e a agropecuária, que
fazem lobby para aprovar o licenciamento para o setor. A proposta de Salles,
defendida antes de Brumadinho, é que a liberação possa ser feita com uma “autodeclaração” – ou seja, o
empreendedor diz que a obra está ok, e a fiscalização vem depois. Na proposta de
Salles, não fica claro, por exemplo, quem define o grau de impacto ambiental de
uma obra.
Se depender do histórico de
defesa dos interesses corporativos e “desburocratização” – uma palavra bonita
que ele usou para justificar não ter cumprido os ritos tradicionais dos
processos ambientais em seu período como secretário –, não é difícil deduzir a
quem o seu posicionamento vai beneficiar.
Enquanto Salles recorre da
condenação, o Ministério Público paulista entrou com uma apelação pedindo que ele seja impedido
de exercer o cargo de ministro. Segundo o MP, a mudança nos mapas ordenada por
Salles poderia provocar “gravíssimas consequências”. Os condenados, segundo os
promotores, agiram “com a clara intenção de beneficiar setores econômicos,
notadamente a mineração”. Vale lembrar que a justiça paulista livrou o
ex-secretário – e também a Fiesp – de uma multa milionária pelos possíveis
danos ambientais decorrentes das alterações. Outro advogado entrou com uma ação
para tentar impedir que Salles assumisse, mas a justiça paulista negou o
pedido. “Gostando ou não da escolha, parece que ainda foi feita dentro do
espaço de discricionariedade política próprio do cargo de Presidente da
República”, disse o juiz na decisão.
Em entrevista à Jovem Pan, o
ministro atribuiu a condenação à perseguição “ideológica”, como de praxe.
O ministro disse que “esse processo e a decisão são muito mais um combate
político-ideológico contra a postura que eu adotei na secretaria do que
qualquer ilegalidade formal”. E que Bolsonaro reconhece isso.
Apesar das denúncias, Salles
assumiu normalmente o ministério. Sua agenda foi ocupada, principalmente, por
encontros com ruralistas, empresários, banqueiros e mineradoras – nenhuma
reunião com ambientalistas e pesquisadores da área aconteceu em seu primeiro
mês no ministério. Na quarta-feira, 23, se encontrou com representantes da
Frente Parlamentar de Agropecuária e, logo depois, com Luiz Eduardo Fróes do
Amaral Osório, diretor-executivo de Sustentabilidade e Relações Institucionais
da Vale. Dois dias depois, a lama desceu sobre Brumadinho.
Correção: 11 de fevereiro de
2019, às 15h30
Este texto inicialmente afirmou que a obra do Parque Global foi embargada definitivamente, mas o embargo não é definitivo. A grafia do nome de Maria Cristina Murgel (e não Gurgel, como estava escrito) também foi corrigida.
Este texto inicialmente afirmou que a obra do Parque Global foi embargada definitivamente, mas o embargo não é definitivo. A grafia do nome de Maria Cristina Murgel (e não Gurgel, como estava escrito) também foi corrigida.
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