Miguel Graça Moura* | Diário De
Notícias | opinião
No espaço de apenas dois dias (17
e 18 do mês de maio), três textos em três jornais diferentes defendem a baixa
da idade para votar dos actuais 18 para os 16 anos, felizmente já rotundamente
chumbada na Assembleia da República (a saber: Votar aos 16: a democracia
representativa faz-se com representação, de Susana Peralta, in Público do
dia 17 [pág. 6]; Aos 16, de João Taborda da Gama, in jornal Diário de Notícias
(online) do dia 18; e A idade para votar devia baixar para os 16 anos? Sim, de
André Silva, este em contraponto com o Não de José Matos Correia ao lado, in
semanário Expresso do dia 18 [1º caderno, pág. 4]).
Boquiaberto perante colocar-se
sequer tal hipótese, num contexto em que a democracia está cada vez mais
ameaçada e atacada por todo o lado, deixo aqui algumas reflexões que vão
exactamente em sentido contrário.
1. Subjacente à democracia está a
sua essência: a liberdade. Ora, a liberdade pressupõe conhecimento, informação
e capacidade de análise e reflexão ([1]).
2. Daqui resulta que a democracia
pressupõe educação e cultura, porque não há escolhas conscientes sem uma nem
outra.
3. Ora, o que nos mostra a realidade
actual?
a) Que a ignorância alastra a
grande velocidade, em particular entre os jovens: porque o nível de exigência
na educação não tem parado de baixar, mascarado ironicamente de
"democratização do ensino". É vê-los chegarem ao fim das licenciaturas
sem saberem estruturar uma frase em português decente (e já nem falo da
ortografia) - o que no fundo traduz dificuldades em articular raciocínios, ou
seja, pensar (visto que a essência do pensamento é linguística);
b) Que o nível de cultura geral,
idem aspas: os jovens deixaram de ler livros, não lêem jornais e
"informam-se" através das redes sociais. Mas a maioria destas não só
são instrumentos de banalização da vulgaridade e da boçalidade, como tendem a
estupidificar pela substituição da informação pela opinião, e - o que é
bastante pior - pela des-hierarquização dos valores e das referências: a
inteligência e a estupidez equivalem-se, os factos tornam-se opiniões e
vice-versa;
c) Que, assim desarmados, os
jovens são carne para canhão da desinformação que hoje invadiu o espaço
virtual, onde cada vez há mais algoritmos sofisticadíssimos a produzirem ondas
de opinião fabricadas de propósito para condicionar a capacidade de análise,
apanhando-os segundo as suas tendências por sua vez expostas imprudentemente
nas redes sociais, e recolhidas sistematicamente pelas grandes plataformas que
têm capacidade de tratar gigantescas quantidades de informação (big data). Como
já alguém disse, nem Orwell foi tão longe;
d) Que, a coroar este quadro
negro, os políticos profissionais também têm decaído significativamente em
qualidade e capacidade de comunicação (olhem para a campanha para as eleições
europeias), contribuindo assim de forma generalizada para o desinteresse da
juventude pela política, quando não para a sua "captura" pelo lado
mais miserável desta - onde ela se transforma em clubite partidária e deixa de
servir ideias para servir interesses.
4. Adicione-se a este caldo
nefasto a existência de países (como a China e a Rússia - os EUA já nem contam,
com aquele inenarrável palhaço à frente - a não ser em sentido contrário)
interessados precisamente em narcotizar as consciências, condicionar os
comportamentos e controlar as liberdades, e temos, tudo somado, exposta a maior
ameaça aos próprios fundamentos da democracia. A proliferação dos populismos e
nacionalismos é apenas uma consequência lógica e um sintoma óbvio.
Neste quadro, está na altura,
quanto a mim - e não ignoro que vou contra a corrente, aliás com todo o prazer
-, de seguir precisamente no sentido oposto: subir a idade mínima de votar
para, digamos, os 25 anos - altura em que os jovens já entraram na vida adulta
e no mundo do trabalho, com tudo o que ele ensina sobre a vida e a política,
justamente -, e ainda fazendo depender o direito ao voto da aprovação num exame
mínimo, elementar, sobre os fundamentos da política e da própria democracia
([2]). Esta é demasiado importante para ser deixada em mãos (mentes)
culturalmente imberbes. Mesmo assim, não sei se ainda vamos a tempo de a salvar
- tanto e tão eficazmente já está ela a ser abalroada.
*Maestro, compositor e professor
aposentado
Notas:
([1]) «Informado, sou um cidadão;
não-informado, sou apenas um súbdito», escreveu Alfred Sauvy (1898-1990;
sociólogo e economista francês).
([2]) Mais ou menos o equivalente
à antiga disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação,
evidentemente expurgada de todo o conteúdo "Estado Novo", mas
mostrando, por exemplo, a diferença entre o poder executivo, o poder
legislativo e o poder judicial, e a imprescindibilidade da sua separação. Como
se pode falar em voto "livre" se se ignoram coisas tão básicas?
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