A simpatia inicial da opinião
pública chinesa para com as aspirações democráticas de Hong Kong desvaneceu-se
com o aumento de violência e destruição com a imprensa estatal chinesa a
descrever os protestos como anti-China.
Do apartamento de Tian Qing,
ainda é possível vislumbrar lá ao longe os Novos Territórios de Hong Kong mas
visitar a região vizinha não está nos planos da residente de Shenzhen. "O
Governo [de Hong Kong] não consegue garantir a nossa segurança, por isso tenho
um pouco de receio", admite a jovem, que teve o primeiro filho há poucos
meses.
Os protestos pró-democracia em
Hong Kong, que começaram em junho, têm afetado a economia da cidade, com
particular impacto no turismo. Em agosto o número de visitantes diminui quase
40 por cento, a maior queda anual em mais de uma década. Na semana passada,
Wang Ping, presidente da Câmara de Turismo da China disse que "90 por
cento dos trabalhadores do turismo perderam o emprego ou rendimento" em
Hong Kong.
Mesmo Lorie Yuan, que estudou e
trabalhou oito anos em Hong Kong antes de regressar à terra natal, Xangai,
admite que atualmente não escolheria ir para uma cidade onde os atos de
violência contra a polícia e vandalismo contra empresas consideradas apoiantes
do Partido Comunista têm lugar com regularidade.
"A estratégia do movimento
transmitiu às pessoas do Continente que as de Hong Kong se acham
melhores", refere Tom Hollihan, professor da Universidade do Sul da
Califórnia (USC, na sigla inglesa).
"Os naturais de Hong Kong
são xenófobos e descriminam as pessoas do Continente," reforça Duan Zhe. O
gestor sénior de investimentos do Fundo ZBJ, com sede em Chongqing, diz que o sentimento
de superioridade surge também noutras metrópoles, mas "acaba por se
concentrar e exprimir-se de forma intensa" em Hong Kong por ser uma região
administrativa especial.
A opinião pública passou a ser
mais crítica depois de um funcionário do banco JP Morgan, da China continental,
ter sido atacado por um manifestante a 4 de outubro. "As pessoas do
Continente estão muito zangadas com o comportamento dos cidadãos de Hong
Kong", lamenta Tian Qing.
Uma opinião confirmada por Tom
Hollihan, que esteve no Continente este mês. Os chineses "até podem nutrir
simpatia face à democracia e querem a liberalização política do país,"
admite o professor da Annenberg School for Communication and Journalism, mas
"não falei com uma única pessoa que demonstrasse qualquer simpatia pelos
manifestantes de Hong Kong".
"O irmão mais velho"
A autocensura dificulta a
percepção da opinião dos chineses do Continente sobre os protestos em Hong
Kong. Muitos admitiram ao PLATAFORMA ter medo de falar de um assunto tão
sensível, sobretudo através das redes sociais chinesas, controladas pelo
aparelho de censura do Estado.
Isto após em agosto, Chen Chun,
um académico de Shenzhen, ter sido detido por publicar no WeChat - o
equivalente chinês ao Facebook - uma foto quando participava num protesto em
Hong Kong. "Até os meus pais dizem que é perigoso procurar certo tipo de
informação na Internet", realça Lorie Yuan.
Ainda assim, muitos cibernautas
chineses encontraram formas - sempre temporárias - de contornar a censura e
demonstrar apoio. Alguns usavam o termo "Pérola do Oriente", a
alcunha de Hong Kong nos tempos da administração britânica e o título de uma
canção sobre a cidade. Dezenas de utilizadores da NetEase Cloud Music, uma
plataforma chinesa semelhante ao YouTube, deixaram o mesmo comentário,
"Força!", na canção do taiwanês Lo Ta-yu.
O apoio inicial ao caráter
pró-democrático dos protestos acabou por se desvanecer, não apenas pelo reforço
da censura, mas também pelo aumento da violência. Ainda assim, há alguma
compreensão. "Os protestos devem-se à frustração na sociedade",
defende Tian Qing. "Os preços elevados, a economia estagnada, o stress e
as dificuldades no trabalho fizeram com que tantos jovens tivessem este tipo de
comportamento", lamenta a residente de Shenzhen.
"Apoio os protestos",
assume Lorie Yuan, "porque eles também estão a reivindicar direitos
humanos básicos, incluindo segurança". A jovem lamenta que desde junho a
polícia de Hong Kong tenha recorrido "a toda e qualquer desculpa"
para deter supostos manifestantes. O resultado, acrescenta, tem sido violência
recíproca.
Entre as cinco reivindicações do
movimento está o sufrágio universal para a eleição do Conselho Legislativo e do
Chefe do Executivo. Uma possibilidade prevista na Lei Básica de Hong Kong mas
que Pequim recusou conceder já em 2014. A rejeição acabou por resultar noutra
onda de protestos na altura, que ficaram conhecidos como a "Revolta dos
Guarda-Chuvas".
"Antes as pessoas ainda
pensavam que o sistema "Um País, Dois Sistemas" tinha sido um
sucesso", recorda Lorie Yuan. "Mas o irmão mais velho não tem
cumprido as promessas e neste momento há sobretudo falta de confiança".
"Nem querem entender"
Há na China continental quem
queira perceber melhor as raízes dos protestos. Dezenas de milhares de pessoas
partilharam nas redes sociais chinesas uma série de artigos do académico de
Hong Kong Leung Kai Chi sobre a relação entre a cidade e o Continente, apesar
de o conteúdo ser regularmente removido pela censura estatal.
Mas nem todos tentam saber mais.
"Nos dois lados há falta de conhecimento e compreensão; não entendem nem
querem entender", sublinha um estudante da Duke Kunshan University, que
pediu para não ser identificado. "As pessoas do Continente acreditam que
Hong Kong é pequeno e tem pouca influência, por isso não vale a pena tentar
entender", acrescenta o jovem.
O problema, explica Lorie Yuan, é
que, para quem vive do outro lado da fronteira, obter uma perspetiva mais
abrangente sobre o que se passa em Hong Kong requer não apenas um VPN - a sigla
inglesa para uma rede privada virtual, que permite aceder a páginas da Internet
bloqueadas na China continental - mas também "doses enormes de energia
para procurar e analisar esse tipo de informação". É por isso que a
maioria dos chineses apenas tem acesso à imprensa do Continente, cuja cobertura
dos protestos em Hong Kong "é só propaganda", lamenta a jovem.
Em agosto uma manifestante foi
ferida gravemente no olho direito após - segundo a imprensa local - ter sido
atingida por um projétil disparado pela polícia. A televisão estatal chinesa
CCTV defendeu que a jovem afinal tinha sido ferida por um outro manifestante e
que, aliás, andava a distribuir dinheiro aos participantes na manifestação. Um
caso que levou Chow Po-chung, professor da Universidade Chinesa de Hong Kong, a
publicar um texto a acusar a imprensa estatal chinesa de usar desinformação
para manipular a opinião pública da China continental.
Embora "a imprensa ocidental
esteja cada vez mais a mostrar alguma da violência" levada a cabo pelos
manifestantes, a diferença face à cobertura feita pelos meios de comunicações
chineses é abissal, aponta Tom Hollihan. "As pessoas do continente estão a
receber um fluxo constante de uma narrativa desenhada para lhes dizer que estes
[manifestantes de Hong Kong] são separatistas", explica o especialista em
comunicação política e diplomacia mediática.
Por outro lado, Lorie Yuan
acredita que a opinião pública internacional está demasiado dependente do que
lê no Facebook sobre os protestos em Hong Kong. "O Facebook também é
manipulado pelo Governo norte-americano, que tem muito financiamento por
detrás," ressalva a jovem chinesa.
O génio da lâmpada
Quatro meses após o início dos
protestos, não há fim à vista. Mas Lorie Yuan acredita que, tal como aconteceu
com a "Revolta dos Guarda-Chuvas", o movimento pró-democrático irá
eventualmente perder gás. "As manifestações são sustentadas por pessoas
normais, não há uma força poderosa por trás", lamenta a jovem. Isto embora
o Partido Comunista Chinês tenha acusado "forças externas" -
incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido e Taiwan - de apoiarem os protestos.
Qualquer que seja o desfecho,
prevê Duan Zhe, "perante uma poderosa máquina estatal, não terá um impacto
significativo". "É como um ovo a tentar partir uma rocha",
explica Lorie Yuan, usando um provérbio chinês.
Já Tom Hollihan teme que o
impacto da consequente polarização da opinião pública em torno dos protestos em
Hong Kong se faça sentir a longo prazo, na relação entre a cidade e o
Continente. "Quando se instala este género de suspeita e hostilidade, é
difícil voltar a pôr o génio dentro da lâmpada", salienta o professor norte-americano.
Também o estudante da Duke
Kunshan University receia que, quando assentar a poeira, o único resultado dos
protestos será "criar um abismo ainda maior entre os dois lados e
torná-los ainda mais antagónicos".
Vítor Quintã | Plataforma
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