sábado, 26 de outubro de 2019

Hong Kong | "Um ovo a tentar partir uma rocha"


A simpatia inicial da opinião pública chinesa para com as aspirações democráticas de Hong Kong desvaneceu-se com o aumento de violência e destruição com a imprensa estatal chinesa a descrever os protestos como anti-China.

Do apartamento de Tian Qing, ainda é possível vislumbrar lá ao longe os Novos Territórios de Hong Kong mas visitar a região vizinha não está nos planos da residente de Shenzhen. "O Governo [de Hong Kong] não consegue garantir a nossa segurança, por isso tenho um pouco de receio", admite a jovem, que teve o primeiro filho há poucos meses.

Os protestos pró-democracia em Hong Kong, que começaram em junho, têm afetado a economia da cidade, com particular impacto no turismo. Em agosto o número de visitantes diminui quase 40 por cento, a maior queda anual em mais de uma década. Na semana passada, Wang Ping, presidente da Câmara de Turismo da China disse que "90 por cento dos trabalhadores do turismo perderam o emprego ou rendimento" em Hong Kong.

Mesmo Lorie Yuan, que estudou e trabalhou oito anos em Hong Kong antes de regressar à terra natal, Xangai, admite que atualmente não escolheria ir para uma cidade onde os atos de violência contra a polícia e vandalismo contra empresas consideradas apoiantes do Partido Comunista têm lugar com regularidade.

"A estratégia do movimento transmitiu às pessoas do Continente que as de Hong Kong se acham melhores", refere Tom Hollihan, professor da Universidade do Sul da Califórnia (USC, na sigla inglesa).

"Os naturais de Hong Kong são xenófobos e descriminam as pessoas do Continente," reforça Duan Zhe. O gestor sénior de investimentos do Fundo ZBJ, com sede em Chongqing, diz que o sentimento de superioridade surge também noutras metrópoles, mas "acaba por se concentrar e exprimir-se de forma intensa" em Hong Kong por ser uma região administrativa especial.


A opinião pública passou a ser mais crítica depois de um funcionário do banco JP Morgan, da China continental, ter sido atacado por um manifestante a 4 de outubro. "As pessoas do Continente estão muito zangadas com o comportamento dos cidadãos de Hong Kong", lamenta Tian Qing.

Uma opinião confirmada por Tom Hollihan, que esteve no Continente este mês. Os chineses "até podem nutrir simpatia face à democracia e querem a liberalização política do país," admite o professor da Annenberg School for Communication and Journalism, mas "não falei com uma única pessoa que demonstrasse qualquer simpatia pelos manifestantes de Hong Kong".

"O irmão mais velho"

A autocensura dificulta a percepção da opinião dos chineses do Continente sobre os protestos em Hong Kong. Muitos admitiram ao PLATAFORMA ter medo de falar de um assunto tão sensível, sobretudo através das redes sociais chinesas, controladas pelo aparelho de censura do Estado.

Isto após em agosto, Chen Chun, um académico de Shenzhen, ter sido detido por publicar no WeChat - o equivalente chinês ao Facebook - uma foto quando participava num protesto em Hong Kong. "Até os meus pais dizem que é perigoso procurar certo tipo de informação na Internet", realça Lorie Yuan.

Ainda assim, muitos cibernautas chineses encontraram formas - sempre temporárias - de contornar a censura e demonstrar apoio. Alguns usavam o termo "Pérola do Oriente", a alcunha de Hong Kong nos tempos da administração britânica e o título de uma canção sobre a cidade. Dezenas de utilizadores da NetEase Cloud Music, uma plataforma chinesa semelhante ao YouTube, deixaram o mesmo comentário, "Força!", na canção do taiwanês Lo Ta-yu.

O apoio inicial ao caráter pró-democrático dos protestos acabou por se desvanecer, não apenas pelo reforço da censura, mas também pelo aumento da violência. Ainda assim, há alguma compreensão. "Os protestos devem-se à frustração na sociedade", defende Tian Qing. "Os preços elevados, a economia estagnada, o stress e as dificuldades no trabalho fizeram com que tantos jovens tivessem este tipo de comportamento", lamenta a residente de Shenzhen.

"Apoio os protestos", assume Lorie Yuan, "porque eles também estão a reivindicar direitos humanos básicos, incluindo segurança". A jovem lamenta que desde junho a polícia de Hong Kong tenha recorrido "a toda e qualquer desculpa" para deter supostos manifestantes. O resultado, acrescenta, tem sido violência recíproca.

Entre as cinco reivindicações do movimento está o sufrágio universal para a eleição do Conselho Legislativo e do Chefe do Executivo. Uma possibilidade prevista na Lei Básica de Hong Kong mas que Pequim recusou conceder já em 2014. A rejeição acabou por resultar noutra onda de protestos na altura, que ficaram conhecidos como a "Revolta dos Guarda-Chuvas".

"Antes as pessoas ainda pensavam que o sistema "Um País, Dois Sistemas" tinha sido um sucesso", recorda Lorie Yuan. "Mas o irmão mais velho não tem cumprido as promessas e neste momento há sobretudo falta de confiança".

"Nem querem entender"

Há na China continental quem queira perceber melhor as raízes dos protestos. Dezenas de milhares de pessoas partilharam nas redes sociais chinesas uma série de artigos do académico de Hong Kong Leung Kai Chi sobre a relação entre a cidade e o Continente, apesar de o conteúdo ser regularmente removido pela censura estatal.

Mas nem todos tentam saber mais. "Nos dois lados há falta de conhecimento e compreensão; não entendem nem querem entender", sublinha um estudante da Duke Kunshan University, que pediu para não ser identificado. "As pessoas do Continente acreditam que Hong Kong é pequeno e tem pouca influência, por isso não vale a pena tentar entender", acrescenta o jovem.

O problema, explica Lorie Yuan, é que, para quem vive do outro lado da fronteira, obter uma perspetiva mais abrangente sobre o que se passa em Hong Kong requer não apenas um VPN - a sigla inglesa para uma rede privada virtual, que permite aceder a páginas da Internet bloqueadas na China continental - mas também "doses enormes de energia para procurar e analisar esse tipo de informação". É por isso que a maioria dos chineses apenas tem acesso à imprensa do Continente, cuja cobertura dos protestos em Hong Kong "é só propaganda", lamenta a jovem.

Em agosto uma manifestante foi ferida gravemente no olho direito após - segundo a imprensa local - ter sido atingida por um projétil disparado pela polícia. A televisão estatal chinesa CCTV defendeu que a jovem afinal tinha sido ferida por um outro manifestante e que, aliás, andava a distribuir dinheiro aos participantes na manifestação. Um caso que levou Chow Po-chung, professor da Universidade Chinesa de Hong Kong, a publicar um texto a acusar a imprensa estatal chinesa de usar desinformação para manipular a opinião pública da China continental.

Embora "a imprensa ocidental esteja cada vez mais a mostrar alguma da violência" levada a cabo pelos manifestantes, a diferença face à cobertura feita pelos meios de comunicações chineses é abissal, aponta Tom Hollihan. "As pessoas do continente estão a receber um fluxo constante de uma narrativa desenhada para lhes dizer que estes [manifestantes de Hong Kong] são separatistas", explica o especialista em comunicação política e diplomacia mediática.

Por outro lado, Lorie Yuan acredita que a opinião pública internacional está demasiado dependente do que lê no Facebook sobre os protestos em Hong Kong. "O Facebook também é manipulado pelo Governo norte-americano, que tem muito financiamento por detrás," ressalva a jovem chinesa.

O génio da lâmpada

Quatro meses após o início dos protestos, não há fim à vista. Mas Lorie Yuan acredita que, tal como aconteceu com a "Revolta dos Guarda-Chuvas", o movimento pró-democrático irá eventualmente perder gás. "As manifestações são sustentadas por pessoas normais, não há uma força poderosa por trás", lamenta a jovem. Isto embora o Partido Comunista Chinês tenha acusado "forças externas" - incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido e Taiwan - de apoiarem os protestos.

Qualquer que seja o desfecho, prevê Duan Zhe, "perante uma poderosa máquina estatal, não terá um impacto significativo". "É como um ovo a tentar partir uma rocha", explica Lorie Yuan, usando um provérbio chinês.

Já Tom Hollihan teme que o impacto da consequente polarização da opinião pública em torno dos protestos em Hong Kong se faça sentir a longo prazo, na relação entre a cidade e o Continente. "Quando se instala este género de suspeita e hostilidade, é difícil voltar a pôr o génio dentro da lâmpada", salienta o professor norte-americano.

Também o estudante da Duke Kunshan University receia que, quando assentar a poeira, o único resultado dos protestos será "criar um abismo ainda maior entre os dois lados e torná-los ainda mais antagónicos".

Vítor Quintã | Plataforma

Sem comentários:

Mais lidas da semana