Além de remeter à escravidão,
episódio de tortura de jovem negro é representativo de padrão racista que se
repete em supermercados e shoppings e da chegada incompleta do Brasil ao mundo
moderno, afirmam especialistas.
O ano é 2019, e os brasileiros
ainda veem alguns dos seus serem chicoteados e torturados. Muitos se perguntam
por que ao assistir ao vídeo que mostra um jovem de 17 anos, negro, nu,
com um pano amarrado à boca para abafar seus gritos, sofrendo açoites de um
segurança de supermercado em São Paulo enquanto outro grava a cena.
A tortura, como o ato foi
registado no boletim de ocorrência do 80º Distrito Policial da capital
paulista, é crime no Brasil desde 1997, mas segue sendo praticada por agentes
públicos em delegacias e presídios, segundo relatório da ONU. E também por seguranças de
estabelecimentos privados, como supermercados e shopping centers, ao lado de
lesão corporal e injúrias raciais, aponta uma pesquisa em andamento da Comissão
Arns.
O jovem foi açoitado em
junho, no supermercado Ricoy da Vila Joaniza, na zona sul de São Paulo, e
o crime se tornou público na semana passada. Nos últimos dias, surgiram relatos
de outros casos de tortura que teriam ocorridos em unidade da mesma rede – em
um deles, fotos mostram um homem amarrado e com marcas de chicotadas.
A empresa, por meio de nota,
disse ter ficado chocada com a "tortura gratuita e sem
sentido" e que iria contribuir com as investigações e dar apoio à
vítima. Os dois seguranças suspeitos de participar do crime estão em prisão
temporária decretada pela Justiça.
O episódio do supermercado Ricoy
não é fato isolado e manifesta aspectos estruturais da sociedade
brasileira, como o racismo, a desigualdade de direitos e o uso da violência por
agentes privados, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.
Paulo Sérgio Pinheiro,
ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo FHC e
membro da Comissão
Arns, afirma à DW Brasil que a tortura, expediente de controle e repressão
dos escravos, só foi amplamente percebida como um problema no país a partir da
ditadura militar (1964-1985), quando começou a vitimar presos políticos
brancos, em sua maioria das classes médias.
Mesmo assim, diz, os negros e
pobres seguiram pertencendo à "classe dos torturáveis". "Esses
fatos continuam a ocorrer, inclusive em supermercados e shopping centers,
porque os suspeitos não são os clientes brancos, mas os negros e pobres",
afirma.
"Se os brancos de classe
média e elites fossem torturados, não haveria mais tortura no Brasil, porque
a classe com poder, composta por brancos, não admitiria",
acrescenta.
O registo da escravidão no
inconsciente coletivo da sociedade também é apontado por Sérgio Adorno,
coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(USP), que lembra que os corpos dos escravos eram tratados como coisas e podiam
ser manipulados e agredidos pelos seus proprietários.
"O Brasil mudou muito, mas há
traços da herança escravista nesse episódio. A ideia de que alguns corpos podem
ser utilizados como objetos dos outros ainda tem peso na sociedade", diz.
Ele vê no episódio um exemplo do
acesso desigual dos brasileiros ao direito à vida e à integridade física e
psíquica, em choque com fundamentos básicos das sociedades modernas.
"Em todos os países onde a
democracia se consolidou também há desigualdades, mas há um sentido de vida
comum a ser preservado, nunca a ponto de a vida de uns ter menos valor do que a
de outros. Na nossa sociedade, vidas têm valores diferentes, não conseguimos
ainda encontrar o que há de comum entre nós", diz.
A violência em espaços privados
O caso ocorrido no supermercado
Ricoy é o mais recente de um longo histórico de crimes cometidos por
funcionários de empresas de segurança privada, muitas de propriedade de
ex-policiais, que estão sendo catalogados pela Comissão Arns. Segundo Pinheiro,
o episódio é representativo de um padrão que se repete em supermercados e
shoppings pelo país.
"Nesses locais há um
apartheid não escrito. Basta uma criança ou adolescente negro entrar que
um segurança imediatamente vai atrás", diz.
Quando um caso de violência ganha
a mídia, a resposta dos estabelecimentos costuma seguir um padrão, diz
Pinheiro, que inclui divulgar uma nota afirmando que a empresa não coaduna com
a violência e que tomará providências.
"É uma conversa para boi
dormir. No processo judicial, a empresa mãe nunca é responsabilizada, porque
ela culpa a terceirizada, e são raros os casos em que os seguranças são
condenados", diz.
Ele acredita ser pouco provável
que os estabelecimentos desconheçam as práticas de seus seguranças. "O
chicote [no caso do Ricoy] já estava pronto, e a empresa sabia que tinha uma
sala aonde os seguranças levavam as pessoas. Eles não iriam fazer isso se não
contassem com uma tolerância", afirma.
Para Adorno, o fato de seguranças
particulares, em um estabelecimento privado, agirem como se fossem juízes em
condições de decidir e executar uma sentença mostra como a fronteira entre o
espaço público e o privado no Brasil é ultrapassada com facilidade, em meio a
uma cultura política tolerante com essa flexibilidade.
"A capacidade de punir é uma
atribuição pública, mas os agressores se apropriam disso, de uma forma não
moderna, com uma punição que marca o corpo e a identidade do adolescente",
diz.
Ele afirma que o Estado é
responsável pelas violações causadas pela tortura, tanto quando ocorrem em
prédios públicos, cometidas por seus agentes, quanto em estabelecimentos
particulares, onde por omissão tolera que agentes privados pratiquem
o ato.
"A ideia de que você precisa
de vigilância privada para garantir a integridade de um negócio é aceitável,
mas tem limites. Com as câmaras de segurança, há meios para chamar a
polícia e efetuar o flagrante, tudo dentro da lei. Esse episódio mostra a
nossa chegada incompleta ao mundo moderno", diz.
Segundo levantamento feito pela
Globo News, 24 pessoas foram presas em São Paulo pelo crime de tortura de
janeiro a julho de 2019. No mesmo período de 2018, foram 22, e de 2017, dez. Um
número "ínfimo", segundo Pinheiro.
"Se São Paulo, que é um
estado rico, com um Judiciário bem instalado, tem esses números baixos, imagine
no resto do país. A imunidade da tortura ali campeia", considera.
A percepção dos brasileiros sobre
a tortura
Apesar da permanência da tortura
na realidade brasileira, o percentual dos cidadãos que apoia a prática no
contexto da atividade policial é baixo e comparável ao de países europeus,
segundo pesquisas disponíveis.
Um levantamento do Instituto
Datafolha, realizado em outubro de 2018, apontou que 16%
da população apoiava o uso da tortura pela polícia para obter
informações de suspeitos. Conduzida a dez dias do segundo turno das
eleições presidenciais, a pesquisa identificou que, entre os eleitores de Jair
Bolsonaro (PSL), o percentual era de 20%, e entre os de Fernando
Haddad (PT), de 14%.
O percentual é semelhante ao
apurado em outro levantamento, feito pela Amnistia Internacional entre dezembro de 2013 e abril
de 2014, em 21 países de diversos continentes: 19% dos brasileiros responderam
que a tortura é aceitável para obter informações que possam proteger a
população. Trata-se do quinto menor percentual entre os países avaliados – no
mesmo patamar que o da Alemanha, próximo ao da Espanha (17%) e abaixo do
registado no Peru (40%), nos Estados Unidos (45%) e na Índia (74%).
A pesquisa da Amnistia
Internacional também mostrou que, entre os países pesquisados, o
brasileiro é o menos confiante de que não será torturado caso seja
detido ou preso: 80% discordaram da afirmação de que, se estivessem sob
custódia do Estado, no seriam torturados, seguido pelo México (64%) e Turquia
(58%). Indagados se devem existir normas internacionais claras contra a
tortura, 83% dos brasileiros disseram que sim, ficando na média de todos os
países pesquisados.
Bruno Lupion | Deutsche Welle
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