segunda-feira, 17 de junho de 2019

Portugal | Contra a corrente, convicta e resolutamente


Miguel Graça Moura* | Diário De Notícias | opinião

No espaço de apenas dois dias (17 e 18 do mês de maio), três textos em três jornais diferentes defendem a baixa da idade para votar dos actuais 18 para os 16 anos, felizmente já rotundamente chumbada na Assembleia da República (a saber: Votar aos 16: a democracia representativa faz-se com representação, de Susana Peralta, in Público do dia 17 [pág. 6]; Aos 16, de João Taborda da Gama, in jornal Diário de Notícias (online) do dia 18; e A idade para votar devia baixar para os 16 anos? Sim, de André Silva, este em contraponto com o Não de José Matos Correia ao lado, in semanário Expresso do dia 18 [1º caderno, pág. 4]).

Boquiaberto perante colocar-se sequer tal hipótese, num contexto em que a democracia está cada vez mais ameaçada e atacada por todo o lado, deixo aqui algumas reflexões que vão exactamente em sentido contrário.

1. Subjacente à democracia está a sua essência: a liberdade. Ora, a liberdade pressupõe conhecimento, informação e capacidade de análise e reflexão ([1]).

2. Daqui resulta que a democracia pressupõe educação e cultura, porque não há escolhas conscientes sem uma nem outra.

3. Ora, o que nos mostra a realidade actual?


a) Que a ignorância alastra a grande velocidade, em particular entre os jovens: porque o nível de exigência na educação não tem parado de baixar, mascarado ironicamente de "democratização do ensino". É vê-los chegarem ao fim das licenciaturas sem saberem estruturar uma frase em português decente (e já nem falo da ortografia) - o que no fundo traduz dificuldades em articular raciocínios, ou seja, pensar (visto que a essência do pensamento é linguística);

b) Que o nível de cultura geral, idem aspas: os jovens deixaram de ler livros, não lêem jornais e "informam-se" através das redes sociais. Mas a maioria destas não só são instrumentos de banalização da vulgaridade e da boçalidade, como tendem a estupidificar pela substituição da informação pela opinião, e - o que é bastante pior - pela des-hierarquização dos valores e das referências: a inteligência e a estupidez equivalem-se, os factos tornam-se opiniões e vice-versa;

c) Que, assim desarmados, os jovens são carne para canhão da desinformação que hoje invadiu o espaço virtual, onde cada vez há mais algoritmos sofisticadíssimos a produzirem ondas de opinião fabricadas de propósito para condicionar a capacidade de análise, apanhando-os segundo as suas tendências por sua vez expostas imprudentemente nas redes sociais, e recolhidas sistematicamente pelas grandes plataformas que têm capacidade de tratar gigantescas quantidades de informação (big data). Como já alguém disse, nem Orwell foi tão longe;

d) Que, a coroar este quadro negro, os políticos profissionais também têm decaído significativamente em qualidade e capacidade de comunicação (olhem para a campanha para as eleições europeias), contribuindo assim de forma generalizada para o desinteresse da juventude pela política, quando não para a sua "captura" pelo lado mais miserável desta - onde ela se transforma em clubite partidária e deixa de servir ideias para servir interesses.

4. Adicione-se a este caldo nefasto a existência de países (como a China e a Rússia - os EUA já nem contam, com aquele inenarrável palhaço à frente - a não ser em sentido contrário) interessados precisamente em narcotizar as consciências, condicionar os comportamentos e controlar as liberdades, e temos, tudo somado, exposta a maior ameaça aos próprios fundamentos da democracia. A proliferação dos populismos e nacionalismos é apenas uma consequência lógica e um sintoma óbvio.

Neste quadro, está na altura, quanto a mim - e não ignoro que vou contra a corrente, aliás com todo o prazer -, de seguir precisamente no sentido oposto: subir a idade mínima de votar para, digamos, os 25 anos - altura em que os jovens já entraram na vida adulta e no mundo do trabalho, com tudo o que ele ensina sobre a vida e a política, justamente -, e ainda fazendo depender o direito ao voto da aprovação num exame mínimo, elementar, sobre os fundamentos da política e da própria democracia ([2]). Esta é demasiado importante para ser deixada em mãos (mentes) culturalmente imberbes. Mesmo assim, não sei se ainda vamos a tempo de a salvar - tanto e tão eficazmente já está ela a ser abalroada.

*Maestro, compositor e professor aposentado

Notas:
([1]) «Informado, sou um cidadão; não-informado, sou apenas um súbdito», escreveu Alfred Sauvy (1898-1990; sociólogo e economista francês).
([2]) Mais ou menos o equivalente à antiga disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, evidentemente expurgada de todo o conteúdo "Estado Novo", mas mostrando, por exemplo, a diferença entre o poder executivo, o poder legislativo e o poder judicial, e a imprescindibilidade da sua separação. Como se pode falar em voto "livre" se se ignoram coisas tão básicas?

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