Ricardo Machava | O País
| opinião
Levei mais de um ano a juntar
elementos que pudessem suportar a minha reflexão sobre os ataques armados em
Cabo Delgado, Norte de Moçambique, até que esta semana a
procuradora-geral-adjunta, Dra. Amabélia Chuquela, me deu os últimos subsídios
para compor este artigo de opinião, cuja conclusão se baseia na constatação
feita no terreno, das três vezes que estive no teatro das operações como
jornalista, para além de conversa com várias fontes entendidas na matéria.
Como ponto de partida e para
melhor entendimento, sem equívocos, gostava de trazer o excerto da entrevista
que a magistrada do Ministério Público deu à STV, à margem do seminário que
visa o fortalecimento da capacidade de prevenção e combate ao terrorismo, que
termina hoje na cidade de Pemba, na qual disse:
“O que aconteceu nos casos dos
indivíduos que foram absolvidos é que os elementos não foram suficientes.
Portanto, não foram acareados elementos suficientes para levar à condenação das
pessoas. Por isso mesmo que estamos a dizer que é preciso investir, e nós só
podemos resolver a questão de Cabo Delgado se começarmos também a apostar e
investir nos órgãos que estão aqui no terreno a fazer a investigação, a fazer a
prossecução e a fazer o julgamento destes casos. É preciso que o Serviço
Nacional de Investigação Criminal seja dotado de meios financeiros, económicos,
equipamento que lhe permita detectar e fazer face a este fenómeno. Não se pode
combater o fenómeno de ataques em Cabo Delgado de uma forma como nós temos
vindo a fazer. É preciso sofisticar, dotar os agentes criminais, os
procuradores, os juízes, de elementos que lhes permitam fazer face a esta
situação. Estamos a ver um fenómeno que parece que está a surgir assim como que
não é nada, mas se não conseguirmos controlar a tempo e não investimos
exactamente na prevenção e repressão, este fenómeno poderá alastrar-se para
outras províncias.”
1. Não há
aposta no investimento para que os órgãos que estão no terreno façam uma
investigação exaustiva daqueles crimes bárbaros perpetrados contra a população.
Ou, se houver, pelo menos a crítica aponta para um investimento não à altura da
seriedade do assunto. Se calhar seja por isso que há muitos detidos e muitos
absolvidos, igualmente, por insuficiência de prova, o que, em linguagem
técnica, equivale a dizer insuficiência de instrução do processo.
2. Parece
faltar meios financeiros e materiais para o Serviço Nacional de Investigação
Criminal detectar os sinais operacionais dos criminosos para os descactivar
antes de fazerem novas incursões. Estamos aqui no campo preventivo e não
reactivo das autoridades.
3. Há um alerta
no sentido de que enquanto as coisas continuarem como estão, o fenómeno pode
alastrar-se para outras províncias, visto que em Cabo Delgado esses grupos
terroristas estão a incubar-se e a levarem a cabo acções terroristas, colocando
em causa a autoridade das Forças de Defesa e Segurança do Estado.
Posto isto, e estando num Estado
de direito democrático, onde a liberdade de opinião e de imprensa é um dos
princípios basilares, julgo importante discutirmos alguns aspectos de forma
objectiva, sem, no entanto, pôr em causa a confidencialidade de assuntos de
natureza militar que à luz da Lei de Imprensa configuram Segredos do Estado.
Primeiro, é pertinente salientar
que o primeiro ataque a uma unidade policial não de deu em Cabo Delgado, mas
sim na vila de Nametil, distrito de Mogovolas, província de Nampula, na
madrugada do dia 27 de Agosto de 2017, quando dois indivíduos foram ao comando
distrital fingindo querer participar uma denúncia contra um terceiro. Depois de
se fazerem ao interior das instalações, tiraram armas de fogo do tipo pistola,
mataram o oficial de permanência e feriram gravemente outro agente da polícia.
Nesse ataque, roubaram armamento e munições.
Na madrugada do dia 5 de Outubro
do mesmo ano, houve quatro ataques armados em Mocímboa da Praia, província de
Cabo Delgado: um contra um posto policial em Auasse; o segundo contra uma
unidade da Polícia de Protecção de Recursos Naturais (onde roubaram munições e
armamento); o terceiro no comando distrital na vila da Mocímboa da Praia e o
quarto contra um quartel militar, naquela vila, que na altura parecia meio
abandonado.
Quase dois anos depois, a
investigação a estes casos mostra-se pouco frutífera, a avaliar pelo facto de
os ataques se alastrarem e nunca vimos os cabecilhas dessas incursões detidos,
julgados e condenados, e o balanço oficial aponta para mais de 250 pessoas
mortas, 130 condenados a penas de prisão maior e acima de 100 absolvidos por
insuficiência de provas.
Estes últimos números provam
claramente que muitos processos são mal instruídos, se calhar naqueles velhos
moldes de prender para investigar, e quando faltam provas, o juiz nada pode
fazer a não ser exarar um mandado de soltura ou emitir um despacho de pedido de
produção de melhores provas.
Mas o que levaria uma instituição
como o Serviço Nacional de Investigação Criminal mandar ao tribunal um processo
sem provas? Falta de técnica de investigação ou de meios operativos para o
efeito? Que condições o Estado oferece aos agentes desse Serviço para
investigarem como mandam as regras?
Quando há poucos anos o Governo
decidiu obrigar ao registo dos cartões de telefonia móvel, um dos objectivos
era permitir que agentes de investigação legalmente autorizados pudessem ter
mecanismos para localizar os criminosos a partir de simples comunicações
telefónicas.
Ora, como se explica que em dois
anos não se desmantele a rede de criminosos que opera em apenas sete distritos
de uma província chamada Cabo Delgado? Colocado de outra forma: qual é a eficiência
desse registo de números de telefones celulares? Ou melhor, sem registo do
cartão é ou não possível usar esses números e descartá-los de seguida? E se
isso acontece, qual é a explicação?
Um bom piloto é considerado tal
pelo número de acidentes que consegue evitar, porque, quando acontece, é, na
maioria das vezes, fatal. Aliás, os médicos dizem que quando o organismo começa
a ficar com as células CD4 fracas, é preciso começar o tratamento, porque esse
organismo está vulnerável a qualquer doença, uma vez que as suas células
defensoras foram atacadas.
Como explicar à nação que
militares sejam assassinados com a maior brutalidade? O que está a falhar no
concreto? Se calhar seja a seriedade na forma de encarar este conflito.
No início deste mês, acompanhámos
notícias de um ataque armado no distrito de Nangade, onde os terroristas
assaltaram uma base militar e esquartejaram militares. Esta é uma afronta à
autoridade do Estado e deixa desesperada a população que deposita confiança
nessas autoridades.
Se no início o conflito se
desenrolava em Mocímboa da Praia, Palma, Quissanga e Nangade, agora evoluiu
para Muidumbe e Meluco. Como se explica que um conflito localizado, por mais
complexo que seja, esteja a levar o tempo que está a levar?
Há muita presença militar no
terreno? Claro! Mas será que essa é a melhor forma de combate? Hoje em dia, as
guerras são tecnológicas e, se formos a ver, foram contraídas dívidas em nome
da segurança do Estado, mas sucumbimos no primeiro teste de resistência. Então,
de que segurança estamos a falar?
Olhando ao de Cabo Delgado, pode
constatar-se que os distritos de Palma, Mocímboa da Praia, Macomia e Quissanga
estão na parte costeira, o que dá uma pista bastante interessante de que
provavelmente os insurgentes podem estar a movimentar-se por via marítima.
Perante essa hipótese, o que é feito no concreto?
Por outro lado, se dos condenados
até aqui existem estrangeiros, como tanzanianos e burundeses, aliado ao facto
de o primeiro ataque ter sido em Nampula – a província que tem um grande centro
de acolhimento de refugiados –, que trabalho de inteligência do Estado é feito
para encontrar alguns pontos que sejam importantes neste conflito?
Enfim, o meu texto tem mais
interrogações que afirmações, porque gostava um dia que alguém me desse
respostas, tal como qualquer moçambicano interessado na paz quer.
E mais do que isso, pretendo
questionar o papel das instituições que nós próprios como Estado criamos.
Por fim, ao Comandante-chefe das
Forças de Defesa e Segurança, gostava de questionar se conhece as reais
condições de trabalho dos militares e polícias que estão na linha da frente do
combate?
No futebol, quando uma equipa não
ganha, o treinador é que é sacrificado. E perante o dilema de Cabo Delgado,
quem se deve sacrificar?
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