Contra a legislação, instituições
públicas e privadas continuam a negar o acesso ao emprego a pessoas que vivem
com HIV/SIDA em Moçambique e Angola. Ouvimos as vítimas e as associações
preocupadas com a discriminação.
Joana Francisco é uma jovem
moçambicana. Tem 26 anos e há três descobriu que é seropositiva. Na
altura, era empregada doméstica. Não revelou o seu estado serológico aos
patrões.
Quando a patroa descobriu que era
seropositiva, mandou-a embora. Igualmente, Joana viu congelados
os salários de três meses que estavam em atraso.
"Fiquei doente, fui ao
hospital, deixei meus comprimidos em cima da cama, a minha patroa entrou no meu
quarto viu aqueles comprimidos e me mandou embora", conta a jovem que
ainda luta para reaver os seus salários. "Ela negou pagar-me, alegando que
quer levar aquele valor ao hospital para fazer o exame aos filhos para saber se
ficaram infetados ou não".
A lei 19/2014 para a Proteção da
Pessoa, do Trabalhador e do Candidato a Emprego Vivendo com HIV e SIDA, em
Moçambique, estabelece que "pessoas vivendo com HIV/SIDA não devem
ser discriminadas ou estigmatizadas em razão do seu estado de
seropositividade".
"Como é que esta
senhora vai provar que antes da empregada começar a trabalhar na sua casa
ela não era seropositiva?", questiona a jurista.
Firosa Zacarias afirma mesmo que
há espaço para uma responsabilzação criminal: "Esta trabalhadora deve
procurar instituições que possam defender a causa dela e ela tem direito ao seu
salário".
Em Moçambique, há muitos casos
semelhantes, diz Judite de Jesus, coordenadora da associação Hi Xikamwe,
que apoia pessoas vivendo com o HIV nos arredores da cidade de Maputo.
"Trabalhamos com muitas mulheres que passaram por uma situação idêntica. Pessoalmente, com as minhas assistentes sociais, vamos dar andamento jurídico
destes casos", garante.
Um estudo publicado em 2013 pela
ONUSIDA aponta que 6,5% das pessoas seropositivas em Moçambique
tinham perdido seus postos de trabalho. O mesmo documento indica que 9,7% das
pessoas entrevistadas consideram que foram afastadas por serem seropositivas.
No entanto, a jurista Firosa
Zacarias observa que não há muitas denúncias por da parte das pessoas
lesadas, por causa do auto-estigma e desconhecimento da existência de uma
lei que as protege.
Estarão instituições públicas em
Moçambique a violar a lei?
Engane-se quem pensa que estes
casos acontecem apenas no setor privado. Selmina Panguene, de 44 anos, é
professora no Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano há 21 anos.
Chegou a desempenhar o cargo de diretora de uma escola durante cinco anos, na província
de Maputo.
Em 2007, teve tuberculose
associada ao HIV. Cumpriu com os tratamentos exigidos pelo sistema moçambicano
de saúde. No entanto, desde 2012, está suspensa das suas funções por conta do
seu estado de saúde. E sabe que tem um processo de reforma antecipada que está
a ser movido contra ela.
"Quando souberam que eu
tinha sequelas de tuberculose acabaram por dizer que eu tinha que me
reformar", recorda, em entrevista à DW África. "Não é porque eu
tivesse incapacidade de continuar a trabalhar, até porque já não estava na sala
de aulas e estava a fazer trabalhos moderados", explica.
A jurista Firosa Zacarias
recomenda, neste caso, um processo contra o Estado moçambicano e justifica:
"Se não há elementos bastantes que apontem que ela não está em condições
para continuar a trabalhar, nenhuma instituição deve fazer isso com ela".
Selmina Panguene diz-se disposta
a trabalhar, até porque, desde 2017, é assistente social na associação Hi
Xikamwe, em Maputo. "A minha dor é reformar-me enquanto ainda não estou na
idade da reforma. Alguém cortar a minha esperança de vida", lamenta.
A DW África tentou, sem sucesso,
obter uma reacção do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano de
Moçambique.
Desconhecimento da lei
Poucas pessoas em Moçambique têm
o domínio ou mesmo o conhecimento da existência da lei para Proteção da Pessoa,
do Trabalhador e do Candidato a Emprego Vivendo com HIV e SIDA. Uma realidade
que tem de ser combatida, diz a jurista Firosa Zacarias.
"Este é um mal nacional, de
todos os dispositivos legais. As pessoas sabem onde devem levantar os
anti-retrovirais, mas da lei ouve-se pouco", afirma a jurista
salientando que "era importante nas instituições falar do HIV e da lei
para transferência de conhecimento e uso, para que as leis deixem de ser letras
mortas, como é o caso de Moçambique, onde temos leis extremamente brilhantes
mas sem uso".
Exigência de testes do HIV para o
recrutamento em Angola
Para além de Moçambique, também
em Angola há registo de violação dos direitos das pessoas vivendo com o HIV,
segundo denunciou e condenou recentemente a deputada angolana Eulália
Rocha, do MPLA, ao apontar a existência de instituições angolanas que exigem
testes de HIV no processo de recrutamento.
Noé Mateus é membro da
Associação Amigos da Vida (AVIDA), que trabalha com pessoas vivendo com HIV em
Angola. E entrevista à DW, confirmou as denúncias da parlamentar, explicando
que "as empresas exigem um check-up dos funcionários na hora de
contratação e nunca se sabe se isto é para fazer esta seleção de quem é HIV
positivo".
"Para nós, isso é
inaceitável. É uma regressão de um grande esforço que o país exerceu ao longo
dos tempos", sublinha o ativista.
O Governo angolano, através do
ministro da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social (MAPTSS), Jesus
Maiato, classificou este ato como uma "atitude arbitrária", por
não existirem no país leis que impõem a apresentação do teste.
O artigo 6 do Decreto n°43/3 de 4
de julho, aprovado pelo Governo angolano em 2003, estabelece que "não
é permitido em circunstância alguma a realização do teste para detecção de
anti-corpos anti-HIV como pré-requisito na admissão ao emprego, nem o controlo
forçado do HIV/SIDA no local de trabalho, salvo a pedido do candidato ou do
trabalhador, exceptuando-se os casos legalmente exigidos".
Noé Mateus exige uma
responsabilização criminal das instituições que violem a lei, em proteção dos
direitos da pessoa vivendo com a HIV/SIDA: "Se as instituições públicas ou
privadas discriminam as pessoas vivendo com o HIV, como é que a comunidade vai
reagir para com estas pessoas? Estamos a colocá-las entre a espada e a
parede".
Amós Zacarias | Deutsche Welle
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